terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Um conto de final de ano






            Ela saiu de casa de bem com a vida. Para dizer a verdade sentia-se muito bem neste último dia do ano. Decidiu que prestaria mais atenção em todos os detalhes, em todas as pessoas, em todas as árvores, em todas as coisas. O elevador demorou, mas ela não se alterou. Para que a pressa? Os anos vêm, depois se vão, ficam para trás e novos anos virão. E nós? Bem, nós viveremos alguns poucos anos porque a vida é curtíssima. Na rua foi abordada por um casal que pedia informações sobre uma tal loja de artesanato. Ela não conhecia e ficou desolada por não poder ajudar porque naquela manhã ela estava realmente de bem com a vida, imbuída dos mais nobres sentimentos e disposta a salvar o planeta de qualquer catástrofe se fosse preciso. No supermercado cumprimentou a todos com delicadeza. Viu o preço do espumante Nero, ficou tentada a comprar, mas desistiu, bobagem, já tinha vinhos e espumantes para as Festas. Voltou pra casa ainda cheia de boas intenções e bons propósitos para aquele dia e também para os próximos dias do ano novo que em poucas horas estaria nascendo. Subiu para a sacada. Percebeu que alguns lírios da paz estavam secos e foi podá-los. No momento em que podava a flor, foi inundada por gratas lembranças dos antúrios da mãe, a eterna cuidadora e guardiã das plantas e flores, e imediatamente lembrou-se de uma frase do pai que ele sempre dizia se referindo ao casamento com certo escárnio: no início tudo são flores ...  Ela sorriu com carinho. Sempre se espantava com a liberdade com que os pensamentos transitavam a bel prazer por sua mente, sempre um puxando outro, sempre uma lembrança puxando outra. E foi precisamente neste momento que ela sentiu uma ligeira pontada dentro do peito, uma sensação estranha que ainda não sabia precisar se era algo físico ou produto de suas emoções, e percebeu que aquele bem estar do início do dia já não estava tão bem assim. Suspirou profundamente, sentiu preguiça, lembrou-se das tarefas que ainda tinha por fazer, lembrou-se de mágoas antigas, porém tentou afastar os maus pensamentos. Saboreou o tutu de feijão que o marido fizera, pois de fato estava maravilhoso, e o gostinho do sal, do bacon e o inalterável bom humor daquele homem salvaram o momento perigoso. Às três da tarde, a tristeza voltou, irrompeu e finalmente imperou vitoriosa. Derrotada, a mulher ficou imaginando como é que era possível ter outra dentro de si tão diferente, obviamente que não apenas uma, havia muitas outras com os mais diversos estados de espíritos e com quem ela era obrigada a conviver diariamente. E comprovou a verdade de que a alegria é extremamente frágil e fugidia, uma porcelana finíssima sempre prestes a quebrar, e lutar contra isso era tão inútil como um exército de fracos gatos pingados a lutar contra legiões de soldados robustos que se infiltravam por todos os flancos. Tentou em vão vencer o momento depressivo. Observe que tudo se passava dentro dela, sem que ninguém percebesse aquele turbilhão de pensamentos e sentimentos contraditórios. Os primeiros fogos começaram a pipocar já de tardezinha. Ela foi para a cozinha preparar o restante da sobremesa. Fazia tudo penosamente arrastando-se como um moribundo que pela última vez se levanta da cama e ainda tenta andar com passos cambaleantes. A mulher da manhã definitivamente não era a mesma mulher da tarde. E ela esperou que a noite, sua hora preferida, lhe trouxesse pelo menos algum sentimento que a consolasse. Então a noite benfazeja caiu serenamente, e seu espírito foi se fortalecendo pouco a pouco. A julgar pela paz que agora descia sobre ela como uma água tépida e reconfortante, todos os demônios do meio-dia voltaram para suas cavernas. Havia música ao longe, cheiros de carnes assadas, gritos de crianças brincando no por-do-sol, gargalhadas sonoras. Embora fosse cedo para comemorar o Ano Novo, ela encheu uma taça de vinho, saboreou o primeiro gole e deu o primeiro sorriso gostoso depois de horas de aflição. Depois riu de si mesma, de seus medos, de seus conflitos. Ergueu a taça para o espelho que refletia sua imagem e desejou para si mesma: Feliz Ano Novo!

domingo, 27 de dezembro de 2015

Para o Ano Novo

No ano que vem
Ah! ... Eu vou ser feliz
Do jeito que eu sempre quis...



            E mais um ano se vai e mais um ano que vem. Como todos os anos, já refeitos do sentimentalismo natalino, vamos nos vestir de branco, erguer taças de champanhe, trocar votos de felicidades, estabelecer novas metas e abrigar no coração a esperança para tempos melhores. Faz-se um breve intervalo de euforia que culmina com o baile de réveillon onde dançamos, comemos e bebemos, como se a vida fosse uma eterna festa! E que seja pelo menos no último dia do ano!  No dia seguinte, um desconfortável silêncio se instaura como um prenúncio de realidade com gosto de depressão e ressaca. A correria de fim de ano vem ao encontro da aceleração planetária, expressão já na moda que traduz essa ansiedade generalizada que oprime de tal forma as pessoas que não dá a elas a chance de refletir sobre a vida, antes, obriga-as a vivê-la impetuosamente, passando a falsa impressão de que o dia de amanhã tem que ser vivido hoje, pois o hoje não foi vivido a contento, aliás, o mais apropriado seria falar em insatisfação planetária acelerada. Afinal, donde vem tanta insatisfação, essa sensação amarga de falta, de ausência?
            Será que esse sentimento de incompletude apareceu depois que o homem, que bem o diga Freud, passada a arrogância de seu narcisismo, deparou-se com a fragilidade de sua, até então, indiscutível e pretensa onipotência? Primeiro, descobriu que a Terra não era o centro do Universo, depois que sua natureza não era assim tão diferente da dos animais e por fim, que ele não era o senhor de sua própria casa, ou seja, havia uma grande parte da sua mente que ele não conhecia e não podia controlar. Solapadas, assim, as bases humanas, restou ao homem viver imprecisamente. Numa tentativa obstinada de controle, o homem sempre retoma e retorna ao leme, nutrindo-se de uma teimosa ilusão de que ele é quem manda e conduz. Doce ilusão, ledo engano! O rio corre mesmo é sozinho. Mas o homem é assim desse jeito, é da essência humana achar que pode tudo.
Mas, enfim, como ser feliz nessa imprecisão e ausência de garantias?  Como aquietar as ruidosas e dramáticas emoções se elas nos lembram continuamente de que caminhamos num tênue fio a milhares de metros do chão? Felicidade não tem fórmula nem receita, cada um que descubra a sua, talvez “só mesmo em raros momentos de distração”, como disse Guimarães Rosa que sabia de quase todas as coisas. Vamos vivendo, esbarrando na felicidade aqui e ali, mas ela se esquiva, não se dá por inteira, até parece querer nos dizer que ela só é plena quando nos esquecemos de persegui-la. Mas é Ano Novo, então, vamos parar de reclamar, recomeçar aquela dieta, frequentar um novo curso, sobretudo vamos amar um pouco mais as pessoas, a nós mesmos, os animais, a natureza, a cidade em que vivemos, o nosso país, o nosso planeta ferido e carente de amor. Vamos tentar ser mais tolerantes com a direita e com a esquerda.  
E para terminar, lembre-se, somos apaixonáveis, somos sempre capazes de amar muitas e muitas vezes, afinal de contas, nós somos o “Amor” (Carlos Drummond de Andrade).

            

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

História de Natal





            A família era pobre, mas era feliz porque a felicidade não é ter uma vida absolutamente sem problemas, nem estar constantemente cheio de dinheiro, sucesso, com filhos perfeitos, carros do ano, enfim, felicidade não é o que infelizmente hoje em dia se luta bravamente para conquistar por aí. Saúde por exemplo, é um bem precioso, só que muitas vezes ocorre que nós, ou alguém nosso fica doente e aí passamos por aflições, mas a felicidade está acima disso porque a vida é bela mesmo assim. Voltemos à família em questão. Sim, era pobre, mas no inverno sempre havia o fogão à lenha que trazia calor e mantinha sempre aquecido o chá de hortelã, antes de dormir. No verão, havia o rio que fazia uma represa e as crianças e mesmo os adultos se refrescavam naquela água cristalina. Havia os vizinhos também pobres, porém todos se ajudavam, de tardezinha conversavam em cadeiras na calçada e assim levava-se a vida sem muito peso. De vez em quando saía discussões, a mulher trazia um dos filhos arrastado pela orelha, às vezes xingava as panelas que estavam velhas, porém insisto, eles eram felizes.
            E o Natal chegando. Os rapazes e também os mais novos sabiam que o Natal era missa do galo e com muita sorte um franguinho caipira no almoço do dia 25. Não havia presentes nem árvore de Natal. E naquele ano um dos meninos mais novos cismou que queria uma árvore de Natal. A mulher olhou para aquele desejo com certa apreensão. Árvore não era problema porque o irmão mais velho apareceu com um pinheirinho apanhado lá no alto da campina. Logo alguém surgiu trazendo uma lata com areia e o pinheiro ficou lá verdinho e pelado num canto da sala. O menino reclamou que para ser árvore de Natal era preciso pendurar bolas coloridas nos galhos. Não havia bolas coloridas nem em preto e branco, contudo alguém se lembrou de que as árvores de Natal também normalmente tinham neve, e o algodão foi logo providenciado, o que já deixou o pinheirinho com um pálido esboço de árvore de Natal americana, e pôs o menino mais animado.
            Uma semana antes do Natal, a mulher soube que na casa dos Custódio estavam dormindo no colchão de palha pura, sem lençol, que um dos garotos estava doente e que mal tinham o que comer. Então ela deu uma boa vasculhada em seus lençóis velhos, escolheu umas roupas dos meninos, cerziu umas já esgarçadas, lavou, passou. Que fique claro que ela não deu do que sobrava, mas do que ainda usava. E quando o filho mais velho que já trabalhava na canjiqueira apareceu com o dinheiro da semana, ela gastou uma parte no armazém para comprar mantimentos, e de noitinha fez uma visita aos Custódio e deixou com eles o que podia. Foi uma festa para aquela família. Logo, outros vizinhos também deram alguma coisa que foi possível. Quando a mulher voltou, foi repreendida pelo marido que reclamou que mal tinham para eles e ela havia gastado um dinheiro que faria falta. A mulher respondeu que sempre se dava um jeito.
            Na véspera do Natal, alguém veio avisar que havia na estação de trem alguns sacos endereçados à família. A mulher mandou dois dos filhos irem ver do que se tratava, talvez fosse um engano, não haviam comprado nada, encomendado nada, não esperavam por nada. Dia 24 de dezembro, chegam os dois moços à casa com três sacos que fariam inveja ao Papai Noel. Havia uma carta. Era de um primo melhor de vida que há muito tempo morava na capital e que andava sumido. Pedia desculpas por não mandar nada novo, embora algumas coisas tivessem sido pouco usadas e talvez pudessem servir para os meninos. Rasgaram os sacos e toda a família não podia acreditar: roupas de cama, toalhas de banho e de mesa, roupas de homem, de crianças, vestidos, sapatos, até brinquedos, tudo praticamente novo. E também havia uma caixa muito bem embrulhada, envolta em palha e algodão, cuidadosamente lacrada. Quando abriram, a surpresa foi ainda maior – bolas de Natal, de todas as cores, até douradas e prateadas. Duas ou três haviam quebrado, mas as outras que eram muitas vestiram o pinheirinho de Natal no melhor estilo natalino, e o menino mais novo passava os dias e as noites de olhos arregalados para sua Árvore de Natal. Aquele Natal nunca foi esquecido.
            Esta história é real, bem, quem conta um conto aumenta um ponto. Digamos que foi inspirada em fatos reais, um pouco ou muito exagerados por mim. É uma história de minha gente, gerações passadas que trataram de registrar o fato para que os que viessem depois ficassem sabendo.
            Sabemos que só há uma maneira de receber, é dando, e isto é uma lei que funciona tanto para o bem como para o mal. Tudo retorna para nós. Em uma crônica de Cecília Meireles, ela diz: “ ... e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar um flor, um pintinho, um caramujo, um peixe ...”
Os melhores presentes nem sempre são os mais caros.

            E as Festas estão chegando outra vez. Feliz Natal!                

Natal com presente de lua cheia







            Ontem, noite de Natal, fomos passar algumas horas para a ceia na casa de minha enteada. Como às vezes ou quase sempre acontece, sou acometida por certa angústia que me aperta o peito e me faz suspirar. Presumo que esta espécie de melancolia natalina acontece porque esta época me remete aos pais que já partiram, e neste ano especificamente foi impossível não me lembrar de minha grande amiga que também partiu tão cedo. Procurei a sacada para receber aquela lufada benfazeja da noite santa, e qual não foi minha surpresa ao dar com a lua cheia, brilhante reinando na imensidão do céu, uma coisa linda de morrer!. Aí eu disse: Motta, você viu a lua? E ele, tomando calmamente seu vinho, me contou que pela primeira vez, desde 1977, ou seja, após 38 anos, a lua cheia apareceu para iluminar as festividades do Natal. E que agora só no Natal de 2034. Só Deus sabe o que será de nós em 2034 ...
            E eu fiquei ali curtindo minha taça de vinho e refletindo sobre a Lua, sobre a Terra e outros planetas que não vemos. Quando eu era menina, por intuição, já tinha desenvolvido duas estratégias para afastar o medo ou angústia: uma delas era pensar que tudo passa, por exemplo, se eu tinha uma prova difícil na terça, eu ficava pensando, “na quarta tudo terá passado”, e, de certa forma, isto me consolava. Outra estratégia era sempre olhar a lua e pensar que o universo deixava suspensas no céu várias bolas, umas maiores, como nossa Terra, e outras bolas menores como a lua, esta tão perto de nós, tão visível, tão magnificamente linda, ao alcance de nossos olhos. E quando eu pensava que a vida dos homens se passava em bolas que giravam num universo sem fim, eu, apenas um serzinho entre milhares e milhões, meu medo de qualquer coisa ficava menor. Somos tão pequenos!
 Bem, entre um vinho e outro, eu me lembrei do que realmente estávamos comemorando: o nascimento do Menino Jesus. Do Menino passei para o Pai, o Criador de todas as coisas, assim acredito! Sim só Deus para criar um cenário tão genial, tão lindo para nos presentear. Tudo aí, de graça, é só olhar para o Céu! É tudo nosso e tratamos tão mal este nosso mundo, seja cultivando mágoas, seja maltratando o planeta. Somos muito pequenos!  
            Hoje, já dia 25, fui à missa de manhã, e vi na procissão de entrada, o Menino que logo foi colocado no seu bercinho de palha sob os olhos amorosos de sua Mãe e seu Pai. O Menino que foi um rei que dizia que seu reino não era deste mundo, que viveu e cresceu pobremente durante toda sua vida, e que nunca teve nada dele, nunca teve casa, a não ser o Presépio de Belém, onde nasceu, e a cruz onde morreu, como já bem nos lembrava Santa Teresa de Ávila. Na hora do “Glória”, aquela música lindíssima “Glóooooooooooria, in excelsis Deo ...”, eu fui cantando a plenos pulmões até que vi uma senhora velhinha na minha frente que também cantava baixinho. Algo nela me lembrou minha mãe, a pele fininha, um jeito qualquer que na verdade não sei precisar qual era, mas algo nela me despertou a lembrança de minha mãe velhinha, aí pronto, já não consegui cantar, tranquei os dentes e abri a comporta das lágrimas que se romperam profusamente. Ao final da missa todos se cumprimentaram com alegria e eu já me sentia refeita da emoção.

            Agora, abro o Face e vejo a neta de meu marido postar uma frase sobre o Natal: “Minha ideia de Natal, se antiga ou moderna, é bem simples: amar os outros. Pense sobre isto, por que temos que esperar o Natal para fazer isso?” Não, não temos. Pode ser um bom propósito daqui para frente. A lua cheia vai aparecer hoje de novo. Vou curtir este presente!      

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Papai Noel




            Nunca me lembro de ter acreditado cem por cento em Papai Noel. Minha mãe, mulher muito prática para qualquer questão, nunca falou sobre o assunto. Quando mencionávamos algo como deixar o sapatinho na janela, ela escutava sem levantar os olhos da costura, e esboçava um sorriso um tanto sarcástico no canto da boca. Mas não me queixo disso, o encanto do Natal continuava incólume porque, não menos práticos do que ela, o que nós queríamos de fato eram os presentes, fossem do Papai Noel, de nossos pais ou ainda da maravilhosa tia Odete que nos enviava os embrulhos através do ônibus que ia de Itajubá para Pedralva. E esperar a chegada do ônibus com os presentes era a nossa alegria do Natal. Certa vez, não deu tempo de os presentes serem colocados no ônibus, o que ocasionou uma verdadeira tragédia em nossas expectativas natalinas. Subimos a ladeira para chegar à nossa casa com a boca no mundo e os olhos inundados de lágrimas. Era a infância, época mágica com ou sem Papai Noel.
Cada família lida à sua maneira com essa questão de proteger ou não suas crianças na crença no Papai Noel. Há os que acham que a verdade deve sempre prevalecer ainda que os pequenos sofram com a realidade. Outros preferem proteger a fantasia da criança custe o que custar. Há alguns dias, certa amiga me contou como sua menininha voltou da escola meio triste pelo trágico boato de que Papai Noel não existia. Algum coleguinha já mais escolado pela vida se encarregara de transmitir a notícia. Minha amiga, sem saber como agir, optou por ficar triste também se solidarizando com a menina. Tudo acabou bem quando o avô interferiu consolando as duas, garantindo que ele próprio já se encontrara com o “bom” velhinho.
Penso que isso não importa, a criança, pela sua própria natureza, consegue transitar entre a realidade e o mundo da fantasia numa boa, e se vale de mecanismos desconhecidos dos adultos para tal proeza. Ela saberá de alguma maneira lidar com a questão da existência ou não de Papai Noel. Certa vez, eu própria, com receio de que minha mãe me apanhasse no flagrante, coloquei sorrateiramente meus sapatos num canto meio escondido da janela. Eu já sabia que Papai Noel era inventado, mas e se ... sabe como é? Sempre bate uma dúvida (se bobear, até hoje!). Bem, no dia seguinte, constatei que o Papai Noel não viera. Os sapatos talvez tivessem ficado muito escondidos para serem encontrados ou talvez Papai Noel estivesse mesmo acostumado a colocar os presentes aos pés de nossa cama, ou talvez ele não existisse mesmo. Li na crônica de Luís Fernando Veríssimo que o Papai Noel em pessoa viera um dia até sua casa. Extasiado, Veríssimo abraçou sua bola de futebol, acionou o revolver com espoleta e saiu correndo pela casa até que na cozinha se deparou com o Papai Noel sem máscara tomando cerveja com a empregada, era o Bataclan, uma figura folclórica de Porto Alegre. O escritor não se lembra como racionalizou a situação, talvez o Papai Noel não existisse ou fosse mesmo o Bataclan quando não estava em seu serviço habitual. Não importava, tudo ficou bem. Veríssimo conclui dizendo que “o bom de ser criança é que a gente não precisa racionalizar”. Verdade.
Entretanto, a questão não é acreditar ou deixar de acreditar em Papai Noel. Naquela época eu sofria porque na manhã seguinte quando saíamos de casa, ávidos por exibir nossos presentes e admirar os das outras crianças, infalivelmente tínhamos que nos deparar com os olhos das crianças pobres que subiam para o centro. Algumas paravam para poder ver melhor as bonecas, os caminhões, as bicicletas, e nos olhavam também. Este olhar eu não consigo esquecer. Lá onde moravam, ah ... lá é que o “bom velhinho” não aparecia mesmo. E já é quase Natal outra vez.
           
           
             

            

sábado, 19 de dezembro de 2015

O peregrino





   
Chegamos afobadíssimas, minha irmã e eu na rodoviária de São Paulo. Aliviadas, verificamos que ainda dava tempo pra um café. Depois disso, nos sentamos no meio daquelas milhares e milhares de pessoas que vão e vêm na maior rodoviária da América do Sul. Nem bem sentadas, eu o avistei. Era um homem ainda jovem que caminhava meio cambaleante e vinha em nossa direção. Eu disse, “minha irmã, lá vem mais um, pois era o quarto ou o quinto do dia a nos pedir dinheiro”. Mais um - menos um para abrir a bolsa e dar uns trocados. Eu sabia. Não deu outra.
O homem caminhava pesadamente. Trazia uma mochila velha nas costas. Estava suado e parecia estar bêbado ou talvez tão cansado que sua lentidão não deixava que fosse direto ao assunto. Era pequeno, atarracado e musculoso. Sentou-se na ponta do banco. Depois ajeitou a mochila no chão como se fosse um travesseiro e deitou-se. Nós duas olhando pelo rabo do olho. Não ficou mais que um minuto e levantou-se. Aí veio. Apresentou-se, ensaiando um cumprimento dos mais galantes, pedindo nossa mão para beijar como se fosse tirar a gente para uma dança. As pessoas que estavam por perto olhavam curiosas, afinal todos adoram um espetáculo desde que não sejam protagonistas. Depois da apresentação, pediu um real. Minha irmã, sempre paciente e caridosa, sabendo que poucas pessoas dariam atenção a um homem pedinte e inconveniente, tirou dez reais, dizendo, “um não, dou dez, o senhor vá tomar um café com leite e comer alguma coisa”. O homem parecia não acreditar. Os olhos quiseram marejar, ensaiou um discurso que engoliu e já estávamos nos preparando para sair em busca de nossa plataforma quando surgiu um policial, um segurança da rodoviária que se dispôs a nos defender. Enquanto pedia os documentos ao homem, perguntou se ele estava nos incomodando, ao que respondemos que não, que tinha sido apenas gentil e foi aí que a coisa mudou de direção.
O homem se sentiu profundamente insultado quando o policial nos fez aquela pergunta, como se ele fosse um criminoso. Pedimos que deixasse pra lá e o policial, um tanto quanto frustrado, já se preparava para ir embora, quando o pedinte exigiu mostrar os documentos. Abriu a mochila, ofendidíssimo e apresentou carteira de identidade, CPF, carteira profissional, até comprovante de residência. Tudo o que o policial queria era encerrar o assunto, mas o homem insistia, indignado. Dizia que era um cidadão, um trabalhador, já tinha passagem comprada para o norte de Minas. Enquanto isso as pessoas assistiam a tudo, dando as mais variadas opiniões. As mulheres, em sua maioria, tiveram pena e os homens olhavam com desdém e desconfiança aquele personagem.

Aproveitamos uma brecha e vazamos, como diz meu sobrinho. Já dentro do ônibus, enquanto esperávamos que o carro partisse, minha irmã me chamou a atenção para olhar lá fora. O mesmo sujeito estava deitado na plataforma ao lado. Deitou a mochila no chão, na frente do ônibus e descansava. Mas, tal como fez conosco, não deu um minuto já se levantava e agora discutia com o motorista. É, o mundo não tem jeito, a gente quer consertar e vai ver que é assim mesmo que ele quer ficar. Cada um tem uma história, embarcamos um pouco tristes, era quase Natal.   

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Envelhecer: bom não é, mas que remédio?


 
Lendo o texto que uma amiga postou no Face sobre “não querer ser jovem novamente”, ponderei o seguinte. Bem, mas antes, falando mais sobre o texto, o autor nos diz uma fala de Freud: “a morte é o alvo de tudo o que vive”. Ou seja, nossa vida é um caminhar para a morte, e quer queiramos ou não (na verdade, não queremos), vamos envelhecer, estamos envelhecendo ou já envelhecemos, e não há nada, absolutamente nada que possamos fazer a respeito. Tudo nessa vida envelhece, degenera-se, decompõe-se, e nós também. E depois da velhice, se não morrermos antes disso, morreremos como todas as pessoas, como todo ser vivo, sem exceção.
O autor do texto nos aconselha a não querer ser jovem novamente, a abrir mão da beleza exuberante, do frescor da pele jovem, da firmeza dos músculos, da barriguinha de tanquinho, da memória infalível, e também nos aconselha a abrir mão do passado e abraçar o presente. Se alguém já envelheceu, que aceite com serenidade, sem querer ficar parecendo uma pessoa jovem, e isso também inclui não exagerar nas roupas que só caem bem nos jovens ou nas jovens. Até já li alguma frase de alguma entendida em etiqueta de quem agora não me lembro o nome, que diz nada envelhece mais do que querer parecer jovem para sempre. É verdade. Portanto, é um alívio poder relaxar e deixar acontecer, acolher a velhice com aceitação e bom humor, pois sem o senso de humor a vida fica difícil, até para os jovens.
Há uma luta natural que nos impele a não aceitar a velhice, mas logo nos damos conta de que não há como deter a lei natural da vida. Muitas plásticas, procedimentos cirúrgicos, ou mesmo umazinha que seja (eu confesso que já fiz uma) trará uma alegria momentânea e a ilusão passageira de ter bebido da fonte da juventude eterna e de ter o viço de volta às nossas faces e corpos, mas a velhice logo reclama e aflora aqui e ali mostrando que sua hora já chegou e lá vem com as suas damas de companhia, as rugas, os pés-de-galinha, bigodes chineses, e outros mais. É uma tortura lutar contra isso. É melhor capitular. Não quis nem testar este novo produto tipo botox por algumas horas, uma coisa realmente fabulosa, que tira rugas, manchas, olheiras, tira tudo, um verdadeiro milagre, só que por algumas horas apenas. Até brinquei perguntando se vinha o kit completo, quero dizer, o produto e o antidepressivo porque encarar o real depois é uma lástima!    
É relaxar, é desapegar-se da imagem de jovem que não voltará. É sério, não voltará. É verdade, e ter equilíbrio para tudo, para o comportamento, para as roupas, ter cuidado com maquiagem exagerada. Nada mais triste do que uma velha fantasiada de moça. Nada mais triste do que uma velha querendo viver paixões e prazeres desenfreados. Isto não quer dizer que o amor e o relacionamento entre pessoas mais velhas seja ridículo, não, o amor nunca será ridículo, o companheirismo nunca será ridículo, o sexo nunca será ridículo, a menos que nós os façamos assim.
A despeito de tudo isso, não se pode negar que convivem dentro de nós, a criança, o jovem ou a jovem que já fomos. Sim, somos a mesma pessoa com uma história construída, com lembranças e emoções. No fundo não passamos de crianças que apenas cresceram. Mas essa fase já passou. A menina e a jovem que fui são bem acolhidas em meu interior, tenho o maior carinho por elas porque elas que me sustentam, sem elas e a visão de vida que tiveram, eu não seria o que sou agora, mas é preciso cuidado para não deixá-las me dominar, cuidado ao querer parecer uma menina ou uma jovem quando já não o sou. Ser velha, tirando as limitações físicas, não é ruim. Meu conselho, se é que posso dar conselhos, é sorrir e rir muito. Os pés-de-galinha ficam mais acentuados, mas rir faz bem à alma, e esta, bem, esta viverá para sempre e cabe a nós fazê-la bonita. Uma alma sábia é uma alma bonita. Não deixe morrer a menina que está dentro de você, mas não se vista como ela e nem queira ter a sua carinha. Já passou. Não dá mais.
Como se aproxima o Natal, transcrevo aqui os “Versos de Natal” de Manuel Bandeira que gosto muito e que justamente fala dos cabelos brancos, das rugas e também dos desejos do menino que está dentro de cada um, e também fala do Natal, é claro:
“Espelho, amigo verdadeiro, tu refletes as minhas rugas, os meus cabelos brancos, os meus olhos míopes e cansados. Espelho, amigo verdadeiro, mestre do realismo exato e minucioso, obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico, penetrarias até ao fundo desse homem triste, descobririas o menino que sustenta esse homem, o menino que não quer morrer, que não morrerá senão comigo, o menino que todos os anos na véspera do Natal pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta”.
Gente, até o espelho, que não é mágico, nos fala a verdade!  A gente é que não quer ver!

 


 

 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Um conto de Natal - (Conto premiado pela Centro Cultural Clube Itajubense em Itajubá - 2005)








 

            Sofia olhava atentamente para o parque de diversões. Via crianças e pais felizes. Pensava que não podia haver felicidade maior na vida do que andar naquela roda gigante ou na barquinha. Ah! Tudo devia ser bom!  Ela suspirou profundamente e se deu conta de que já era tarde. Sofia era uma menina de nove anos, muito pobre. Seu pai estava desempregado e a mãe trabalhava como cozinheira de um hotel elegante. Era uma mulher que quase nunca sorria. Celinha, amiga de Sofia, também era pobre, mas sua mãe, ao contrário da mãe de Sofia, era uma mulher alegre como ela só! Imensa de gorda, sentava-se junto das meninas e conversava com elas. Até tinha enfeitado um pinheirinho apanhado ali mesmo, pertinho da casa. Era dezembro, mês do Natal.

            Sofia não gostava do Natal. Ficava triste por causa dos presentes que nunca ganhava. Tudo bem que o Natal não era só presentes, era tempo de ser feliz, lembrando o nascimento de Jesus, que também fora pobre como ela. Ela sabia disso, mas Sofia queria presentes. Só um. E se Papai Noel existisse mesmo, alguma vez ele já teria trazido um presente para ela. Mas nunca, nunca trouxera. E ela tinha visto que Papai Noel era apenas um homem fantasiado. Foi naquele Natal em que o Velhinho, em pessoa, entregaria presentes para as crianças pobres lá na Prefeitura. Sofia ficou maluca para ganhar um presente. A mãe não quis deixar, disse que Papai Noel só existia para as crianças ricas. Sofia chorou e sob os protestos da mãe foi buscar seu presente. Quando chegou perto da Prefeitura, ficou desanimada. Não sabia que existiam tantas crianças pobres assim. Mas foi furando gente de toda a maneira até chegar perto do Papai Noel. Foi então que a confusão começou.  Crianças e mais crianças avançavam em direção ao saco de presentes e pulavam em cima do Papai Noel que, nessa altura dos acontecimentos, estava bravo e xingava todo mundo. No empurra-empurra a barba branca e o bigode caíram. Foi um vexame, quase uma tragédia. Sofia caiu e por pouco não foi pisoteada. Voltou para casa chorando e pensando que a mãe tinha razão. Não existia Papai Noel. Mas era criança e no dia seguinte, sarou com o abraço afetuoso da mãe de Celinha que lhe deu uma cocada ainda quentinha. Tudo bem. Papai Noel não existia, mas ainda assim Sofia queria um presente.

No ano seguinte, a professora avisou que o Papai Noel estaria na escola e pediu que as mães também fossem. A mãe de Sofia não quis ir, mas acabou cedendo e foram no dia marcado. Só que a fila era muito grande. Se ao menos a mãe tivesse saído mais cedo do serviço. Sofia não se aguentava de tanta ansiedade. Mas bem na hora dela, os presentes acabaram. Ela sentira vergonha, o rosto queimava de vermelho, como se tivesse feito alguma coisa errada. Papai Noel, dessa vez, não ficou bravo, até lhe deu um abraço. Voltaram para casa, mãe e filha, em silêncio. Sofia sentia uma grande vontade de chorar, mas teve medo da mãe. As lágrimas saíam sem que ela pudesse controlar. Foi direto para a cama e chorou tanto, tanto, que pensou que ia morrer de tanto chorar. A mãe, silenciosa e séria como sempre, nem veio lhe dar um abraço. Só mais tarde Sofia compreenderia que o sofrimento amolece o coração das pessoas, mas algumas vezes endurece e para sempre. Naquela noite, ela sonhou que estava em um grande parque de diversões e que tinha todos os brinquedos só para ela. Que sorria, que ria muito mesmo, sentindo o vento no rosto, enquanto a barquinha subia cada vez mais alto. Engraçado, tudo em câmera lenta, como num filme em que ela tinha visto sobre uma menina que se perdia dos pais e quando finalmente os encontrava, ia correndo lentamente, com uma música linda de fundo. E desde então, para Sofia, câmera lenta virou sinônimo de felicidade. Sofia acordou pela manhã, lembrou-se do sonho com carinho, mas jurou que nunca mais iria para nenhuma fila de Papai Noel.

            Era domingo outra vez. Sofia foi chamar Celinha para irem ao parque. Celinha não quis. Sofia foi sozinha e lá ficou com a cara grudada na grade. Não sabia, então, que era observada pelo dono do parque, seu Nicolai, um russo gordo, com cabelos, barba e bigode brancos. Ele chegou perto de Sofia. Como é o seu nome?  Sofia -  Sofia, você quer brincar um pouco no parque? - Eu? Que-quero, mas não tenho dinheiro. - Eu sei, mas eu sou o dono do parque e no meu parque, anda quem eu quiser. Sofia não podia acreditar. Entrou pelo portão principal, como se fosse uma princesa.

            A princípio, ela foi entrando timidamente, mas pouco a pouco, foi pegando o jeito. Foi na barquinha, que subia cada vez mais alto, mais alto. Sofia sentia um arrepio, uma felicidade estranha, como nunca então tinha sentido. O vento batia em seu rosto, como no sonho. Agora ela ria alto, tão alto quanto a barquinha. Lembrou-se de Papai Noel e dos presentes. Não tem importância, eu mesma vou comprar um presente quando crescer. E vou pedir para embrulhar naquele papel verde brilhante com fita vermelha, como nos filmes americanos. De repente, Sofia sentiu que a barquinha estava balançando em câmera lenta. Será? Deve ser impressão. Mas estava, podia jurar que estava. Se fosse um filme, as pessoas poderiam ver seu sorriso, sua cabeça se movendo lentamente com os cabelos soltos ao vento. Não viu que Nicolai a observava lá embaixo. Com as mãos, tentava proteger os olhos da claridade e de vez em quando enxugava as lágrimas. Lembrava-se da filha que perdera há tantos anos. É Natal, ele pensou.

 
 
 
 
 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Viagem de Natal






Era Natal e todo ano as primas da fazenda iam à Aparecida do Norte para agradecer à Nossa Senhora por todas as graças recebidas. Passaram dois dias por conta da viagem, afinal o melhor da festa é esperar por ela. Era só arrumação de todos os lados. A Nicota arrematando um vestido estampado de última hora, a Sebastiana cozinhando os frangos que iam levar, preparando a farofa. Não se falava em outra coisa. Depois do almoço, ficaram um tempão papeando à toa, fazendo os planos para a viagem.
A Conceição estava meio acabrunhada, ninguém conseguia entender o porquê, até que ela falou, meu sapato tá ruim demais da conta sô, não vai dar pra ir com ele, eu tava com uma vontade danada de comprar um novo, acho que vou na cidade.  A Maria implicou, que bobagem, gastar dinheiro com sapato, imagine se a Ceição não tem sapato bom pra ir, gente? Se ainda fosse eu. Mas todas as outras primas deram a maior força, isso Ceição, vai sim, mais vale um gosto que um tostão no bolso. Na véspera da viagem para Aparecida, a Conceição levantou de madrugada, desceu a montanha, louca pra chegar à cidade e procurar um sapato novo na loja do seu Ari. Seja tudo pelo amor de Deus! Na véspera, à noite, quem falou que conseguiam dormir? Era excitação pura, risadaria. Pensaram até em emendar, ficavam sem dormir conversando, era tão bom! Mas não convinha, era perigoso de dar um sono louco depois do almoço lá em Aparecida. A Ceição não aguentava de vontade de estrear o sapato, foi lá no quarto buscar e ficou desfilando com ele, amaciando de um lado e de outro, fazendo inveja em todo o mundo. A Maria implicou novamente, nem bem morto, já esfolado ... capaz até de dormir com ele. Já faziam planos para ver quem confessaria primeiro. Quando decidiram dormir, passava das duas da manhã. Já tinham tomado bastante leite com goiabada dentro do copo. Cê me chama, Maria? Pode deixar, Nicota. Com Deus, com Deus ...
No dia seguinte, de madrugada, desceram todas com sacolas e risos debaixo do braço. Ainda estava escuro, cheio de estrelas no céu. Chegaram até à porteira que dava para a estrada e lá ficaram esperando a jardineira fretada para ir pra Aparecida. Seu Joaquim ficou de pegar o pessoal do Silvério primeiro, depois passavam lá. Só dos Silvério davam uns quinze, dos Ferraz uns dez, mais todas elas, enchiam o ônibus. Ai que gostosura! Iam rezando o terço, depois cantavam, depois faziam graça. Valia a pena esperar por essa viagem. E tá que esperam e nada do seu Joaquim apontar lá na curva. O dia já tinha amanhecido, a impaciência começou a crescer. Uai, gente, que será que houve? Não pode ter havido nada, senão eles já tinham avisado. A Nicota, de vestido estampado novo, a Ceição, que nessas alturas estava com saudades do sapato velho, o novo dava mostras de apertar do lado. Mais de sete horas da manhã, não é possível. Até que enfim ouviram um barulho, mas não era do ônibus, era do motor do Geraldo que vinha à toda. Chegou e avisou, gente, não vai dar, a sogra do Joaquim empacotou agora de madrugada, a viagem fica pro ano que vem. Não dava pra acreditar, até que bateu um remorso por ninguém sentir a morte de Dona Candinha, a tristeza era pela viagem que não iam mais fazer. Fazer o quê? Deram meia volta e tornaram à fazenda, todas cabisbaixas, murchinhas, suspirando fundo, a Ceição com os sapatos na mão.

A Maria quebrou o silêncio, fizeru eu tomá banho à toa...      

domingo, 6 de dezembro de 2015

Avó





De quando em quando, minha avó tirava os óculos de aros dourados e fininhos que ficavam sempre na ponta do nariz, e parecia fazer um esforço imenso para alcançar o peito do pé. Os dedos finos e brancos se alongavam mais ainda e os lábios se apertavam num franzir de boca, indicando que ela finalmente alcançava e agarrava com dificuldade o pé, com a perna esticada na cama. A testa também ficava franzida em mil rugas. Minha avó tinha uma ferida que coçava, dessas enroladas em gases quilométricas. Aí, ela começava a massagear o pé com movimentos suaves e demorados, para lá e para cá, até que tudo tivesse sossegado. Tornava aos óculos e ao livro de oração, de capa preta e com um dourado finíssimo na borda de cada página, o que fazia um dourado só, grosso e imponente. E lá ficava minha avó, numa quietude de santos, aprendendo o caminho da perfeição e em paz de gente mais velha que não mais precisa correr. Daí a pouco, ela voltava a coçar o pé.
Eu assistia a tudo encantada, por ser ainda criança, pois as crianças sabem tirar encantamento de tudo, até de avó que coça a ferida no pé. Sua imagem, sentada na cama, com a perna magra esticada, não me sai das mais queridas lembranças. Seu cabelo liso, branquinho, puxado para trás e preso por dois pentinhos, sua testa de baronesa, seu perfil nobre e seu olhar afiado. Haverá no mundo coisa mais bonita e terna para lembrar?




                
















quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Anarquia no Brasil


Acordei mais cedo que o habitual. Senti que era um dia diferente. Os ruídos de fora eram estranhos. Abri a janela e vi as ruas de minha cidade repletas de pessoas agitadas. Gente que falava, gesticulava e esboçava sorrisos estranhos, com caretas incrédulas. Outra enchente de lama? Aqui também? Não, o tempo é de chuva, graças a Deus, mas nem tanto. Foi então que soube. Liguei a televisão, e estarrecida assisti ao noticiário que explodia em plantões nervosos. Desceu do Céu um emissário especial trazendo uma ordem suprema, divina e misteriosa que mudaria todo o destino do país.
De agora em diante não mais teríamos presidente, governadores, ministros, senadores, deputados, chefes de gabinetes, secretários, secretários de secretários, prefeitos, vereadores, assessores, assessores de assessores, tampouco partidos políticos. O país, seus estados e cidades seriam agora governados por um conselho de cidadãos, filhos da pátria, voluntários, cujas únicas condições para exercer seus cargos seriam a HONESTIDADE e o AMOR por sua terra e por sua gente. Os salários dos políticos, até então, inacreditáveis e inimagináveis fortunas que fariam inveja ao pobre tio Patinhas, e fariam corar a nababesca corte francesa de Maria Antonieta e sua turma, seriam destinados para creches, educação, saúde, estradas, construção de vias férreas e outras necessidades reais da população. Os funcionários remunerados seriam aqueles que trabalhassem de fato, gente comum. E também aqueles que tivessem por função a verdadeira utilidade pública, como limpeza das cidades, jardinagem, ensino público, enfim, a administração necessária em geral. E semanalmente, os membros do conselho federal, estadual e municipal se juntariam a esses servidores para pessoalmente e efetivamente por a mão na massa, ou seja, cuidar de sua amada terra.
Todos os políticos e afins ladrões cumpririam pena de prisão perpétua e eterna, com tornozeleiras, braçadeiras e o diabo a quatro que os manteriam trancafiados para sempre, ou melhor, passariam o resto da vida limpando o Rio Doce, o oceano e cidades atingidas pela lama tóxica e a lama moral.
Os partidos políticos estavam extintos. O conselho agora seria composto por cidadãos que tomassem um único partido, o da solidariedade. Incrivelmente, logo surgiram pessoas para o conselho voluntário. Aposentados, estudantes, homens, mulheres, jovens e velhos, todos imbuídos do ideal de bem conduzir o país e as cidades para o progresso e harmonia. Afinal, um país sem presidente, estados sem governadores, cidades sem prefeito? Sem secretários, sem vereadores? Seria possível? Anarquia? Fim do mundo? Utopia? Loucura geral?
Não, não, apenas um sonho. Acordei novamente. Olhei pela janela e vi engarrafamentos e pessoas que se arrastavam sob o peso da triste e corrupta realidade brasileira. Olhei para a televisão e assisti às mais incríveis e criativas notícias de corrupção, ao duelo entre políticos bandidos que se digladiam sem se preocupar nem um instante com a pobre população. É, é tempo de oração.


                                                                                               

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Querida prima Hepburn



Quem já não teve uma prima a quem admirasse profundamente? Eu tive e passei a chamá-la de Prima Hepburn porque embora não se parecessem tanto assim, ela me fazia lembrar a famosa atriz, pela elegância e beleza que exalava em todos os momentos de sua vida. Não havia um instante sequer em que a Prima Hepburn não estivesse absolutamente encantadora, fosse num baile, ou preparando um almoço ou simplesmente caminhando. Há mulheres assim, que não se esforçam para serem bonitas, no entanto são e pronto. É algo de dentro, uma elegância interior, um charme nato. Parecem viver sempre envoltas em brumas. Não, não é para qualquer uma.
Ela era um pouco mais velha que nós e viajava para ficar conosco nas férias quando então podia aprender a costurar com minha mãe, que sendo exímia costureira, não teve aluna mais brilhante e eminentemente criativa que minha prima. De qualquer pedaço de pano ela conseguia fazer uma blusa incrível ou um tubinho superelegante à La Hepburn, que faria Madame Chanel babar de inveja! Melhor, se minha prima fosse contemporânea de Madame Chanel, elas teriam formado uma dupla invencível.
A Prima Hepburn sempre conseguia dar um toque diferente nas roupas mais comuns, como por exemplo, no uniforme de colégio. Quem ousaria mexer num uniforme tão tradicional? Pois ela subia um pouco mais a gola ou franzia o ombro e o resultado era surpreendente! Anos mais tarde, quando esperava seu primeiro filho, ela apareceu na cidade usando um vestido de grávida que era um luxo! Imagine, ela conseguiu juntar o azul e o verde numa roupa, coisa impensável para a época! Ninguém jamais havia tentado essa façanha, azul podia ser combinado com outras cores, mas com verde, jamais! E ficou divino! 
Quando ela fez quinze anos, houve uma grande festa em sua casa. Não fomos porque ainda éramos meninas e desajeitadas para bailes, mas fiz questão de ver as fotos deslumbrantes, entre elas a foto do vestido que ela mesma fez e usou. Em certo momento da festa, seu pai apareceu no melhor estilo vindo de dentro da casa, trazendo os sapatos de saltinhos da filha em cima de uma almofada de veludo vermelho. Não sei se por conta de minha alma encantada ou de meus sonhadores olhos de menina, mas poderia jurar que os sapatos brilhavam como se fossem incrustados de diamantes. O baile foi um acontecimento e tanto na cidade e a Prima Hepburn se comportou como uma insigne princesa fazendo sua aparição oficial à sociedade local. Aposto que também Lady Di ficaria meio sem graça se visse minha prima.  
Estávamos presentes no seu casamento, é claro. Eu não podia mais conter minha ansiedade até que ela surgiu e foi caminhando para a igreja dando o braço ao pai. Ela confeccionou seu próprio vestido de noiva e ele era simplesmente inédito. Prima Hepburn escolheu um adorno para a cabeça parecido com aqueles que as espanholas usam ou usavam, com o véu rendado caído assim de cima como uma cachoeira branca e brilhante. Fiquei fascinada!
E assim a querida Prima Hepburn seguiu pela vida, sempre elegante com os filhos e agora com os netos. Sua pose de princesa amadureceu e ela está mais charmosa do que nunca. Mas trago nas minhas mais caras recordações de infância a imagem de minha prima a cantar enquanto fazia os moldes. Depois ela levantava cada peça e balançava a cabeça satisfeita com sua própria obra de arte, o que fazia com que seus longos cabelos negros dançassem de um lado para o outro. Eu, então, com meus cabelos curtinhos de menina, suspirava profundamente e ficava espreitando meio de longe para poder admirá-la à vontade. Não, decididamente não havia prima mais linda e elegante no mundo!  
Saramago disse certa vez: “Que há de mais maravilhoso que o amor e a admiração de uma criança por uma pessoa adulta?” É por aí, como dizem.    


sábado, 28 de novembro de 2015

"Esprit de géométrie" e "esprit de finesse"







            As expressões são francesas e de Blaise Pascal, um gênio da matemática, inventor da máquina de calcular, filósofo, e mais um tanto de coisas que só os gênios são capazes. De Pascal eu só conhecia a frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, mas o “espírito de geometria” e o “espírito de gentileza” me conquistaram. Enfim, o que seria isso? Como o próprio nome diz, espírito de geometria seria a razão matemática, a razão exata, a de elementos invariantes, já o espírito de finura ou de gentileza representa a razão cordial, a lógica de coração, de acordo com Pascal. E o coração, este realmente tem razões que a própria razão não considera, o coração é um estranho para a razão.
            Colocando as coisas de outra maneira poderíamos dizer que: espírito de gentileza é o perdão e o espírito de geometria é a dureza de coração. O medicamento no hospital é o espírito de geometria, e a visita de quem ora pelos doentes é o espírito de gentileza. Espírito de geometria é o professor que não considera uma possibilidade diferente na resposta do aluno, e o espírito de gentileza é o professor que resgata um aluno perdido. Espírito de gentileza é a compreensão e espírito de geometria é o julgamento. Espírito de gentileza é a compaixão e espírito de geometria é a indiferença. Espírito de gentileza é a solidariedade e o espírito de geometria é o egocentrismo. A ciência seria a geometria e a espiritualidade a gentileza.
            Pascal dizia que essa contradição era necessária para a nossa vida, e que mesmo ambas as razões, a exata, calculada e a razão do coração são imprescindíveis. Elas se combateram, depois marcharam juntas, e hoje se convergem na diversidade. Não é que o espírito de geometria seja mau, ele é um lado objetivo que também faz falta, é necessário, porém a humanidade dos dias atuais nunca precisou tanto do espírito de gentileza. Hoje, mais do que nunca, urge o espírito de gentileza neste mundo caótico em que estamos inseridos. No contexto atual dos atentados na França, ouvi algumas opiniões de cientistas de relações internacionais. A maioria diz que a guerra iminente é corretíssima, que não há possibilidade de diálogo com terroristas, entretanto um dos cientistas políticos acredita na possibilidade de negociação porque senão a guerra nunca terminará, será uma bola de neve sangrenta. A possibilidade de negociação e diálogo seria o espírito de gentileza, o que nunca vai ocorrer.
            Bem, para ilustrar de forma prática: no filme “O carteiro e o poeta”, tem uma cena em que o poeta, ateu convicto, entra em uma igreja para se preparar para o batizado de seu afilhado, filho do carteiro. Mesmo sendo ateu, o poeta demonstra um comovente espírito de gentileza ao se ajoelhar e se persignar em respeito ao rito que assim ensina.  
            Outro exemplo: conheci por acaso aqui em Itajubá, Elika Takimoto, ganhadora do Prêmio Saraiva. Convidada para o lançamento de seu livro "Minha Vida é um Blog Aberto", que, aliás, é o nome de seu Blog, cheguei lá meio constrangida porque estava sozinha. A escritora veio ao meu encontro e durante todo o tempo fez-me sentir como se eu fosse a dona da festa. Percebi logo que ela era possuidora de um sensibilíssimo “esprit de finesse”.
E para finalizar, numa noite dessas atrás, ao telefonar para minha prima, já de noite, flagrei-a no caminho da casa de uma vizinha do bairro, no campo. Disse-me ela que estava levando uma cordinha mais comprida para o cãozinho doente que precisava ficar preso e ela ficara condoída ao ver que o bichinho pouco podia se movimentar pela cordinha pequena no pescoço. Uma pessoa que se presta a deixar o conforto de sua casa para dar mais alívio para um cãozinho doente é outro exemplo brilhante do espírito de gentileza.  
Bom, gente, não sei se isso se aprende ou se é próprio da pessoa. Para mim é qualidade, é virtude natural. Se forçado, deixa de ser virtude, percebem? É como a humildade, quem pensa que é humilde, já não o é. Isto é um tesouro que Deus talvez conceda a quem não pede honrarias nem dinheiro, mas apenas a condição de poder chegar mais perto Dele para ser uma pessoa melhor.     




quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O idoso e o cuidador - Uma relação de amor





            Há aqueles que passam pelas fases da vida com uma incrível naturalidade. E dessa forma, chegam à velhice ou cuidam de seus pais idosos como se estivessem a fazer uma agradável viagem de trem em um bonito dia de outono. Param nas estações, observam tudo à sua volta, sem reclamações, sem pressa, saboreando cada momento, com um interesse genuíno por tudo o que traz a viagem. Deixam-se levar pelo trem por tortuosas e perigosas montanhas, cansados, mas com serenidade. De outro modo, há aqueles que sofrem por cada estação, choram, reclamam, sapateiam, dão murros em pontas de facas, têm medo. Não são piores nem melhores que os primeiros, são apenas diferentes, talvez com uma sensibilidade mais aguçada.
Ninguém nasce sabendo. Qualquer coisa na vida é um aprendizado, sempre soubemos disso. Aprender um ofício, uma profissão, aprender técnicas em geral, mesmo trabalhos de arte como dançar, pintar, enfim, tudo exige doses de dedicação, esforço e tempo. Agora, aprender a lidar com pessoas e sentimentos é outra coisa. É e será sempre mais complexo. Exige amor, mais do que em qualquer outro empreendimento. Cuidar de um idoso é assim, trabalho de amor, sentimento que também tem que ser construído. Cometemos muitos erros, mas aprender é necessário, um aprendizado que muitas vezes vem tardiamente, nem por isso com menos nobreza e amor, assim como cuidar e educar os filhos. Quantas vezes nos deparamos com alguém que diz: “se eu soubesse o que sei hoje, faria diferente...” Todavia, nessa altura dos acontecimentos, os filhos já cresceram ou os pais já se foram e a experiência de uns dificilmente serve para outros. Cada um vive e aprende a sua própria.
            Ficar velho não é fácil, só quem já ficou é que sabe. A pele envelhece, as rugas aparecem, a beleza vai embora por mais cuidados que se tenha. Mas a beleza não é o que mais pesa e sim a saúde. Tornamo-nos mais lentos para caminhar, para pensar e as doenças rondam os velhos como ladrões à espreita ao perceberem a fragilidade da casa. Embora a literatura sempre enalteça a velhice, apontando e exaltando suas vantagens como a indispensável sabedoria, o fato é que ninguém quer ficar velho, todos preferiríamos ser jovens, ou pelo menos, menos velhos. De outra forma, ao envelhecer, em certa hora perigosa da vida, deparamo-nos com a inevitável finitude, conceito que já conhecíamos vagamente em épocas anteriores, mas que só se mostra claramente mais tarde. E a odiosa, mas bendita finitude vem vestida de sabedoria para nos ensinar que tudo passa, que a morte não tarda. E não nos resta alternativa senão viver. E também é nessa hora ou nunca que aprendemos a esvaziar a mala carregada de coisas de que não precisamos e a deixar a ansiedade de lado e refletir: a vida é cruel, mas incrivelmente bela. Eu era ainda tão jovem quando ouvi de uma velha senhora em um salão de beleza: “a velhice não é ruim, o que é ruim é o que vem com ela, como as doenças e as limitações”. Na época, a velhice estava tão longe como a terra da lua. Eu sabia que a morte existia, mas ela ainda não era real para mim, pois eu me sentia eterna. Hoje essa distância já é pequena, pois não só os homens já chegaram até a lua, como os anos passam aceleradamente.
 Ocorre ainda outro fenômeno, não só os velhos sofrem com a velhice. Os mais jovens, muitas vezes, sentem-se desconfortáveis com os velhos, como se essa presença lhes lembrasse como serão um dia. No mundo rápido de hoje, os idosos não têm muito espaço entre os jovens. São demorados para entrar nos carros, sentem-se inseguros para atravessar a rua, não escutam bem, não abdicam nunca de seu sempre “no meu tempo era diferente”. São ainda ridicularizados em programas cômicos passados na televisão e preteridos nas vagas de emprego. Ninguém gosta de reconhecer, mas interiormente, rejeita-se a velhice e às vezes o cuidado e a mesura exagerados com os idosos disfarçam uma rejeição inconsciente. Quando o idoso não é ignorado, é tratado como criança. Como encontrar uma saída ou meio termo para se viver uma velhice saudável ou conviver com quem já ficou velho? Nada mais real do que a consciência do fato de que velhice existe e que chegará para todos, pela lei natural da vida.
Todos nós seremos velhos, a menos que a morte nos leve prematuramente, óbvio. Outra obviedade: antes de envelhecermos, teremos pais velhos. A maioria dos jovens não pensa nisso. Nada mais natural, pois isso ainda não faz parte das preocupações inerentes à sua faixa etária. Ninguém nos disse quando éramos adolescentes: “um dia vocês terão que cuidar de seus pais...” é claro que essa constatação chegará a seu tempo para todos. Mas quando chega, percebemos que não estamos preparados para essa tarefa, ninguém está. Só o dia a dia dessa lida é que vai esclarecendo, orientando, iluminando o caminho que temos que seguir. Sem desmerecer o conhecimento que está nos livros, talvez quem mais possa falar sobre os dramas de relacionamentos entre pais idosos e filhos que os cuidam são eles próprios. Há e muito o que aprender antes de estar no campo de batalha. Por exemplo, podemos aprender que para os idosos a água do chuveiro é ameaçadora como uma cachoeira barulhenta e perigosa. Quando estão de costas para nós, se falamos um pouco mais alto, eles se assustam facilmente. Há outras tantas coisas simples que precisam e devem ser ensinadas e aprendidas, mas aprende-se mesmo é lidando, relacionando-se, sobretudo amando.  
            Dentre os insondáveis mistérios da vida repletos de porquês que nunca serão esclarecidos está por que alguns filhos passam tantos anos por tanto sofrimento ao cuidar de seus pais idosos e doentes e outros já não saberão como é isso, pois perderam os seus ainda bem cedo. Estes filhos nunca conhecerão como é difícil, mas ao mesmo tempo gratificante, cuidar de seus pais. Nunca os lavarão, nem escovarão seus dentes e seus cabelos. A estes filhos não estava destinada essa missão. Mas é bom que saibam como sentem seus amigos com seus pais idosos nesse contexto especial e delicado.     
            Parece que ontem mesmo éramos filhos cuidados e dependentes de nossos pais. Tínhamos alimentos, roupas, uniformes de escola, tudo limpinho e passado. Se fôssemos acometidos por gripes ou outras doenças, ou mesmo se feridos em alguma brincadeira com outras crianças, nossos machucados recebiam curativos e até beijos. Eram eles, sempre eles que lá estavam nos medicando, medindo nossa febre. Os problemas, ora, isso era coisa para eles, os adultos, que onipotentemente tudo sabiam e podiam arranjar e resolver de tal forma para que nossa vida fosse perfeita. Tudo era festa, íamos com eles de mãos dadas aonde quer que fossem, não nos preocupando com documentos, dinheiro ou passagens. Na festinha das escolas, lá estavam eles assistindo a nossa declamação de poesias do dia das mães e dos pais, aplaudindo cheios de orgulho e felizes. De repente, afinal não foi tão de repente assim que a situação mudou. Agora somos nós que temos que cuidar deles. Às vezes começa devagarzinho, um olhar cansado que detectamos, um andar trôpego que não observávamos anteriormente, um insistente esquecimento, uma tristeza que se transforma em depressão, enfim, um jeito débil que não era deles.
Sem saber como agir, os levamos ao médico. Crivados de perguntas, respondemos aos profissionais com certa insegurança porque não sabemos como e quando exatamente aqueles sintomas apareceram. Nossos pais eram tão confiantes, tão sabedores de tudo e não nos falaram nada, não queixaram. Até escondiam suas queixas. Nossos pais ficaram velhos. Na correria do dia a dia escapou ao nosso olhar aquelas manchas senis de suas mãos, aquele tom mais rouco de sua voz. Foi quando o geriatra os examinou. Pegou demoradamente em suas mãos e braços, examinou sua garganta com aquele olhar incisivo do qual nada escapa e lá vem novamente nos perguntar coisas que são sabemos responder. Dá até vontade de dizer com toda a sinceridade: “não sei, eles é que são nossos pais, eles é que sabem e sempre souberam de tudo, somos apenas os filhos”. E o médico nos olha com aquele aparente olhar acusador como se fôssemos nós os pais. É a velhice que chegou, senhora absoluta e cruel que, se perguntada, certamente nos diria que não foi de repente, ficou entrando aqui e ali, não sendo recebida como devia. Responderia a nós que ela é assim mesmo, vai chegando para seu lugar com todos os direitos reconhecidos e assegurados pela vida, não quer ser intrusa, apenas acolhida com dignidade e amor. Quando isso não acontece, ela desaba em cima de nós como um tsunami implacável que vai arrastando tudo. Leva a força dos ossos, do sangue, faz desordenar a ordem dos neurônios, leva a alegria, especialmente se essa não foi cultivada como deveria. E temos lá carimbado em nossa ficha de filhos: “culpados”. Voltamos para casa como uma lista interminável de recomendações, exames e receitas desse medicamento e desse outro. De manhã, quando o sol já estiver firme, devem caminhar pelo quarteirão, todos os dias. Muito líquido. Alimentação adequada.
Nossa vida desaba. E agora, como será? Tenho o meu trabalho, tenho minha vida própria, tenho meus próprios filhos para cuidar. E lá estão nossos pais, dependendo de nós para quase tudo. E quando eles pais são pacíficos, humildes e com bom temperamento, fica mais fácil. Tudo aceitam com uma resignação que até machuca. Capitulam diante de nossa autoridade, de nossa onipotência porque agora somos nós os sabedores. Somos nós que arbitrariamente tiramos deles seus documentos e os carregamos em nossas bolsas porque eles já os esqueceram em supermercados e consultórios. Guardamos suas identidades conosco, é isso mesmo, literalmente, ou seja, aquele documento plastificado com suas fotos e assinaturas, mas o que é pior: confiscamos suas identidades próprias, sua subjetividade, esquecendo-nos de que eles ainda podem pensar, compreender e ponderar e mais, esquecendo-nos de que eles sofrem. Também confiscamos suas senhas bancárias, afinal pode ser muito perigoso e lá vamos nós assumindo suas vidas, tirando suas últimas possibilidades de exercitar a mente e usufruir de sua dignidade. Ficamos irritados com os esquecimentos, logo desabafamos com os amigos num sempre “... não sei o que fazer com meu pai e minha mãe...” Às vezes nossos idosos querem questionar, mas amedrontados, sem coragem para fazê-lo com o médico e muito menos conosco, aceitam e guardam dentro de seu coração uma certa revolta por que não foram perguntados sobre tal e tal questão. Sem ter como e com quem desabafar, o fazem com algum vizinho “... agora eles é que sabem, eles é que mandam”. Geralmente ficamos sabendo bem mais tarde, numa frase que escapa na conversa do portão da rua. Sem compreender bem o que é a velhice, na ânsia de restabelecer logo a rotina de antes, afobamos, tiramos tudo deles, dirigimos suas vidas da maneira que seja mais cômoda para nós, em função da nossa conveniência. E o que restou deles? Pessoas sem vida própria, mergulhados na apatia, com poucos direitos, como assistir novelas e com limites para tudo. Não é que sejamos maus, filhos ingratos e pessoas sem compaixão. Também nós somos pegos de surpresa. Também nós não podemos simplesmente abdicar de nossa vida, de nosso trabalho para nos dedicarmos inteiramente a eles. É um conflito terrível. Misturamos todos os sentimentos dentro de nós: culpa, compaixão, mágoa e revolta. Nos dias mais cansativos, quando o desânimo impera dentro e fora de nós, trazemos uma terrível pergunta que cala dentro de nosso coração e que não ousamos externar: “Então era isso que estava reservado para mim?” E então este filho se sentirá um monstro e seus tormentos se tornarão mais pesados ainda. Entretanto, ele sabe que ama seus velhos pais. Pois que saiba também que o que sente é apenas humano, demasiadamente humano, como diria Nietzsche, apenas produto de seu cansaço e de sua impotência diante de situações desconhecidas até então, afinal talvez essa odiosa pergunta “então era isso que estava reservado para mim?” também ecoa na mente dos idosos que, tão perplexos quanto seus filhos, estranham a vida, antes tão encantadora e agora tão má. 
            E quando nossos pais são bravos e rebeldes? Trancam sua autonomia a sete chaves. Fecham a cara, não facilitam nada. Desabam sobre nós todo o rosário de queixas e mágoas guardados a vida inteira. Enumeram cada cuidado que tiveram conosco, cobram cada ato de amor e nos culpam por sua infelicidade. E nós? Ficamos indignados. Não hesitamos em responder veementemente, armados até os dentes porque somos tão bravos e rebeldes como eles e como toda ferida mal curada, as chagas do passado voltam a se abrir. Às vezes, calamos para não piorar a situação, mas o desgaste é imenso.
Chegamos a sua casa e lá estão eles, outra vez, subindo na escadinha perigosa para pegar uma bobagem de que nem precisavam, justamente no compartimento mais alto do armário. Falamos, insistimos, ordenamos. É a mesma coisa que nada. Na semana seguinte fazem tudo outra vez. Escondem de nós suas proezas. Saem sozinhos, insistem em atravessar avenidas perigosas. Deixam o gás ligado, esquecem de levantar a tampa do fogão para fazer café, provocando acidentes. Não temos alternativas. Contratamos pessoas para ajudá-los contra sua vontade. Esses empregados que colocamos em suas casas, à sua revelia, têm a incumbência de cuidar deles, mas com a função especial e secreta de inspecioná-los na nossa ausência, verdadeiros espiões. Diante do médico, nossos pais contam sua versão da história. Até mentem. Dizem que fazem caminhadas, que tomam os medicamentos. Os médicos desconfiam deles, mas muito mais de nós, os filhos. Aí são claros: “seu pai precisa caminhar, se não fizer isso, ele não vai mais andar um dia...” e aí pensamos ... “esse médico é jovem ainda, não sabe de nada como é minha luta, quero só ver quando seus pais ficarem idosos”. Quando saímos do consultório, eles, os pais, são desafiadores, “pois sim que caminho!” Só mais tarde entendemos que a braveza era medo, era humilhação, cansaço e desilusão com a vida.
            Como se não bastasse tanta dificuldade, a velhice também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar dos pais. Nem sempre. Há que considerar que como as pessoas são humanas demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
            Lidar com a demência senil é tarefa delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida. Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu. Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira exacerbado, que a convivência fica quase impossível.    
            Não nos esqueçamos dos casos em que a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque perdeu a paciência e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.     
             Evidentemente, todo esse caos familiar vai se estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...” ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe, até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam:  “mas ninguém mesmo?” outros ainda insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar mesmo ninguém?   
Não há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso que não seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo. Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe, quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.          
Num dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado, tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr. Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua confiança no futuro cheio de projetos.  Ainda são eles, são os nossos velhos.

A princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha, dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de todas as nossas experiências. Como já mencionado no início, nunca saberemos por que tivemos que passar por isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.