Ela saiu de casa de bem com a vida. Para
dizer a verdade sentia-se muito bem neste último dia do ano. Decidiu que
prestaria mais atenção em todos os detalhes, em todas as pessoas, em todas as árvores,
em todas as coisas. O elevador demorou, mas ela não se alterou. Para que a
pressa? Os anos vêm, depois se vão, ficam para trás e novos anos virão. E nós?
Bem, nós viveremos alguns poucos anos porque a vida é curtíssima. Na rua foi
abordada por um casal que pedia informações sobre uma tal loja de artesanato.
Ela não conhecia e ficou desolada por não poder ajudar porque naquela manhã ela
estava realmente de bem com a vida, imbuída dos mais nobres sentimentos e
disposta a salvar o planeta de qualquer catástrofe se fosse preciso. No
supermercado cumprimentou a todos com delicadeza. Viu o preço do espumante
Nero, ficou tentada a comprar, mas desistiu, bobagem, já tinha vinhos e
espumantes para as Festas. Voltou pra casa ainda cheia de boas intenções e bons
propósitos para aquele dia e também para os próximos dias do ano novo que em
poucas horas estaria nascendo. Subiu para a sacada. Percebeu que alguns lírios
da paz estavam secos e foi podá-los. No momento em que podava a flor, foi
inundada por gratas lembranças dos antúrios da mãe, a eterna cuidadora e
guardiã das plantas e flores, e imediatamente lembrou-se de uma frase do pai
que ele sempre dizia se referindo ao casamento com certo escárnio: no início
tudo são flores ... Ela sorriu com
carinho. Sempre se espantava com a liberdade com que os pensamentos transitavam
a bel prazer por sua mente, sempre um puxando outro, sempre uma lembrança
puxando outra. E foi precisamente neste momento que ela sentiu uma ligeira
pontada dentro do peito, uma sensação estranha que ainda não sabia precisar se
era algo físico ou produto de suas emoções, e percebeu que aquele bem estar do
início do dia já não estava tão bem assim. Suspirou profundamente, sentiu
preguiça, lembrou-se das tarefas que ainda tinha por fazer, lembrou-se de
mágoas antigas, porém tentou afastar os maus pensamentos. Saboreou o tutu de
feijão que o marido fizera, pois de fato estava maravilhoso, e o gostinho do
sal, do bacon e o inalterável bom humor daquele homem salvaram o momento
perigoso. Às três da tarde, a tristeza voltou, irrompeu e finalmente imperou vitoriosa.
Derrotada, a mulher ficou imaginando como é que era possível ter outra dentro
de si tão diferente, obviamente que não apenas uma, havia muitas outras com os
mais diversos estados de espíritos e com quem ela era obrigada a conviver
diariamente. E comprovou a verdade de que a alegria é extremamente frágil e
fugidia, uma porcelana finíssima sempre prestes a quebrar, e lutar contra isso
era tão inútil como um exército de fracos gatos pingados a lutar contra legiões
de soldados robustos que se infiltravam por todos os flancos. Tentou em vão
vencer o momento depressivo. Observe que tudo se passava dentro dela, sem que
ninguém percebesse aquele turbilhão de pensamentos e sentimentos
contraditórios. Os primeiros fogos começaram a pipocar já de tardezinha. Ela
foi para a cozinha preparar o restante da sobremesa. Fazia tudo penosamente arrastando-se
como um moribundo que pela última vez se levanta da cama e ainda tenta andar
com passos cambaleantes. A mulher da manhã definitivamente não era a mesma
mulher da tarde. E ela esperou que a noite, sua hora preferida, lhe trouxesse
pelo menos algum sentimento que a consolasse. Então a noite benfazeja caiu
serenamente, e seu espírito foi se fortalecendo pouco a pouco. A julgar pela
paz que agora descia sobre ela como uma água tépida e reconfortante, todos os
demônios do meio-dia voltaram para suas cavernas. Havia música ao longe,
cheiros de carnes assadas, gritos de crianças brincando no por-do-sol,
gargalhadas sonoras. Embora fosse cedo para comemorar o Ano Novo, ela encheu
uma taça de vinho, saboreou o primeiro gole e deu o primeiro sorriso gostoso depois
de horas de aflição. Depois riu de si mesma, de seus medos, de seus conflitos.
Ergueu a taça para o espelho que refletia sua imagem e desejou para si mesma:
Feliz Ano Novo!
A vida real é a melhor ficção. Neste blog estão reunidos acontecimentos do cotidiano, histórias recheadas de verdade, humor e ternura.
terça-feira, 29 de dezembro de 2015
domingo, 27 de dezembro de 2015
Para o Ano Novo
No ano que vem
Ah! ... Eu vou ser feliz
Do jeito que eu sempre quis...
E mais um ano se vai e mais um ano
que vem. Como todos os anos, já refeitos
do sentimentalismo natalino, vamos nos vestir de branco, erguer taças de
champanhe, trocar votos de felicidades, estabelecer novas metas e abrigar no
coração a esperança para tempos melhores. Faz-se um breve intervalo de euforia que
culmina com o baile de réveillon onde
dançamos, comemos e bebemos, como se a vida fosse uma eterna festa! E que seja
pelo menos no último dia do ano! No dia
seguinte, um desconfortável silêncio se instaura como um prenúncio de realidade
com gosto de depressão e ressaca. A correria de fim de ano vem ao encontro da aceleração
planetária, expressão já na moda que traduz essa ansiedade generalizada que
oprime de tal forma as pessoas que não dá a elas a chance de refletir sobre a
vida, antes, obriga-as a vivê-la impetuosamente, passando a falsa impressão de
que o dia de amanhã tem que ser vivido hoje, pois o hoje não foi vivido a
contento, aliás, o mais apropriado seria falar em insatisfação planetária
acelerada. Afinal, donde vem tanta insatisfação, essa sensação amarga de falta,
de ausência?
Será que esse sentimento de incompletude
apareceu depois que o homem, que bem o diga Freud, passada a arrogância de seu narcisismo,
deparou-se com a fragilidade de sua, até então, indiscutível e pretensa
onipotência? Primeiro, descobriu que a Terra não era o centro do Universo, depois
que sua natureza não era assim tão diferente da dos animais e por fim, que ele
não era o senhor de sua própria casa, ou seja, havia uma grande parte da sua
mente que ele não conhecia e não podia controlar. Solapadas, assim, as bases
humanas, restou ao homem viver imprecisamente. Numa tentativa obstinada de
controle, o homem sempre retoma e retorna ao leme, nutrindo-se de uma teimosa
ilusão de que ele é quem manda e conduz. Doce ilusão, ledo engano! O rio corre
mesmo é sozinho. Mas o homem é assim desse jeito, é da essência humana achar
que pode tudo.
Mas,
enfim, como ser feliz nessa imprecisão e ausência de garantias? Como aquietar as ruidosas e dramáticas
emoções se elas nos lembram continuamente de que caminhamos num tênue fio a
milhares de metros do chão? Felicidade não tem fórmula nem receita, cada um que
descubra a sua, talvez “só mesmo em raros momentos de distração”, como disse Guimarães
Rosa que sabia de quase todas as coisas. Vamos vivendo, esbarrando na
felicidade aqui e ali, mas ela se esquiva, não se dá por inteira, até parece
querer nos dizer que ela só é plena quando nos esquecemos de persegui-la. Mas é
Ano Novo, então, vamos parar de reclamar, recomeçar aquela dieta, frequentar um
novo curso, sobretudo vamos amar um pouco mais as pessoas, a nós mesmos, os
animais, a natureza, a cidade em que vivemos, o nosso país, o nosso planeta
ferido e carente de amor. Vamos tentar ser mais tolerantes com a direita e com a esquerda.
E
para terminar, lembre-se, somos
apaixonáveis, somos sempre capazes de amar muitas e muitas vezes, afinal de
contas, nós somos o “Amor” (Carlos Drummond de Andrade).
sexta-feira, 25 de dezembro de 2015
História de Natal
A família era pobre, mas era feliz
porque a felicidade não é ter uma vida absolutamente sem problemas, nem estar
constantemente cheio de dinheiro, sucesso, com filhos perfeitos, carros do ano,
enfim, felicidade não é o que infelizmente hoje em dia se luta bravamente para
conquistar por aí. Saúde por exemplo, é um bem precioso, só que muitas vezes
ocorre que nós, ou alguém nosso fica doente e aí passamos por aflições, mas a
felicidade está acima disso porque a vida é bela mesmo assim. Voltemos à
família em questão. Sim, era pobre, mas no inverno sempre havia o fogão à lenha
que trazia calor e mantinha sempre aquecido o chá de hortelã, antes de dormir.
No verão, havia o rio que fazia uma represa e as crianças e mesmo os adultos se
refrescavam naquela água cristalina. Havia os vizinhos também pobres, porém
todos se ajudavam, de tardezinha conversavam em cadeiras na calçada e assim
levava-se a vida sem muito peso. De vez em quando saía discussões, a mulher trazia
um dos filhos arrastado pela orelha, às vezes xingava as panelas que estavam
velhas, porém insisto, eles eram felizes.
E o Natal chegando. Os rapazes e também
os mais novos sabiam que o Natal era missa do galo e com muita sorte um
franguinho caipira no almoço do dia 25. Não havia presentes nem árvore de
Natal. E naquele ano um dos meninos mais novos cismou que queria uma árvore de
Natal. A mulher olhou para aquele desejo com certa apreensão. Árvore não era
problema porque o irmão mais velho apareceu com um pinheirinho apanhado lá no alto
da campina. Logo alguém surgiu trazendo uma lata com areia e o pinheiro ficou
lá verdinho e pelado num canto da sala. O menino reclamou que para ser árvore
de Natal era preciso pendurar bolas coloridas nos galhos. Não havia bolas
coloridas nem em preto e branco, contudo alguém se lembrou de que as árvores de
Natal também normalmente tinham neve, e o algodão foi logo providenciado, o que
já deixou o pinheirinho com um pálido esboço de árvore de Natal americana, e pôs
o menino mais animado.
Uma semana antes do Natal, a mulher
soube que na casa dos Custódio estavam dormindo no colchão de palha pura, sem
lençol, que um dos garotos estava doente e que mal tinham o que comer. Então
ela deu uma boa vasculhada em seus lençóis velhos, escolheu umas roupas dos
meninos, cerziu umas já esgarçadas, lavou, passou. Que fique claro que ela não
deu do que sobrava, mas do que ainda usava. E quando o filho mais velho que já
trabalhava na canjiqueira apareceu com o dinheiro da semana, ela gastou uma
parte no armazém para comprar mantimentos, e de noitinha fez uma visita aos
Custódio e deixou com eles o que podia. Foi uma festa para aquela família. Logo,
outros vizinhos também deram alguma coisa que foi possível. Quando a mulher
voltou, foi repreendida pelo marido que reclamou que mal tinham para eles e ela
havia gastado um dinheiro que faria falta. A mulher respondeu que sempre se
dava um jeito.
Na véspera do Natal, alguém veio
avisar que havia na estação de trem alguns sacos endereçados à família. A
mulher mandou dois dos filhos irem ver do que se tratava, talvez fosse um
engano, não haviam comprado nada, encomendado nada, não esperavam por nada. Dia
24 de dezembro, chegam os dois moços à casa com três sacos que fariam inveja ao
Papai Noel. Havia uma carta. Era de um primo melhor de vida que há muito tempo
morava na capital e que andava sumido. Pedia desculpas por não mandar nada
novo, embora algumas coisas tivessem sido pouco usadas e talvez pudessem servir
para os meninos. Rasgaram os sacos e toda a família não podia acreditar: roupas
de cama, toalhas de banho e de mesa, roupas de homem, de crianças, vestidos,
sapatos, até brinquedos, tudo praticamente novo. E também havia uma caixa muito
bem embrulhada, envolta em palha e algodão, cuidadosamente lacrada. Quando abriram,
a surpresa foi ainda maior – bolas de Natal, de todas as cores, até douradas e
prateadas. Duas ou três haviam quebrado, mas as outras que eram muitas vestiram
o pinheirinho de Natal no melhor estilo natalino, e o menino mais novo passava
os dias e as noites de olhos arregalados para sua Árvore de Natal. Aquele Natal
nunca foi esquecido.
Esta história é real, bem, quem
conta um conto aumenta um ponto. Digamos que foi inspirada em fatos reais, um
pouco ou muito exagerados por mim. É uma história de minha gente, gerações
passadas que trataram de registrar o fato para que os que viessem depois
ficassem sabendo.
Sabemos que só há uma maneira de
receber, é dando, e isto é uma lei que funciona tanto para o bem como para o
mal. Tudo retorna para nós. Em uma crônica de Cecília Meireles, ela diz: “ ...
e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar um
flor, um pintinho, um caramujo, um peixe ...”
Os
melhores presentes nem sempre são os mais caros.
E as Festas estão chegando outra
vez. Feliz Natal!
Natal com presente de lua cheia
Ontem, noite de Natal, fomos passar
algumas horas para a ceia na casa de minha enteada. Como às vezes ou quase
sempre acontece, sou acometida por certa angústia que me aperta o peito e me
faz suspirar. Presumo que esta espécie de melancolia natalina acontece porque
esta época me remete aos pais que já partiram, e neste ano especificamente foi
impossível não me lembrar de minha grande amiga que também partiu tão cedo. Procurei
a sacada para receber aquela lufada benfazeja da noite santa, e qual não foi
minha surpresa ao dar com a lua cheia, brilhante reinando na imensidão do céu,
uma coisa linda de morrer!. Aí eu disse: Motta, você viu a lua? E ele, tomando
calmamente seu vinho, me contou que pela primeira vez, desde 1977, ou seja,
após 38 anos, a lua cheia apareceu para iluminar as festividades do Natal. E
que agora só no Natal de 2034. Só Deus sabe o que será de nós em 2034 ...
E eu fiquei ali curtindo minha taça
de vinho e refletindo sobre a Lua, sobre a Terra e outros planetas que não
vemos. Quando eu era menina, por intuição, já tinha desenvolvido duas
estratégias para afastar o medo ou angústia: uma delas era pensar que tudo
passa, por exemplo, se eu tinha uma prova difícil na terça, eu ficava pensando,
“na quarta tudo terá passado”, e, de certa forma, isto me consolava. Outra
estratégia era sempre olhar a lua e pensar que o universo deixava suspensas no
céu várias bolas, umas maiores, como nossa Terra, e outras bolas menores como a
lua, esta tão perto de nós, tão visível, tão magnificamente linda, ao alcance
de nossos olhos. E quando eu pensava que a vida dos homens se passava em bolas
que giravam num universo sem fim, eu, apenas um serzinho entre milhares e
milhões, meu medo de qualquer coisa ficava menor. Somos tão pequenos!
Bem, entre um vinho e outro, eu me lembrei do
que realmente estávamos comemorando: o nascimento do Menino Jesus. Do Menino
passei para o Pai, o Criador de todas as coisas, assim acredito! Sim só Deus
para criar um cenário tão genial, tão lindo para nos presentear. Tudo aí, de
graça, é só olhar para o Céu! É tudo nosso e tratamos tão mal este nosso mundo,
seja cultivando mágoas, seja maltratando o planeta. Somos muito pequenos!
Hoje, já dia 25, fui à missa de
manhã, e vi na procissão de entrada, o Menino que logo foi colocado no seu
bercinho de palha sob os olhos amorosos de sua Mãe e seu Pai. O Menino que foi
um rei que dizia que seu reino não era deste mundo, que viveu e cresceu
pobremente durante toda sua vida, e que nunca teve nada dele, nunca teve casa,
a não ser o Presépio de Belém, onde nasceu, e a cruz onde morreu, como já bem
nos lembrava Santa Teresa de Ávila. Na hora do “Glória”, aquela música
lindíssima “Glóooooooooooria, in excelsis Deo ...”, eu fui cantando a plenos
pulmões até que vi uma senhora velhinha na minha frente que também cantava
baixinho. Algo nela me lembrou minha mãe, a pele fininha, um jeito qualquer que
na verdade não sei precisar qual era, mas algo nela me despertou a lembrança de
minha mãe velhinha, aí pronto, já não consegui cantar, tranquei os dentes e
abri a comporta das lágrimas que se romperam profusamente. Ao final da missa
todos se cumprimentaram com alegria e eu já me sentia refeita da emoção.
Agora, abro o Face e vejo a neta de
meu marido postar uma frase sobre o Natal: “Minha ideia de Natal, se antiga ou
moderna, é bem simples: amar os outros. Pense sobre isto, por que temos que
esperar o Natal para fazer isso?” Não, não temos. Pode ser um bom propósito
daqui para frente. A lua cheia vai aparecer hoje de novo. Vou curtir este
presente!
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
Papai Noel
Nunca me lembro de ter acreditado
cem por cento em Papai Noel. Minha mãe, mulher muito prática para qualquer
questão, nunca falou sobre o assunto. Quando mencionávamos algo como deixar o
sapatinho na janela, ela escutava sem levantar os olhos da costura, e esboçava
um sorriso um tanto sarcástico no canto da boca. Mas não me queixo disso, o
encanto do Natal continuava incólume porque, não menos práticos do que ela, o
que nós queríamos de fato eram os presentes, fossem do Papai Noel, de nossos
pais ou ainda da maravilhosa tia Odete que nos enviava os embrulhos através do
ônibus que ia de Itajubá para Pedralva. E esperar a chegada do ônibus com os
presentes era a nossa alegria do Natal. Certa vez, não deu tempo de os presentes
serem colocados no ônibus, o que ocasionou uma verdadeira tragédia em nossas
expectativas natalinas. Subimos a ladeira para chegar à nossa casa com a boca
no mundo e os olhos inundados de lágrimas. Era a infância, época mágica com ou
sem Papai Noel.
Cada
família lida à sua maneira com essa questão de proteger ou não suas crianças na
crença no Papai Noel. Há os que acham que a verdade deve sempre prevalecer
ainda que os pequenos sofram com a realidade. Outros preferem proteger a
fantasia da criança custe o que custar. Há alguns dias, certa amiga me contou
como sua menininha voltou da escola meio triste pelo trágico boato de que Papai
Noel não existia. Algum coleguinha já mais escolado pela vida se encarregara de
transmitir a notícia. Minha amiga, sem saber como agir, optou por ficar triste
também se solidarizando com a menina. Tudo acabou bem quando o avô interferiu
consolando as duas, garantindo que ele próprio já se encontrara com o “bom”
velhinho.
Penso
que isso não importa, a criança, pela sua própria natureza, consegue transitar entre
a realidade e o mundo da fantasia numa boa, e se vale de mecanismos
desconhecidos dos adultos para tal proeza. Ela saberá de alguma maneira lidar
com a questão da existência ou não de Papai Noel. Certa vez, eu própria, com
receio de que minha mãe me apanhasse no flagrante, coloquei sorrateiramente
meus sapatos num canto meio escondido da janela. Eu já sabia que Papai Noel era
inventado, mas e se ... sabe como é? Sempre bate uma dúvida (se bobear, até
hoje!). Bem, no dia seguinte, constatei que o Papai Noel não viera. Os sapatos talvez
tivessem ficado muito escondidos para serem encontrados ou talvez Papai Noel estivesse
mesmo acostumado a colocar os presentes aos pés de nossa cama, ou talvez ele
não existisse mesmo. Li na crônica de Luís Fernando Veríssimo que o Papai Noel
em pessoa viera um dia até sua casa. Extasiado, Veríssimo abraçou sua bola de
futebol, acionou o revolver com espoleta e saiu correndo pela casa até que na
cozinha se deparou com o Papai Noel sem máscara tomando cerveja com a empregada,
era o Bataclan, uma figura folclórica de Porto Alegre. O escritor não se lembra
como racionalizou a situação, talvez o Papai Noel não existisse ou fosse mesmo
o Bataclan quando não estava em seu serviço habitual. Não importava, tudo ficou bem.
Veríssimo conclui dizendo que “o bom de ser criança é que a gente não precisa
racionalizar”. Verdade.
Entretanto,
a questão não é acreditar ou deixar de acreditar em Papai Noel. Naquela época
eu sofria porque na manhã seguinte quando saíamos de casa, ávidos por exibir
nossos presentes e admirar os das outras crianças, infalivelmente tínhamos que
nos deparar com os olhos das crianças pobres que subiam para o centro. Algumas
paravam para poder ver melhor as bonecas, os caminhões, as bicicletas, e nos
olhavam também. Este olhar eu não consigo esquecer. Lá onde moravam, ah ... lá
é que o “bom velhinho” não aparecia mesmo. E já é quase Natal outra vez.
sábado, 19 de dezembro de 2015
O peregrino
Chegamos afobadíssimas, minha irmã e eu
na rodoviária de São Paulo. Aliviadas, verificamos que ainda dava tempo pra um
café. Depois disso, nos sentamos no meio daquelas milhares e milhares de
pessoas que vão e vêm na maior rodoviária da América do Sul. Nem bem sentadas,
eu o avistei. Era um homem ainda jovem que caminhava meio cambaleante e vinha
em nossa direção. Eu disse, “minha irmã,
lá vem mais um, pois era o quarto ou o quinto do dia a nos pedir dinheiro”.
Mais um - menos um para abrir a bolsa e dar uns trocados. Eu sabia. Não deu
outra.
O homem caminhava pesadamente. Trazia
uma mochila velha nas costas. Estava suado e parecia estar bêbado ou talvez tão
cansado que sua lentidão não deixava que fosse direto ao assunto. Era pequeno,
atarracado e musculoso. Sentou-se na ponta do banco. Depois ajeitou a mochila
no chão como se fosse um travesseiro e deitou-se. Nós duas olhando pelo rabo do
olho. Não ficou mais que um minuto e levantou-se. Aí veio. Apresentou-se, ensaiando
um cumprimento dos mais galantes, pedindo nossa mão para beijar como se fosse
tirar a gente para uma dança. As pessoas que estavam por perto olhavam curiosas,
afinal todos adoram um espetáculo desde que não sejam protagonistas. Depois da
apresentação, pediu um real. Minha irmã, sempre paciente e caridosa, sabendo
que poucas pessoas dariam atenção a um homem pedinte e inconveniente, tirou dez
reais, dizendo, “um não, dou dez, o senhor
vá tomar um café com leite e comer alguma coisa”. O homem parecia não
acreditar. Os olhos quiseram marejar, ensaiou um discurso que engoliu e já
estávamos nos preparando para sair em busca de nossa plataforma quando surgiu
um policial, um segurança da rodoviária que se dispôs a nos defender. Enquanto
pedia os documentos ao homem, perguntou se ele estava nos incomodando, ao que
respondemos que não, que tinha sido apenas gentil e foi aí que a coisa mudou de
direção.
O homem se sentiu profundamente insultado
quando o policial nos fez aquela pergunta, como se ele fosse um criminoso. Pedimos
que deixasse pra lá e o policial, um tanto quanto frustrado, já se preparava
para ir embora, quando o pedinte exigiu mostrar os documentos. Abriu a mochila,
ofendidíssimo e apresentou carteira de identidade, CPF, carteira profissional,
até comprovante de residência. Tudo o que o policial queria era encerrar o
assunto, mas o homem insistia, indignado. Dizia que era um cidadão, um
trabalhador, já tinha passagem comprada para o norte de Minas. Enquanto isso as
pessoas assistiam a tudo, dando as mais variadas opiniões. As mulheres, em sua
maioria, tiveram pena e os homens olhavam com desdém e desconfiança aquele
personagem.
Aproveitamos uma brecha e vazamos, como
diz meu sobrinho. Já dentro do ônibus, enquanto esperávamos que o carro
partisse, minha irmã me chamou a atenção para olhar lá fora. O mesmo sujeito
estava deitado na plataforma ao lado. Deitou a mochila no chão, na frente do
ônibus e descansava. Mas, tal como fez conosco, não deu um minuto já se
levantava e agora discutia com o motorista. É, o mundo não tem jeito, a gente
quer consertar e vai ver que é assim mesmo que ele quer ficar. Cada um tem uma
história, embarcamos um pouco tristes, era quase Natal.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
Envelhecer: bom não é, mas que remédio?
Lendo
o texto que uma amiga postou no Face sobre “não querer ser jovem novamente”,
ponderei o seguinte. Bem, mas antes, falando mais sobre o texto, o autor nos
diz uma fala de Freud: “a morte é o alvo de tudo o que vive”. Ou seja, nossa
vida é um caminhar para a morte, e quer queiramos ou não (na verdade, não
queremos), vamos envelhecer, estamos envelhecendo ou já envelhecemos, e não há
nada, absolutamente nada que possamos fazer a respeito. Tudo nessa vida
envelhece, degenera-se, decompõe-se, e nós também. E depois da velhice, se não
morrermos antes disso, morreremos como todas as pessoas, como todo ser vivo, sem
exceção.
O
autor do texto nos aconselha a não querer ser jovem novamente, a abrir mão da
beleza exuberante, do frescor da pele jovem, da firmeza dos músculos, da
barriguinha de tanquinho, da memória infalível, e também nos aconselha a abrir
mão do passado e abraçar o presente. Se alguém já envelheceu, que aceite com
serenidade, sem querer ficar parecendo uma pessoa jovem, e isso também inclui
não exagerar nas roupas que só caem bem nos jovens ou nas jovens. Até já li
alguma frase de alguma entendida em etiqueta de quem agora não me lembro o
nome, que diz nada envelhece mais do que querer parecer jovem para sempre. É
verdade. Portanto, é um alívio poder relaxar e deixar acontecer, acolher a
velhice com aceitação e bom humor, pois sem o senso de humor a vida fica
difícil, até para os jovens.
Há
uma luta natural que nos impele a não aceitar a velhice, mas logo nos damos
conta de que não há como deter a lei natural da vida. Muitas plásticas,
procedimentos cirúrgicos, ou mesmo umazinha que seja (eu confesso que já fiz
uma) trará uma alegria momentânea e a ilusão passageira de ter bebido da fonte da
juventude eterna e de ter o viço de volta às nossas faces e corpos, mas a
velhice logo reclama e aflora aqui e ali mostrando que sua hora já chegou e lá
vem com as suas damas de companhia, as rugas, os pés-de-galinha, bigodes
chineses, e outros mais. É uma tortura lutar contra isso. É melhor capitular. Não
quis nem testar este novo produto tipo botox por algumas horas, uma coisa
realmente fabulosa, que tira rugas, manchas, olheiras, tira tudo, um verdadeiro
milagre, só que por algumas horas apenas. Até brinquei perguntando se vinha o
kit completo, quero dizer, o produto e o antidepressivo porque encarar o real
depois é uma lástima!
É
relaxar, é desapegar-se da imagem de jovem que não voltará. É sério, não
voltará. É verdade, e ter equilíbrio para tudo, para o comportamento, para as
roupas, ter cuidado com maquiagem exagerada. Nada mais triste do que uma velha
fantasiada de moça. Nada mais triste do que uma velha querendo viver paixões e
prazeres desenfreados. Isto não quer dizer que o amor e o relacionamento entre
pessoas mais velhas seja ridículo, não, o amor nunca será ridículo, o
companheirismo nunca será ridículo, o sexo nunca será ridículo, a menos que nós
os façamos assim.
A
despeito de tudo isso, não se pode negar que convivem dentro de nós, a criança,
o jovem ou a jovem que já fomos. Sim, somos a mesma pessoa com uma história
construída, com lembranças e emoções. No fundo não passamos de crianças que
apenas cresceram. Mas essa fase já passou. A menina e a jovem que fui são bem
acolhidas em meu interior, tenho o maior carinho por elas porque elas que me
sustentam, sem elas e a visão de vida que tiveram, eu não seria o que sou agora,
mas é preciso cuidado para não deixá-las me dominar, cuidado ao querer parecer
uma menina ou uma jovem quando já não o sou. Ser velha, tirando as limitações
físicas, não é ruim. Meu conselho, se é que posso dar conselhos, é sorrir e rir
muito. Os pés-de-galinha ficam mais acentuados, mas rir faz bem à alma, e esta,
bem, esta viverá para sempre e cabe a nós fazê-la bonita. Uma alma sábia é uma
alma bonita. Não deixe morrer a menina que está dentro de você, mas não se
vista como ela e nem queira ter a sua carinha. Já passou. Não dá mais.
Como
se aproxima o Natal, transcrevo aqui os “Versos de Natal” de Manuel Bandeira
que gosto muito e que justamente fala dos cabelos brancos, das rugas e também dos
desejos do menino que está dentro de cada um, e também fala do Natal, é claro:
“Espelho,
amigo verdadeiro, tu refletes as minhas rugas, os meus cabelos brancos, os meus
olhos míopes e cansados. Espelho, amigo verdadeiro, mestre do realismo exato e
minucioso, obrigado, obrigado!
Mas
se fosses mágico, penetrarias até ao fundo desse homem triste, descobririas o
menino que sustenta esse homem, o menino que não quer morrer, que não morrerá
senão comigo, o menino que todos os anos na véspera do Natal pensa ainda em pôr
os seus chinelinhos atrás da porta”.
Gente,
até o espelho, que não é mágico, nos fala a verdade! A gente é que não quer ver!
sexta-feira, 11 de dezembro de 2015
Um conto de Natal - (Conto premiado pela Centro Cultural Clube Itajubense em Itajubá - 2005)
Sofia
olhava atentamente para o parque de diversões. Via crianças e pais felizes. Pensava
que não podia haver felicidade maior na vida do que andar naquela roda gigante
ou na barquinha. Ah! Tudo devia ser bom!
Ela suspirou profundamente e se deu conta de que já era tarde. Sofia era
uma menina de nove anos, muito pobre. Seu pai estava desempregado e a mãe
trabalhava como cozinheira de um hotel elegante. Era uma mulher que quase nunca
sorria. Celinha, amiga de Sofia, também era pobre, mas sua mãe, ao contrário da
mãe de Sofia, era uma mulher alegre como ela só! Imensa de gorda, sentava-se
junto das meninas e conversava com elas. Até tinha enfeitado um pinheirinho
apanhado ali mesmo, pertinho da casa. Era dezembro, mês do Natal.
Sofia
não gostava do Natal. Ficava triste por causa dos presentes que nunca ganhava.
Tudo bem que o Natal não era só presentes, era tempo de ser feliz, lembrando o
nascimento de Jesus, que também fora pobre como ela. Ela sabia disso, mas Sofia
queria presentes. Só um. E se Papai Noel existisse mesmo, alguma vez ele já
teria trazido um presente para ela. Mas nunca, nunca trouxera. E ela tinha
visto que Papai Noel era apenas um homem fantasiado. Foi naquele Natal em que o
Velhinho, em pessoa, entregaria presentes para as crianças pobres lá na
Prefeitura. Sofia ficou maluca para ganhar um presente. A mãe não quis deixar,
disse que Papai Noel só existia para as crianças ricas. Sofia chorou e sob os
protestos da mãe foi buscar seu presente. Quando chegou perto da Prefeitura,
ficou desanimada. Não sabia que existiam tantas crianças pobres assim. Mas foi
furando gente de toda a maneira até chegar perto do Papai Noel. Foi então que a
confusão começou. Crianças e mais
crianças avançavam em direção ao saco de presentes e pulavam em cima do Papai
Noel que, nessa altura dos acontecimentos, estava bravo e xingava todo mundo. No
empurra-empurra a barba branca e o bigode caíram. Foi um vexame, quase uma
tragédia. Sofia caiu e por pouco não foi pisoteada. Voltou para casa chorando e
pensando que a mãe tinha razão. Não existia Papai Noel. Mas era criança e no
dia seguinte, sarou com o abraço afetuoso da mãe de Celinha que lhe deu uma
cocada ainda quentinha. Tudo bem. Papai Noel não existia, mas ainda assim Sofia
queria um presente.
No ano seguinte, a
professora avisou que o Papai Noel estaria na escola e pediu que as mães também
fossem. A mãe de Sofia não quis ir, mas acabou cedendo e foram no dia marcado.
Só que a fila era muito grande. Se ao menos a mãe tivesse saído mais cedo do serviço.
Sofia não se aguentava de tanta ansiedade. Mas bem na hora dela, os presentes
acabaram. Ela sentira vergonha, o rosto queimava de vermelho, como se tivesse
feito alguma coisa errada. Papai Noel, dessa vez, não ficou bravo, até lhe deu
um abraço. Voltaram para casa, mãe e filha, em silêncio. Sofia sentia uma
grande vontade de chorar, mas teve medo da mãe. As lágrimas saíam sem que ela
pudesse controlar. Foi direto para a cama e chorou tanto, tanto, que pensou que
ia morrer de tanto chorar. A mãe, silenciosa e séria como sempre, nem veio lhe
dar um abraço. Só mais tarde Sofia compreenderia que o sofrimento amolece o
coração das pessoas, mas algumas vezes endurece e para sempre. Naquela noite,
ela sonhou que estava em um grande parque de diversões e que tinha todos os
brinquedos só para ela. Que sorria, que ria muito mesmo, sentindo o vento no
rosto, enquanto a barquinha subia cada vez mais alto. Engraçado, tudo em câmera
lenta, como num filme em que ela tinha visto sobre uma menina que se perdia dos
pais e quando finalmente os encontrava, ia correndo lentamente, com uma música
linda de fundo. E desde então, para Sofia, câmera lenta virou sinônimo de
felicidade. Sofia acordou pela manhã, lembrou-se do sonho com carinho, mas
jurou que nunca mais iria para nenhuma fila de Papai Noel.
Era
domingo outra vez. Sofia foi chamar Celinha para irem ao parque. Celinha não
quis. Sofia foi sozinha e lá ficou com a cara grudada na grade. Não sabia,
então, que era observada pelo dono do parque, seu Nicolai, um russo gordo, com
cabelos, barba e bigode brancos. Ele chegou perto de Sofia. Como é o seu nome? Sofia -
Sofia,
você quer brincar um pouco no parque? - Eu?
Que-quero, mas não tenho dinheiro. - Eu
sei, mas eu sou o dono do parque e no meu parque, anda quem eu quiser.
Sofia não podia acreditar. Entrou pelo portão principal, como se fosse uma
princesa.
A
princípio, ela foi entrando timidamente, mas pouco a pouco, foi pegando o
jeito. Foi na barquinha, que subia cada vez mais alto, mais alto. Sofia sentia
um arrepio, uma felicidade estranha, como nunca então tinha sentido. O vento
batia em seu rosto, como no sonho. Agora ela ria alto, tão alto quanto a
barquinha. Lembrou-se de Papai Noel e dos presentes. Não tem importância, eu mesma vou comprar um presente quando crescer. E
vou pedir para embrulhar naquele papel verde brilhante com fita vermelha, como
nos filmes americanos. De repente, Sofia sentiu que a barquinha estava
balançando em câmera lenta. Será? Deve
ser impressão. Mas estava, podia jurar que estava. Se fosse um filme, as
pessoas poderiam ver seu sorriso, sua cabeça se movendo lentamente com os
cabelos soltos ao vento. Não viu que Nicolai a observava lá embaixo. Com as
mãos, tentava proteger os olhos da claridade e de vez em quando enxugava as
lágrimas. Lembrava-se da filha que perdera há tantos anos. É Natal, ele pensou.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
Viagem de Natal
Era Natal e todo ano as primas da
fazenda iam à Aparecida do Norte para agradecer à Nossa Senhora por todas as
graças recebidas. Passaram dois dias por conta da viagem, afinal o melhor da
festa é esperar por ela. Era só arrumação de todos os lados. A Nicota
arrematando um vestido estampado de última hora, a Sebastiana cozinhando os
frangos que iam levar, preparando a farofa. Não se falava em outra coisa.
Depois do almoço, ficaram um tempão papeando à toa, fazendo os planos para a
viagem.
A Conceição estava meio acabrunhada,
ninguém conseguia entender o porquê, até que ela falou, meu sapato tá ruim demais da conta sô, não vai dar pra ir com ele, eu tava com uma vontade danada de comprar um novo, acho que vou na cidade. A Maria implicou, que
bobagem, gastar dinheiro com sapato, imagine se a Ceição não tem sapato bom pra
ir, gente? Se ainda fosse eu. Mas todas as
outras primas deram a maior força, isso Ceição, vai sim, mais vale
um gosto que um tostão no bolso. Na véspera da
viagem para Aparecida, a Conceição levantou de madrugada, desceu a montanha,
louca pra chegar à cidade e procurar um sapato novo na loja do seu Ari. Seja
tudo pelo amor de Deus! Na véspera, à noite, quem falou que conseguiam dormir?
Era excitação pura, risadaria. Pensaram até em emendar, ficavam sem dormir
conversando, era tão bom! Mas não convinha, era perigoso de dar um sono louco
depois do almoço lá em Aparecida. A Ceição não aguentava de vontade de estrear
o sapato, foi lá no quarto buscar e ficou desfilando com ele, amaciando de um
lado e de outro, fazendo inveja em todo o mundo. A Maria implicou novamente, nem
bem morto, já esfolado ... capaz até de dormir com ele. Já faziam planos para ver quem
confessaria primeiro. Quando decidiram dormir, passava das duas da manhã. Já
tinham tomado bastante leite com goiabada dentro do copo. Cê
me chama, Maria? Pode deixar, Nicota. Com Deus, com Deus ...
No dia seguinte, de madrugada, desceram
todas com sacolas e risos debaixo do braço. Ainda estava escuro, cheio de
estrelas no céu. Chegaram até à porteira que dava para a estrada e lá ficaram
esperando a jardineira fretada para ir pra Aparecida. Seu Joaquim ficou de
pegar o pessoal do Silvério primeiro, depois passavam lá. Só dos Silvério davam
uns quinze, dos Ferraz uns dez, mais todas elas, enchiam o ônibus. Ai que
gostosura! Iam rezando o terço, depois cantavam, depois faziam graça. Valia a
pena esperar por essa viagem. E tá que esperam e nada do seu Joaquim apontar lá
na curva. O dia já tinha amanhecido, a impaciência começou a crescer. Uai,
gente, que será que houve? Não pode ter havido nada, senão eles já tinham avisado. A Nicota, de
vestido estampado novo, a Ceição, que nessas alturas estava com saudades do
sapato velho, o novo dava mostras de apertar do lado. Mais de sete horas da manhã,
não é possível. Até que enfim ouviram um barulho, mas não era do ônibus, era do
motor do Geraldo que vinha à toda. Chegou e avisou, gente,
não vai dar, a sogra do Joaquim empacotou agora de madrugada, a viagem fica pro
ano que vem.
Não dava pra acreditar, até que bateu um remorso por ninguém sentir a morte de
Dona Candinha, a tristeza era pela viagem que não iam mais fazer. Fazer o quê?
Deram meia volta e tornaram à fazenda, todas cabisbaixas, murchinhas,
suspirando fundo, a Ceição com os sapatos na mão.
A Maria quebrou o silêncio, fizeru
eu tomá banho à toa...
domingo, 6 de dezembro de 2015
Avó
De
quando em quando, minha avó tirava os óculos de aros dourados e fininhos que
ficavam sempre na ponta do nariz, e parecia fazer um esforço imenso para
alcançar o peito do pé. Os dedos finos e brancos se alongavam mais ainda e os lábios
se apertavam num franzir de boca, indicando que ela finalmente alcançava e
agarrava com dificuldade o pé, com a perna esticada na cama. A testa também
ficava franzida em mil rugas. Minha avó tinha uma ferida que coçava, dessas
enroladas em gases quilométricas. Aí, ela começava a massagear o pé com
movimentos suaves e demorados, para lá e para cá, até que tudo tivesse
sossegado. Tornava aos óculos e ao livro de oração, de capa preta e com um
dourado finíssimo na borda de cada página, o que fazia um dourado só, grosso e
imponente. E lá ficava minha avó, numa quietude de santos, aprendendo o caminho
da perfeição e em paz de gente mais velha que não mais precisa correr. Daí a
pouco, ela voltava a coçar o pé.
Eu
assistia a tudo encantada, por ser ainda criança, pois as crianças sabem tirar
encantamento de tudo, até de avó que coça a ferida no pé. Sua imagem, sentada
na cama, com a perna magra esticada, não me sai das mais queridas lembranças.
Seu cabelo liso, branquinho, puxado para trás e preso por dois pentinhos, sua
testa de baronesa, seu perfil nobre e seu olhar afiado. Haverá no mundo coisa
mais bonita e terna para lembrar?
quinta-feira, 3 de dezembro de 2015
Anarquia no Brasil
Acordei
mais cedo que o habitual. Senti que era um dia diferente. Os ruídos de fora
eram estranhos. Abri a janela e vi as ruas de minha cidade repletas de pessoas
agitadas. Gente que falava, gesticulava e esboçava sorrisos estranhos, com
caretas incrédulas. Outra enchente de lama? Aqui também? Não, o tempo é de
chuva, graças a Deus, mas nem tanto. Foi então que soube. Liguei a televisão, e
estarrecida assisti ao noticiário que explodia em plantões nervosos. Desceu do
Céu um emissário especial trazendo uma ordem suprema, divina e misteriosa que mudaria
todo o destino do país.
De
agora em diante não mais teríamos presidente, governadores, ministros, senadores,
deputados, chefes de gabinetes, secretários, secretários de secretários,
prefeitos, vereadores, assessores, assessores de assessores, tampouco partidos
políticos. O país, seus estados e cidades seriam agora governados por um
conselho de cidadãos, filhos da pátria, voluntários, cujas únicas condições
para exercer seus cargos seriam a HONESTIDADE e o AMOR por sua terra e por sua
gente. Os salários dos políticos, até então, inacreditáveis e inimagináveis
fortunas que fariam inveja ao pobre tio Patinhas, e fariam corar a nababesca
corte francesa de Maria Antonieta e sua turma, seriam destinados para creches,
educação, saúde, estradas, construção de vias férreas e outras necessidades
reais da população. Os funcionários remunerados seriam aqueles que trabalhassem
de fato, gente comum. E também aqueles que tivessem por função a verdadeira
utilidade pública, como limpeza das cidades, jardinagem, ensino público, enfim,
a administração necessária em geral. E semanalmente, os membros do conselho
federal, estadual e municipal se juntariam a esses servidores para pessoalmente
e efetivamente por a mão na massa, ou seja, cuidar de sua amada terra.
Todos
os políticos e afins ladrões cumpririam pena de prisão perpétua e eterna, com
tornozeleiras, braçadeiras e o diabo a quatro que os manteriam trancafiados
para sempre, ou melhor, passariam o resto da vida limpando o Rio Doce, o oceano
e cidades atingidas pela lama tóxica e a lama moral.
Os
partidos políticos estavam extintos. O conselho agora seria composto por
cidadãos que tomassem um único partido, o da solidariedade. Incrivelmente, logo
surgiram pessoas para o conselho voluntário. Aposentados, estudantes, homens,
mulheres, jovens e velhos, todos imbuídos do ideal de bem conduzir o país e as
cidades para o progresso e harmonia. Afinal, um país sem presidente, estados sem
governadores, cidades sem prefeito? Sem secretários, sem vereadores? Seria
possível? Anarquia? Fim do mundo? Utopia? Loucura geral?
Não,
não, apenas um sonho. Acordei novamente. Olhei pela janela e vi engarrafamentos
e pessoas que se arrastavam sob o peso da triste e corrupta realidade
brasileira. Olhei para a televisão e assisti às mais incríveis e criativas
notícias de corrupção, ao duelo entre políticos bandidos que se digladiam sem
se preocupar nem um instante com a pobre população. É, é tempo de oração.
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
Querida prima Hepburn
Quem
já não teve uma prima a quem admirasse profundamente? Eu tive e passei a
chamá-la de Prima Hepburn porque embora não se parecessem tanto assim, ela me fazia
lembrar a famosa atriz, pela elegância e beleza que exalava em todos os
momentos de sua vida. Não havia um instante sequer em que a Prima Hepburn não
estivesse absolutamente encantadora, fosse num baile, ou preparando um almoço
ou simplesmente caminhando. Há mulheres assim, que não se esforçam para serem
bonitas, no entanto são e pronto. É algo de dentro, uma elegância interior, um
charme nato. Parecem viver sempre envoltas em brumas. Não, não é para qualquer
uma.
Ela
era um pouco mais velha que nós e viajava para ficar conosco nas férias quando então
podia aprender a costurar com minha mãe, que sendo exímia costureira, não teve
aluna mais brilhante e eminentemente criativa que minha prima. De qualquer
pedaço de pano ela conseguia fazer uma blusa incrível ou um tubinho superelegante
à La Hepburn, que faria Madame Chanel babar de inveja! Melhor, se minha prima
fosse contemporânea de Madame Chanel, elas teriam formado uma dupla invencível.
A
Prima Hepburn sempre conseguia dar um toque diferente nas roupas mais comuns,
como por exemplo, no uniforme de colégio. Quem ousaria mexer num uniforme tão
tradicional? Pois ela subia um pouco mais a gola ou franzia o ombro e o
resultado era surpreendente! Anos mais tarde, quando esperava seu primeiro
filho, ela apareceu na cidade usando um vestido de grávida que era um luxo!
Imagine, ela conseguiu juntar o azul e o verde numa roupa, coisa impensável
para a época! Ninguém jamais havia tentado essa façanha, azul podia ser combinado
com outras cores, mas com verde, jamais! E ficou divino!
Quando
ela fez quinze anos, houve uma grande festa em sua casa. Não fomos porque ainda
éramos meninas e desajeitadas para bailes, mas fiz questão de ver as fotos
deslumbrantes, entre elas a foto do vestido que ela mesma fez e usou. Em certo
momento da festa, seu pai apareceu no melhor estilo vindo de dentro da casa, trazendo
os sapatos de saltinhos da filha em cima de uma almofada de veludo vermelho.
Não sei se por conta de minha alma encantada ou de meus sonhadores olhos de
menina, mas poderia jurar que os sapatos brilhavam como se fossem incrustados
de diamantes. O baile foi um acontecimento e tanto na cidade e a Prima Hepburn
se comportou como uma insigne princesa fazendo sua aparição oficial à sociedade
local. Aposto que também Lady Di ficaria meio sem graça se visse minha prima.
Estávamos
presentes no seu casamento, é claro. Eu não podia mais conter minha ansiedade
até que ela surgiu e foi caminhando para a igreja dando o braço ao pai. Ela
confeccionou seu próprio vestido de noiva e ele era simplesmente inédito. Prima
Hepburn escolheu um adorno para a cabeça parecido com aqueles que as espanholas
usam ou usavam, com o véu rendado caído assim de cima como uma cachoeira branca
e brilhante. Fiquei fascinada!
E
assim a querida Prima Hepburn seguiu pela vida, sempre elegante com os filhos e
agora com os netos. Sua pose de princesa amadureceu e ela está mais charmosa do
que nunca. Mas trago nas minhas mais caras recordações de infância a imagem de
minha prima a cantar enquanto fazia os moldes. Depois ela levantava cada peça e
balançava a cabeça satisfeita com sua própria obra de arte, o que fazia com que
seus longos cabelos negros dançassem de um lado para o outro. Eu, então, com
meus cabelos curtinhos de menina, suspirava profundamente e ficava espreitando
meio de longe para poder admirá-la à vontade. Não, decididamente não havia
prima mais linda e elegante no mundo!
Saramago
disse certa vez: “Que há de mais maravilhoso que o amor e a admiração de uma
criança por uma pessoa adulta?” É por aí, como dizem.
sábado, 28 de novembro de 2015
"Esprit de géométrie" e "esprit de finesse"
As expressões são francesas e de
Blaise Pascal, um gênio da matemática, inventor da máquina de calcular,
filósofo, e mais um tanto de coisas que só os gênios são capazes. De Pascal eu
só conhecia a frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, mas
o “espírito de geometria” e o “espírito de gentileza” me conquistaram. Enfim, o
que seria isso? Como o próprio nome diz, espírito de geometria seria a razão
matemática, a razão exata, a de elementos invariantes, já o espírito de finura
ou de gentileza representa a razão cordial, a lógica de coração, de acordo com
Pascal. E o coração, este realmente tem razões que a própria razão não considera,
o coração é um estranho para a razão.
Colocando as coisas de outra maneira
poderíamos dizer que: espírito de gentileza é o perdão e o espírito de
geometria é a dureza de coração. O medicamento no hospital é o espírito de
geometria, e a visita de quem ora pelos doentes é o espírito de gentileza. Espírito
de geometria é o professor que não considera uma possibilidade diferente na
resposta do aluno, e o espírito de gentileza é o professor que resgata um aluno
perdido. Espírito de gentileza é a compreensão e espírito de geometria é o
julgamento. Espírito de gentileza é a compaixão e espírito de geometria é a
indiferença. Espírito de gentileza é a solidariedade e o espírito de geometria
é o egocentrismo. A ciência seria a geometria e a espiritualidade a gentileza.
Pascal dizia que essa contradição
era necessária para a nossa vida, e que mesmo ambas as razões, a exata,
calculada e a razão do coração são imprescindíveis. Elas se combateram, depois
marcharam juntas, e hoje se convergem na diversidade. Não é que o espírito de
geometria seja mau, ele é um lado objetivo que também faz falta, é necessário,
porém a humanidade dos dias atuais nunca precisou tanto do espírito de
gentileza. Hoje, mais do que nunca, urge o espírito de gentileza neste mundo
caótico em que estamos inseridos. No contexto atual dos atentados na França,
ouvi algumas opiniões de cientistas de relações internacionais. A maioria diz
que a guerra iminente é corretíssima, que não há possibilidade de diálogo com
terroristas, entretanto um dos cientistas políticos acredita na possibilidade
de negociação porque senão a guerra nunca terminará, será uma bola de neve
sangrenta. A possibilidade de negociação e diálogo seria o espírito de
gentileza, o que nunca vai ocorrer.
Bem, para ilustrar de forma prática:
no filme “O carteiro e o poeta”, tem uma cena em que o poeta, ateu convicto,
entra em uma igreja para se preparar para o batizado de seu afilhado, filho do
carteiro. Mesmo sendo ateu, o poeta demonstra um comovente espírito de
gentileza ao se ajoelhar e se persignar em respeito ao rito que assim
ensina.
Outro exemplo: conheci por acaso
aqui em Itajubá, Elika Takimoto, ganhadora do Prêmio Saraiva. Convidada para o
lançamento de seu livro "Minha Vida é um Blog Aberto", que, aliás, é o nome de seu Blog, cheguei lá meio constrangida porque estava sozinha. A
escritora veio ao meu encontro e durante todo o tempo fez-me sentir como se eu
fosse a dona da festa. Percebi logo que ela era possuidora de um sensibilíssimo
“esprit de finesse”.
E
para finalizar, numa noite dessas atrás, ao telefonar para minha prima, já de
noite, flagrei-a no caminho da casa de uma vizinha do bairro, no campo.
Disse-me ela que estava levando uma cordinha mais comprida para o cãozinho
doente que precisava ficar preso e ela ficara condoída ao ver que o bichinho
pouco podia se movimentar pela cordinha pequena no pescoço. Uma pessoa que se
presta a deixar o conforto de sua casa para dar mais alívio para um cãozinho
doente é outro exemplo brilhante do espírito de gentileza.
Bom,
gente, não sei se isso se aprende ou se é próprio da pessoa. Para mim é
qualidade, é virtude natural. Se forçado, deixa de ser virtude, percebem? É
como a humildade, quem pensa que é humilde, já não o é. Isto é um tesouro que
Deus talvez conceda a quem não pede honrarias nem dinheiro, mas apenas a
condição de poder chegar mais perto Dele para ser uma pessoa melhor.
quarta-feira, 25 de novembro de 2015
O idoso e o cuidador - Uma relação de amor
Há aqueles que passam pelas fases da
vida com uma incrível naturalidade. E dessa forma, chegam à velhice ou cuidam
de seus pais idosos como se estivessem a fazer uma agradável viagem de trem em
um bonito dia de outono. Param nas estações, observam tudo à sua volta, sem
reclamações, sem pressa, saboreando cada momento, com um interesse genuíno por
tudo o que traz a viagem. Deixam-se levar pelo trem por tortuosas e perigosas
montanhas, cansados, mas com serenidade. De outro modo, há aqueles que sofrem
por cada estação, choram, reclamam, sapateiam, dão murros em pontas de facas,
têm medo. Não são piores nem melhores que os primeiros, são apenas diferentes,
talvez com uma sensibilidade mais aguçada.
Ninguém
nasce sabendo. Qualquer coisa na vida é um aprendizado, sempre soubemos disso.
Aprender um ofício, uma profissão, aprender técnicas em geral, mesmo trabalhos
de arte como dançar, pintar, enfim, tudo exige doses de dedicação, esforço e
tempo. Agora, aprender a lidar com pessoas e sentimentos é outra coisa. É e
será sempre mais complexo. Exige amor, mais do que em qualquer outro
empreendimento. Cuidar de um idoso é assim, trabalho de amor, sentimento que
também tem que ser construído. Cometemos muitos erros, mas aprender é
necessário, um aprendizado que muitas vezes vem tardiamente, nem por isso com
menos nobreza e amor, assim como cuidar e educar os filhos. Quantas vezes nos
deparamos com alguém que diz: “se eu soubesse o que sei hoje, faria
diferente...” Todavia, nessa altura dos acontecimentos, os filhos já
cresceram ou os pais já se foram e a experiência de uns dificilmente serve para
outros. Cada um vive e aprende a sua própria.
Ficar velho não é fácil, só quem já
ficou é que sabe. A pele envelhece, as rugas aparecem, a beleza vai embora por
mais cuidados que se tenha. Mas a beleza não é o que mais pesa e sim a saúde.
Tornamo-nos mais lentos para caminhar, para pensar e as doenças rondam os
velhos como ladrões à espreita ao perceberem a fragilidade da casa. Embora a
literatura sempre enalteça a velhice, apontando e exaltando suas vantagens como
a indispensável sabedoria, o fato é que ninguém quer ficar velho, todos
preferiríamos ser jovens, ou pelo menos, menos velhos. De outra forma, ao
envelhecer, em certa hora perigosa da vida, deparamo-nos com a inevitável
finitude, conceito que já conhecíamos vagamente em épocas anteriores, mas que
só se mostra claramente mais tarde. E a odiosa, mas bendita finitude vem
vestida de sabedoria para nos ensinar que tudo passa, que a morte não tarda. E
não nos resta alternativa senão viver. E também é nessa hora ou nunca que
aprendemos a esvaziar a mala carregada de coisas de que não precisamos e a
deixar a ansiedade de lado e refletir: a vida é cruel, mas incrivelmente bela.
Eu era ainda tão jovem quando ouvi de uma velha senhora em um salão de beleza: “a
velhice não é ruim, o que é ruim é o que vem com ela, como as doenças e as
limitações”. Na época, a velhice estava tão longe como a terra da lua. Eu
sabia que a morte existia, mas ela ainda não era real para mim, pois eu me
sentia eterna. Hoje essa distância já é pequena, pois não só os homens já
chegaram até a lua, como os anos passam aceleradamente.
Ocorre ainda outro fenômeno, não só os velhos
sofrem com a velhice. Os mais jovens, muitas vezes, sentem-se desconfortáveis
com os velhos, como se essa presença lhes lembrasse como serão um dia. No mundo
rápido de hoje, os idosos não têm muito espaço entre os jovens. São demorados
para entrar nos carros, sentem-se inseguros para atravessar a rua, não escutam
bem, não abdicam nunca de seu sempre “no meu tempo era diferente”. São ainda ridicularizados em
programas cômicos passados na televisão e preteridos nas vagas de emprego.
Ninguém gosta de reconhecer, mas interiormente, rejeita-se a velhice e às vezes
o cuidado e a mesura exagerados com os idosos disfarçam uma rejeição
inconsciente. Quando o idoso não é ignorado, é tratado como criança. Como
encontrar uma saída ou meio termo para se viver uma velhice saudável ou
conviver com quem já ficou velho? Nada mais real do que a consciência do fato
de que velhice existe e que chegará para todos, pela lei natural da vida.
Todos
nós seremos velhos, a menos que a morte nos leve prematuramente, óbvio. Outra
obviedade: antes de envelhecermos, teremos pais velhos. A maioria dos jovens
não pensa nisso. Nada mais natural, pois isso ainda não faz parte das
preocupações inerentes à sua faixa etária. Ninguém nos disse quando éramos
adolescentes: “um dia vocês terão que cuidar de seus pais...” é claro
que essa constatação chegará a seu tempo para todos. Mas quando chega,
percebemos que não estamos preparados para essa tarefa, ninguém está. Só o dia
a dia dessa lida é que vai esclarecendo, orientando, iluminando o caminho que
temos que seguir. Sem desmerecer o conhecimento que está nos livros, talvez
quem mais possa falar sobre os dramas de relacionamentos entre pais idosos e
filhos que os cuidam são eles próprios. Há e muito o que aprender antes de
estar no campo de batalha. Por exemplo, podemos aprender que para os idosos a
água do chuveiro é ameaçadora como uma cachoeira barulhenta e perigosa. Quando
estão de costas para nós, se falamos um pouco mais alto, eles se assustam
facilmente. Há outras tantas coisas simples que precisam e devem ser ensinadas
e aprendidas, mas aprende-se mesmo é lidando, relacionando-se, sobretudo
amando.
Dentre os insondáveis mistérios da
vida repletos de porquês que nunca serão esclarecidos está por que alguns
filhos passam tantos anos por tanto sofrimento ao cuidar de seus pais idosos e
doentes e outros já não saberão como é isso, pois perderam os seus ainda bem
cedo. Estes filhos nunca conhecerão como é difícil, mas ao mesmo tempo
gratificante, cuidar de seus pais. Nunca os lavarão, nem escovarão seus dentes
e seus cabelos. A estes filhos não estava destinada essa missão. Mas é bom que
saibam como sentem seus amigos com seus pais idosos nesse contexto especial e
delicado.
Parece que ontem mesmo éramos filhos
cuidados e dependentes de nossos pais. Tínhamos alimentos, roupas, uniformes de
escola, tudo limpinho e passado. Se fôssemos acometidos por gripes ou outras
doenças, ou mesmo se feridos em alguma brincadeira com outras crianças, nossos
machucados recebiam curativos e até beijos. Eram eles, sempre eles que lá
estavam nos medicando, medindo nossa febre. Os problemas, ora, isso era coisa
para eles, os adultos, que onipotentemente tudo sabiam e podiam arranjar e
resolver de tal forma para que nossa vida fosse perfeita. Tudo era festa, íamos
com eles de mãos dadas aonde quer que fossem, não nos preocupando com
documentos, dinheiro ou passagens. Na festinha das escolas, lá estavam eles
assistindo a nossa declamação de poesias do dia das mães e dos pais, aplaudindo
cheios de orgulho e felizes. De repente, afinal não foi tão de repente assim
que a situação mudou. Agora somos nós que temos que cuidar deles. Às vezes
começa devagarzinho, um olhar cansado que detectamos, um andar trôpego que não
observávamos anteriormente, um insistente esquecimento, uma tristeza que se transforma
em depressão, enfim, um jeito débil que não era deles.
Sem
saber como agir, os levamos ao médico. Crivados de perguntas, respondemos aos
profissionais com certa insegurança porque não sabemos como e quando exatamente
aqueles sintomas apareceram. Nossos pais eram tão confiantes, tão sabedores de
tudo e não nos falaram nada, não queixaram. Até escondiam suas queixas. Nossos
pais ficaram velhos. Na correria do dia a dia escapou ao nosso olhar aquelas
manchas senis de suas mãos, aquele tom mais rouco de sua voz. Foi quando o
geriatra os examinou. Pegou demoradamente em suas mãos e braços, examinou sua
garganta com aquele olhar incisivo do qual nada escapa e lá vem novamente nos
perguntar coisas que são sabemos responder. Dá até vontade de dizer com toda a
sinceridade: “não sei, eles é que são nossos pais, eles é que sabem e sempre
souberam de tudo, somos apenas os filhos”. E o médico nos olha com aquele
aparente olhar acusador como se fôssemos nós os pais. É a velhice que chegou,
senhora absoluta e cruel que, se perguntada, certamente nos diria que não foi
de repente, ficou entrando aqui e ali, não sendo recebida como devia.
Responderia a nós que ela é assim mesmo, vai chegando para seu lugar com todos
os direitos reconhecidos e assegurados pela vida, não quer ser intrusa, apenas
acolhida com dignidade e amor. Quando isso não acontece, ela desaba em cima de
nós como um tsunami implacável que vai arrastando tudo. Leva a força dos ossos,
do sangue, faz desordenar a ordem dos neurônios, leva a alegria, especialmente
se essa não foi cultivada como deveria. E temos lá carimbado em nossa ficha de
filhos: “culpados”. Voltamos para casa como uma lista interminável de
recomendações, exames e receitas desse medicamento e desse outro. De manhã,
quando o sol já estiver firme, devem caminhar pelo quarteirão, todos os dias.
Muito líquido. Alimentação adequada.
Nossa
vida desaba. E agora, como será? Tenho o meu trabalho, tenho minha vida
própria, tenho meus próprios filhos para cuidar. E lá estão nossos pais,
dependendo de nós para quase tudo. E quando eles pais são pacíficos, humildes e
com bom temperamento, fica mais fácil. Tudo aceitam com uma resignação que até
machuca. Capitulam diante de nossa autoridade, de nossa onipotência porque
agora somos nós os sabedores. Somos nós que arbitrariamente tiramos deles seus
documentos e os carregamos em nossas bolsas porque eles já os esqueceram em
supermercados e consultórios. Guardamos suas identidades conosco, é isso mesmo,
literalmente, ou seja, aquele documento plastificado com suas fotos e
assinaturas, mas o que é pior: confiscamos suas identidades próprias, sua
subjetividade, esquecendo-nos de que eles ainda podem pensar, compreender e
ponderar e mais, esquecendo-nos de que eles sofrem. Também confiscamos suas
senhas bancárias, afinal pode ser muito perigoso e lá vamos nós assumindo suas
vidas, tirando suas últimas possibilidades de exercitar a mente e usufruir de
sua dignidade. Ficamos irritados com os esquecimentos, logo desabafamos com os
amigos num sempre “... não sei o que fazer com meu pai e minha mãe...”
Às vezes nossos idosos querem questionar, mas amedrontados, sem coragem para
fazê-lo com o médico e muito menos conosco, aceitam e guardam dentro de seu
coração uma certa revolta por que não foram perguntados sobre tal e tal
questão. Sem ter como e com quem desabafar, o fazem com algum vizinho “... agora
eles é que sabem, eles é que mandam”. Geralmente ficamos sabendo bem mais
tarde, numa frase que escapa na conversa do portão da rua. Sem compreender bem
o que é a velhice, na ânsia de restabelecer logo a rotina de antes, afobamos,
tiramos tudo deles, dirigimos suas vidas da maneira que seja mais cômoda para
nós, em função da nossa conveniência. E o que restou deles? Pessoas sem vida
própria, mergulhados na apatia, com poucos direitos, como assistir novelas e
com limites para tudo. Não é que sejamos maus, filhos ingratos e pessoas sem
compaixão. Também nós somos pegos de surpresa. Também nós não podemos
simplesmente abdicar de nossa vida, de nosso trabalho para nos dedicarmos
inteiramente a eles. É um conflito terrível. Misturamos todos os sentimentos
dentro de nós: culpa, compaixão, mágoa e revolta. Nos dias mais cansativos,
quando o desânimo impera dentro e fora de nós, trazemos uma terrível pergunta
que cala dentro de nosso coração e que não ousamos externar: “Então era isso
que estava reservado para mim?” E então este filho se sentirá um
monstro e seus tormentos se tornarão mais pesados ainda. Entretanto, ele sabe
que ama seus velhos pais. Pois que saiba também que o que sente é apenas
humano, demasiadamente humano, como diria Nietzsche, apenas produto de seu
cansaço e de sua impotência diante de situações desconhecidas até então, afinal
talvez essa odiosa pergunta “então era isso que estava reservado para mim?”
também ecoa na mente dos idosos que, tão perplexos quanto seus filhos,
estranham a vida, antes tão encantadora e agora tão má.
E quando nossos pais são bravos e
rebeldes? Trancam sua autonomia a sete chaves. Fecham a cara, não facilitam
nada. Desabam sobre nós todo o rosário de queixas e mágoas guardados a vida
inteira. Enumeram cada cuidado que tiveram conosco, cobram cada ato de amor e
nos culpam por sua infelicidade. E nós? Ficamos indignados. Não hesitamos em
responder veementemente, armados até os dentes porque somos tão bravos e
rebeldes como eles e como toda ferida mal curada, as chagas do passado voltam a
se abrir. Às vezes, calamos para não piorar a situação, mas o desgaste é
imenso.
Chegamos
a sua casa e lá estão eles, outra vez, subindo na escadinha perigosa para pegar
uma bobagem de que nem precisavam, justamente no compartimento mais alto do
armário. Falamos, insistimos, ordenamos. É a mesma coisa que nada. Na semana
seguinte fazem tudo outra vez. Escondem de nós suas proezas. Saem sozinhos,
insistem em atravessar avenidas perigosas. Deixam o gás ligado, esquecem de
levantar a tampa do fogão para fazer café, provocando acidentes. Não temos
alternativas. Contratamos pessoas para ajudá-los contra sua vontade. Esses
empregados que colocamos em suas casas, à sua revelia, têm a incumbência de
cuidar deles, mas com a função especial e secreta de inspecioná-los na nossa
ausência, verdadeiros espiões. Diante do médico, nossos pais contam sua versão
da história. Até mentem. Dizem que fazem caminhadas, que tomam os medicamentos.
Os médicos desconfiam deles, mas muito mais de nós, os filhos. Aí são claros: “seu
pai precisa caminhar, se não fizer isso, ele não vai mais andar um dia...”
e aí pensamos ... “esse médico é jovem ainda, não sabe de nada como é minha
luta, quero só ver quando seus pais ficarem idosos”. Quando saímos do
consultório, eles, os pais, são desafiadores, “pois sim que caminho!” Só mais tarde entendemos que a
braveza era medo, era humilhação, cansaço e desilusão com a vida.
Como se não bastasse tanta
dificuldade, a velhice também pode trazer a demência, o que certamente piora a
situação, pois nesse caso não há um só argumento para usar com os velhos pais.
Só nos restará o exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e
apavorados, consultam a folha sobre as características da demência, item por
item. Reconhecem quase todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que
o casal fica demente ou um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o
outro se torna demente. As famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse
caso, pois numerosas, lá estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de
revezamento para cuidar dos pais. Nem sempre. Há que considerar que como as
pessoas são humanas demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida
de demência é mais um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos
homens são mais raros nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre.
Há filhos homens dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade
do que qualquer enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um
caso.
Lidar com a demência senil é tarefa
delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não
acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na
demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há
regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um
temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo
crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida.
Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu.
Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira
exacerbado, que a convivência fica quase impossível.
Não nos esqueçamos dos casos em que
a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de
doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer
dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de
hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros
tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se
agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica
obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque
perdeu a paciência e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê
outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que
somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à
sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.
Evidentemente, todo esse caos familiar vai se
estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para
lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para
auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também
precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de
problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse
ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos
cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que
haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que
invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não
aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil
insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os
pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude
dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua
cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era
reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando chegava
quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria essa moça
que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria chamá-la
saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de quando essa
preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha mãe, que até
então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara lucidez no
meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...” ao que eu
me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela voltaria,
mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia se
esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário dizer
que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe, até
que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos muitas
decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha tia: “onde
tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra
questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo
sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma
equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas
na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de
vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É
admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar
incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um
pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como
se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma
reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com
nenhuma ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam: “mas ninguém mesmo?” outros ainda
insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um
pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase
com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar
outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer
ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas
porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar
cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar
mesmo ninguém?
Não
há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso que não seja o
do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando nos
olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo. Despendendo
tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão prazer, que
os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de cuidados é muito
precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das feridas emocionais,
do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava escondida. Ainda
sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe, quando ficávamos de
mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca de carinhos que
nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por um segundo
sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha lembrança
aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos bolsos ou entre
os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos em frente à gruta
de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e que fizemos três
dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também em seguida.
Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo o período
difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo
com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.
Num
dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre
seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra
trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender
melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado, tentando
preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os ajudasse, o
conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr. Fulano”, depois
riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e já não entendemos o
restante, não tem final, parece que não conseguiram concluir. Tampouco enviaram
a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de expor seus medos, suas
inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na época as providências para
a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto eles, era o início daquela
desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele bilhete com tanto amor e
tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero que esse amor e essa
ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso coração o tempo todo. Também
olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco quando ainda éramos crianças,
olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua confiança no futuro cheio de
projetos. Ainda são eles, são os nossos
velhos.
A
princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha,
dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de
todas as nossas experiências. Como já mencionado no início, nunca saberemos por
que tivemos que passar por isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar
por outros dramas, são mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei,
podemos transformar o sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da
velhice uma época em que podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos,
como naquela agradável viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que
o trem chegue seguro ao seu destino final e saberemos que a viagem terá valido
a pena.
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