Duas amigas queridas me instigaram a
ler um livro: “A sociedade literária e a torta de casca de batata”. Trata-se de
uma ficção adorável. Logo após a Segunda Guerra, os habitantes da ilha inglesa
de Guernsey passam a escrever cartas para uma escritora de Londres, que se vê
envolvida pela história dos habitantes da ilha que ficaram cinco anos sob o
domínio dos alemães. Durante este tempo, estes habitantes criaram uma sociedade
literária ou um clube de leitura, a princípio como uma espécie de manobra para
despistar os indesejáveis novos ocupantes da ilha, e depois por puro amor à
literatura.
Transcrevo aqui a carta que escrevi
às minhas amigas agradecendo sua gentileza, e registrando minhas impressões
sobre tão preciso livro:
De
Misa para Cora e Sandra
Queridas
amigas D.Cora e Sandra
A exemplo dos habitantes de Guernsey,
também quis escrever uma carta, mas para vocês. Confesso
que o início do livro “A sociedade literária e a torta de casca de batata” não
me entusiasmou. Se não fosse pelas notas explicativas de D. Cora identificando
e descrevendo as personagens, eu teria quase desistido. No entanto, fui em
frente e logo depois me apaixonei. Eu me apaixonei pelos habitantes de
Guernsey, pelos livros que leram, pelo caráter dos membros da Sociedade
literária, pelos seus poéticos e interessantíssimos comentários sobre a
leitura, e até pela malvada e venenosa Adelaide Addison, que “se alimentava de
sua própria ira” (onde tem gente tem coisa de gente, como dizia minha tia
Tuza).
Também confesso que me identifiquei com
a protagonista Juliet Ashton, não por sermos escritoras ... bem, a verdade é
que eu tenho apenas a pretensão de ser uma escritora. Mesmo sendo ficção, eu me
identifiquei com ela porque tal como eu, ela sofreu uma grande perda com a
morte de seus pais quando ela tinha apenas doze anos: “Fui uma criança
razoavelmente bem comportada até os doze anos, quando meus pais morreram (... )
Tornei-me uma menina zangada, amarga, intratável”.
Eu não perdi meus pais com doze anos, mas exatamente com essa idade eu
perdi minha referência, minha própria identidade quando nos mudamos de cidade
(ouvi um psicólogo falando sobre outras perdas que não as de pessoas, tão
desastrosas quanto essas). O que foi um acontecimento normal na vida de meus
irmãos, para mim foi uma verdadeira tragédia, uma ruptura, uma devastação.
Então fiz minhas as palavras de Juliet porque eu também me tornei uma menina
zangada e amarga. Lendo um poema de Rilke eu percebi o que havia acontecido:
“depois que me assassinaram eu perdi um jeito de sorrir que eu tinha”. Bem, os
livros fazem isso: ajudam-nos a identificar nossas perdas e nossos sonhos. São
nossos grandes amigos, confidentes, companheiros, cura para muitos males, sejam
para quem os leia, sejam para quem os escreve. Os personagens de Gernsey que o
digam, pois foi pela Sociedade literária que conseguiram atravessar o difícil
período da ocupação alemã, e sem perder o senso de humor. Eu transformo a
ficção em realidade, não tem jeito mesmo.
O mais interessante e atraente do livro
é o modo como a literatura “agiu” na vida de cada um dos membros, sendo que até
então, alguns sequer haviam lido uma revista inteira. O modo como eles se
identificaram com o que liam, como o rapaz que leu e gostou de um poema de
Wilfred Owen: “A doçura do céu paira sobre o mar – Ouça, o Todo Poderoso está
acordado”. Ele acabou conquistando a moça por quem estava apaixonado ao declamar
esta fala do poeta. Fantástico! Ou também a frase de Shakespeare: “O belo dia
terminou e a escuridão nos aguarda”, amei! Concluo que mais do que a
psicanálise, a literatura é um campo privilegiado porque a liberdade ficcional
permite aos escritores não só projetarem aspectos de sua psique em personagens,
como também captar e expressar algumas nuances que escapam ao discurso lógico
da ciência, ou seja, a literatura cura ou conforta mais do que a psicanálise.
Assim eu me identifiquei com Juliet quando ela falou de seus fantasmas do
passado.
É
uma bela obra de ficção, embora as autoras tenham se baseado em fatos reais,
como a guerra, e mesmo em pessoas transformadas em personagens, como acontece
com fatos contados e pesquisados. Muda-se apenas o nome, e manda ver porque a
história pertence à humanidade.
Não posso nem pensar nos horrores da
guerra, até filmes não gosto de ver, evito. Imagine só naquela época, os
habitantes da ilha certamente passaram por privações, houve mortes e tudo o que
está no livro. A mamãe contava que ela vivia com os ouvidos pregados no rádio e
não perdia nenhuma notícia. Ela se emocionou muito com o “Dia D”, ficou o dia
todo acompanhando.
Enfim, livro adorável! Amei! Só tenho a
agradecer às amigas pelo prazer que me proporcionaram.
Com amor
Misa
P.S. Por que não fundamos uma
Sociedade Literária para despistar os que não curtem a literatura? Estou
pensando no assunto.
Para os
leitores que estiverem interessados, depois passo a receita da Torta de casca
de batata.
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