sábado, 7 de novembro de 2015

De Misa para D.Cora e Sandra

            Duas amigas queridas me instigaram a ler um livro: “A sociedade literária e a torta de casca de batata”. Trata-se de uma ficção adorável. Logo após a Segunda Guerra, os habitantes da ilha inglesa de Guernsey passam a escrever cartas para uma escritora de Londres, que se vê envolvida pela história dos habitantes da ilha que ficaram cinco anos sob o domínio dos alemães. Durante este tempo, estes habitantes criaram uma sociedade literária ou um clube de leitura, a princípio como uma espécie de manobra para despistar os indesejáveis novos ocupantes da ilha, e depois por puro amor à literatura.   

            Transcrevo aqui a carta que escrevi às minhas amigas agradecendo sua gentileza, e registrando minhas impressões sobre tão preciso livro:

De Misa para Cora e Sandra

Queridas amigas D.Cora e Sandra

         A exemplo dos habitantes de Guernsey, também quis escrever uma carta, mas para vocês.         Confesso que o início do livro “A sociedade literária e a torta de casca de batata” não me entusiasmou. Se não fosse pelas notas explicativas de D. Cora identificando e descrevendo as personagens, eu teria quase desistido. No entanto, fui em frente e logo depois me apaixonei. Eu me apaixonei pelos habitantes de Guernsey, pelos livros que leram, pelo caráter dos membros da Sociedade literária, pelos seus poéticos e interessantíssimos comentários sobre a leitura, e até pela malvada e venenosa Adelaide Addison, que “se alimentava de sua própria ira” (onde tem gente tem coisa de gente, como dizia minha tia Tuza).

         Também confesso que me identifiquei com a protagonista Juliet Ashton, não por sermos escritoras ... bem, a verdade é que eu tenho apenas a pretensão de ser uma escritora. Mesmo sendo ficção, eu me identifiquei com ela porque tal como eu, ela sofreu uma grande perda com a morte de seus pais quando ela tinha apenas doze anos: “Fui uma criança razoavelmente bem comportada até os doze anos, quando meus pais morreram (... ) Tornei-me uma menina zangada, amarga, intratável”.

Eu não perdi meus pais com doze anos, mas exatamente com essa idade eu perdi minha referência, minha própria identidade quando nos mudamos de cidade (ouvi um psicólogo falando sobre outras perdas que não as de pessoas, tão desastrosas quanto essas). O que foi um acontecimento normal na vida de meus irmãos, para mim foi uma verdadeira tragédia, uma ruptura, uma devastação. Então fiz minhas as palavras de Juliet porque eu também me tornei uma menina zangada e amarga. Lendo um poema de Rilke eu percebi o que havia acontecido: “depois que me assassinaram eu perdi um jeito de sorrir que eu tinha”. Bem, os livros fazem isso: ajudam-nos a identificar nossas perdas e nossos sonhos. São nossos grandes amigos, confidentes, companheiros, cura para muitos males, sejam para quem os leia, sejam para quem os escreve. Os personagens de Gernsey que o digam, pois foi pela Sociedade literária que conseguiram atravessar o difícil período da ocupação alemã, e sem perder o senso de humor. Eu transformo a ficção em realidade, não tem jeito mesmo.

         O mais interessante e atraente do livro é o modo como a literatura “agiu” na vida de cada um dos membros, sendo que até então, alguns sequer haviam lido uma revista inteira. O modo como eles se identificaram com o que liam, como o rapaz que leu e gostou de um poema de Wilfred Owen: “A doçura do céu paira sobre o mar – Ouça, o Todo Poderoso está acordado”. Ele acabou conquistando a moça por quem estava apaixonado ao declamar esta fala do poeta. Fantástico! Ou também a frase de Shakespeare: “O belo dia terminou e a escuridão nos aguarda”, amei! Concluo que mais do que a psicanálise, a literatura é um campo privilegiado porque a liberdade ficcional permite aos escritores não só projetarem aspectos de sua psique em personagens, como também captar e expressar algumas nuances que escapam ao discurso lógico da ciência, ou seja, a literatura cura ou conforta mais do que a psicanálise. Assim eu me identifiquei com Juliet quando ela falou de seus fantasmas do passado.

         É uma bela obra de ficção, embora as autoras tenham se baseado em fatos reais, como a guerra, e mesmo em pessoas transformadas em personagens, como acontece com fatos contados e pesquisados. Muda-se apenas o nome, e manda ver porque a história pertence à humanidade.

         Não posso nem pensar nos horrores da guerra, até filmes não gosto de ver, evito. Imagine só naquela época, os habitantes da ilha certamente passaram por privações, houve mortes e tudo o que está no livro. A mamãe contava que ela vivia com os ouvidos pregados no rádio e não perdia nenhuma notícia. Ela se emocionou muito com o “Dia D”, ficou o dia todo acompanhando.

         Enfim, livro adorável! Amei! Só tenho a agradecer às amigas pelo prazer que me proporcionaram.

Com amor

Misa

 
P.S.  Por que não fundamos uma Sociedade Literária para despistar os que não curtem a literatura? Estou pensando no assunto.

 

Para os leitores que estiverem interessados, depois passo a receita da Torta de casca de batata.

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