sábado, 7 de novembro de 2015

Eu, touro


 
Eu sabia da impossibilidade de minha sobrevivência. Já estava condenado a morrer desde que nasci. E quem não o está? Mais cedo ou mais tarde todos morreremos, animais, homens, enfim, todo ser vivo, fato inegável. E todos dizem que não querem morrer em sofrimento. Eu também não. Dizem até “eu quero morrer assim, de uma vez só, instantaneamente”, como se não houvesse um abismo entre o que queremos e o que há de nos acontecer. Não, a vida não é assim, tampouco a morte. Cada um tem o que lhe é destinado.

Porém, com os animais a coisa é outra. Ficam à mercê dos homens que decidem que vida e fim terão. Fui criado para morrer na arena, destituído de respeito e dignidade que mereço. Não conheço os prados, nem a doçura do vento. Não conheço a carícia dos arbustos, apenas o rude roçar das capas dos homens que me tratam. Nunca senti alegria, nem consolo em minha vida. Estou só, pouco vejo os da minha espécie. Vivo cercado de dureza e escuridão, numa espera infinita de que tudo acabe. Tiraram-me tudo. Eu deveria amar a morte que se aproxima, pois só com ela terei a liberdade que nunca tive.

Tenho medo. Naturalmente que este medo é difuso, impreciso, algo que não se percebe como um sentimento real, pois vivemos e agimos movidos pelo instinto. Mas o medo existe para criaturas como eu, como também a dor. Temos sentimentos, sim, temos, só que nunca falaremos disso. Viveremos sempre no silêncio de nossos dias e noites.  

Logo terei quatro anos, pouca idade para um menino e tempo certo para um touro morrer. Não há como escapar do martírio que me espera. Alimentam-me fartamente para que eu me apresente no melhor estilo, algo como a última ceia de um condenado. Também me incitam à ferocidade. Estou cheio de vida, de vigor que perderei quando entrar na arena. Serei expulso do curro e lá, diante da ovação do público, os toureiros virão me espetar com várias bandarilhas. A dor será insuportável porque meus músculos serão atingidos e destruídos sob os aplausos de uma platéia enlouquecida. Numa luta desigual e covarde, o toureiro e os ajudantes vão se unir para me ferir. Receberei estocadas no pescoço e meu ódio aumentará a cada instante. Tudo o que move em mim dali por diante é matar aqueles homens crueis. No pouco tempo que me resta, minha vida será encarar os olhos daquele toureiro que, certamente, terá tanto medo quanto eu tenho, mas saberá enganar a todos, fingindo coragem e proporcionando um tremendo espetáculo ao público. Por um tempo nossos riscos serão os mesmos. De qualquer maneira, mesmo que o vença, no final o vencido serei eu.

Por um momento nossos olhares irão se cruzar. Por um ínfimo momento, o toureiro deixará de contar com a superioridade de sua inteligência e eu deixarei de contar com minha força bruta. Haverá uma fusão desconcertante de vida entre nós, em que não saberemos quem somos, apenas cumpridores de papéis já escritos desde os tempos mais remotos, tempos que remontam à Creta, ao Minotauro que, sendo fera e homem, mais do que ódio feroz, sentia solidão e medo da vida. Por um ínfimo momento nossos papéis serão invertidos, ambos sentiremos sede de viver. Por um átimo de segundo haverá uma possibilidade de acordo e de paz porque fundidos já não saberemos separar nossas vidas.

Entretanto, este momento passará tão instantaneamente que já não tenho certeza de que existiu. O toureiro retomará sua lida e eu minha sina. Ele exibirá sua roupa brilhante e eu meu sangue grosso e vermelho que escorre em profusão sobre meu dorso. Ele tomará a espada e eu minha coragem. A platéia cairá em delírio na expectativa do final. São humanos, apenas humanos, já trazem as touradas dentro de si desde sempre, carregam a crueldade e a maldição do intelecto.

A espada estará apenas a poucos metros de mim. Seu brilho me cega. Quando eu tiver o metal enterrado em meu pescoço, serei livre. Cumprirei o propósito de minha vida que é morrer na arena para divertir milhares de pessoas e eu apenas morrerei como milhares de outros touros, sem nome, nem história. Enquanto o toureiro será carregado pela multidão entre aplausos e gritos, eu serei arrastado como um monte de carne sangrenta. Mas já não mais sentirei dor. Finalmente, tudo terá terminado.

 

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