quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O idoso e o cuidador - Uma relação de amor





            Há aqueles que passam pelas fases da vida com uma incrível naturalidade. E dessa forma, chegam à velhice ou cuidam de seus pais idosos como se estivessem a fazer uma agradável viagem de trem em um bonito dia de outono. Param nas estações, observam tudo à sua volta, sem reclamações, sem pressa, saboreando cada momento, com um interesse genuíno por tudo o que traz a viagem. Deixam-se levar pelo trem por tortuosas e perigosas montanhas, cansados, mas com serenidade. De outro modo, há aqueles que sofrem por cada estação, choram, reclamam, sapateiam, dão murros em pontas de facas, têm medo. Não são piores nem melhores que os primeiros, são apenas diferentes, talvez com uma sensibilidade mais aguçada.
Ninguém nasce sabendo. Qualquer coisa na vida é um aprendizado, sempre soubemos disso. Aprender um ofício, uma profissão, aprender técnicas em geral, mesmo trabalhos de arte como dançar, pintar, enfim, tudo exige doses de dedicação, esforço e tempo. Agora, aprender a lidar com pessoas e sentimentos é outra coisa. É e será sempre mais complexo. Exige amor, mais do que em qualquer outro empreendimento. Cuidar de um idoso é assim, trabalho de amor, sentimento que também tem que ser construído. Cometemos muitos erros, mas aprender é necessário, um aprendizado que muitas vezes vem tardiamente, nem por isso com menos nobreza e amor, assim como cuidar e educar os filhos. Quantas vezes nos deparamos com alguém que diz: “se eu soubesse o que sei hoje, faria diferente...” Todavia, nessa altura dos acontecimentos, os filhos já cresceram ou os pais já se foram e a experiência de uns dificilmente serve para outros. Cada um vive e aprende a sua própria.
            Ficar velho não é fácil, só quem já ficou é que sabe. A pele envelhece, as rugas aparecem, a beleza vai embora por mais cuidados que se tenha. Mas a beleza não é o que mais pesa e sim a saúde. Tornamo-nos mais lentos para caminhar, para pensar e as doenças rondam os velhos como ladrões à espreita ao perceberem a fragilidade da casa. Embora a literatura sempre enalteça a velhice, apontando e exaltando suas vantagens como a indispensável sabedoria, o fato é que ninguém quer ficar velho, todos preferiríamos ser jovens, ou pelo menos, menos velhos. De outra forma, ao envelhecer, em certa hora perigosa da vida, deparamo-nos com a inevitável finitude, conceito que já conhecíamos vagamente em épocas anteriores, mas que só se mostra claramente mais tarde. E a odiosa, mas bendita finitude vem vestida de sabedoria para nos ensinar que tudo passa, que a morte não tarda. E não nos resta alternativa senão viver. E também é nessa hora ou nunca que aprendemos a esvaziar a mala carregada de coisas de que não precisamos e a deixar a ansiedade de lado e refletir: a vida é cruel, mas incrivelmente bela. Eu era ainda tão jovem quando ouvi de uma velha senhora em um salão de beleza: “a velhice não é ruim, o que é ruim é o que vem com ela, como as doenças e as limitações”. Na época, a velhice estava tão longe como a terra da lua. Eu sabia que a morte existia, mas ela ainda não era real para mim, pois eu me sentia eterna. Hoje essa distância já é pequena, pois não só os homens já chegaram até a lua, como os anos passam aceleradamente.
 Ocorre ainda outro fenômeno, não só os velhos sofrem com a velhice. Os mais jovens, muitas vezes, sentem-se desconfortáveis com os velhos, como se essa presença lhes lembrasse como serão um dia. No mundo rápido de hoje, os idosos não têm muito espaço entre os jovens. São demorados para entrar nos carros, sentem-se inseguros para atravessar a rua, não escutam bem, não abdicam nunca de seu sempre “no meu tempo era diferente”. São ainda ridicularizados em programas cômicos passados na televisão e preteridos nas vagas de emprego. Ninguém gosta de reconhecer, mas interiormente, rejeita-se a velhice e às vezes o cuidado e a mesura exagerados com os idosos disfarçam uma rejeição inconsciente. Quando o idoso não é ignorado, é tratado como criança. Como encontrar uma saída ou meio termo para se viver uma velhice saudável ou conviver com quem já ficou velho? Nada mais real do que a consciência do fato de que velhice existe e que chegará para todos, pela lei natural da vida.
Todos nós seremos velhos, a menos que a morte nos leve prematuramente, óbvio. Outra obviedade: antes de envelhecermos, teremos pais velhos. A maioria dos jovens não pensa nisso. Nada mais natural, pois isso ainda não faz parte das preocupações inerentes à sua faixa etária. Ninguém nos disse quando éramos adolescentes: “um dia vocês terão que cuidar de seus pais...” é claro que essa constatação chegará a seu tempo para todos. Mas quando chega, percebemos que não estamos preparados para essa tarefa, ninguém está. Só o dia a dia dessa lida é que vai esclarecendo, orientando, iluminando o caminho que temos que seguir. Sem desmerecer o conhecimento que está nos livros, talvez quem mais possa falar sobre os dramas de relacionamentos entre pais idosos e filhos que os cuidam são eles próprios. Há e muito o que aprender antes de estar no campo de batalha. Por exemplo, podemos aprender que para os idosos a água do chuveiro é ameaçadora como uma cachoeira barulhenta e perigosa. Quando estão de costas para nós, se falamos um pouco mais alto, eles se assustam facilmente. Há outras tantas coisas simples que precisam e devem ser ensinadas e aprendidas, mas aprende-se mesmo é lidando, relacionando-se, sobretudo amando.  
            Dentre os insondáveis mistérios da vida repletos de porquês que nunca serão esclarecidos está por que alguns filhos passam tantos anos por tanto sofrimento ao cuidar de seus pais idosos e doentes e outros já não saberão como é isso, pois perderam os seus ainda bem cedo. Estes filhos nunca conhecerão como é difícil, mas ao mesmo tempo gratificante, cuidar de seus pais. Nunca os lavarão, nem escovarão seus dentes e seus cabelos. A estes filhos não estava destinada essa missão. Mas é bom que saibam como sentem seus amigos com seus pais idosos nesse contexto especial e delicado.     
            Parece que ontem mesmo éramos filhos cuidados e dependentes de nossos pais. Tínhamos alimentos, roupas, uniformes de escola, tudo limpinho e passado. Se fôssemos acometidos por gripes ou outras doenças, ou mesmo se feridos em alguma brincadeira com outras crianças, nossos machucados recebiam curativos e até beijos. Eram eles, sempre eles que lá estavam nos medicando, medindo nossa febre. Os problemas, ora, isso era coisa para eles, os adultos, que onipotentemente tudo sabiam e podiam arranjar e resolver de tal forma para que nossa vida fosse perfeita. Tudo era festa, íamos com eles de mãos dadas aonde quer que fossem, não nos preocupando com documentos, dinheiro ou passagens. Na festinha das escolas, lá estavam eles assistindo a nossa declamação de poesias do dia das mães e dos pais, aplaudindo cheios de orgulho e felizes. De repente, afinal não foi tão de repente assim que a situação mudou. Agora somos nós que temos que cuidar deles. Às vezes começa devagarzinho, um olhar cansado que detectamos, um andar trôpego que não observávamos anteriormente, um insistente esquecimento, uma tristeza que se transforma em depressão, enfim, um jeito débil que não era deles.
Sem saber como agir, os levamos ao médico. Crivados de perguntas, respondemos aos profissionais com certa insegurança porque não sabemos como e quando exatamente aqueles sintomas apareceram. Nossos pais eram tão confiantes, tão sabedores de tudo e não nos falaram nada, não queixaram. Até escondiam suas queixas. Nossos pais ficaram velhos. Na correria do dia a dia escapou ao nosso olhar aquelas manchas senis de suas mãos, aquele tom mais rouco de sua voz. Foi quando o geriatra os examinou. Pegou demoradamente em suas mãos e braços, examinou sua garganta com aquele olhar incisivo do qual nada escapa e lá vem novamente nos perguntar coisas que são sabemos responder. Dá até vontade de dizer com toda a sinceridade: “não sei, eles é que são nossos pais, eles é que sabem e sempre souberam de tudo, somos apenas os filhos”. E o médico nos olha com aquele aparente olhar acusador como se fôssemos nós os pais. É a velhice que chegou, senhora absoluta e cruel que, se perguntada, certamente nos diria que não foi de repente, ficou entrando aqui e ali, não sendo recebida como devia. Responderia a nós que ela é assim mesmo, vai chegando para seu lugar com todos os direitos reconhecidos e assegurados pela vida, não quer ser intrusa, apenas acolhida com dignidade e amor. Quando isso não acontece, ela desaba em cima de nós como um tsunami implacável que vai arrastando tudo. Leva a força dos ossos, do sangue, faz desordenar a ordem dos neurônios, leva a alegria, especialmente se essa não foi cultivada como deveria. E temos lá carimbado em nossa ficha de filhos: “culpados”. Voltamos para casa como uma lista interminável de recomendações, exames e receitas desse medicamento e desse outro. De manhã, quando o sol já estiver firme, devem caminhar pelo quarteirão, todos os dias. Muito líquido. Alimentação adequada.
Nossa vida desaba. E agora, como será? Tenho o meu trabalho, tenho minha vida própria, tenho meus próprios filhos para cuidar. E lá estão nossos pais, dependendo de nós para quase tudo. E quando eles pais são pacíficos, humildes e com bom temperamento, fica mais fácil. Tudo aceitam com uma resignação que até machuca. Capitulam diante de nossa autoridade, de nossa onipotência porque agora somos nós os sabedores. Somos nós que arbitrariamente tiramos deles seus documentos e os carregamos em nossas bolsas porque eles já os esqueceram em supermercados e consultórios. Guardamos suas identidades conosco, é isso mesmo, literalmente, ou seja, aquele documento plastificado com suas fotos e assinaturas, mas o que é pior: confiscamos suas identidades próprias, sua subjetividade, esquecendo-nos de que eles ainda podem pensar, compreender e ponderar e mais, esquecendo-nos de que eles sofrem. Também confiscamos suas senhas bancárias, afinal pode ser muito perigoso e lá vamos nós assumindo suas vidas, tirando suas últimas possibilidades de exercitar a mente e usufruir de sua dignidade. Ficamos irritados com os esquecimentos, logo desabafamos com os amigos num sempre “... não sei o que fazer com meu pai e minha mãe...” Às vezes nossos idosos querem questionar, mas amedrontados, sem coragem para fazê-lo com o médico e muito menos conosco, aceitam e guardam dentro de seu coração uma certa revolta por que não foram perguntados sobre tal e tal questão. Sem ter como e com quem desabafar, o fazem com algum vizinho “... agora eles é que sabem, eles é que mandam”. Geralmente ficamos sabendo bem mais tarde, numa frase que escapa na conversa do portão da rua. Sem compreender bem o que é a velhice, na ânsia de restabelecer logo a rotina de antes, afobamos, tiramos tudo deles, dirigimos suas vidas da maneira que seja mais cômoda para nós, em função da nossa conveniência. E o que restou deles? Pessoas sem vida própria, mergulhados na apatia, com poucos direitos, como assistir novelas e com limites para tudo. Não é que sejamos maus, filhos ingratos e pessoas sem compaixão. Também nós somos pegos de surpresa. Também nós não podemos simplesmente abdicar de nossa vida, de nosso trabalho para nos dedicarmos inteiramente a eles. É um conflito terrível. Misturamos todos os sentimentos dentro de nós: culpa, compaixão, mágoa e revolta. Nos dias mais cansativos, quando o desânimo impera dentro e fora de nós, trazemos uma terrível pergunta que cala dentro de nosso coração e que não ousamos externar: “Então era isso que estava reservado para mim?” E então este filho se sentirá um monstro e seus tormentos se tornarão mais pesados ainda. Entretanto, ele sabe que ama seus velhos pais. Pois que saiba também que o que sente é apenas humano, demasiadamente humano, como diria Nietzsche, apenas produto de seu cansaço e de sua impotência diante de situações desconhecidas até então, afinal talvez essa odiosa pergunta “então era isso que estava reservado para mim?” também ecoa na mente dos idosos que, tão perplexos quanto seus filhos, estranham a vida, antes tão encantadora e agora tão má. 
            E quando nossos pais são bravos e rebeldes? Trancam sua autonomia a sete chaves. Fecham a cara, não facilitam nada. Desabam sobre nós todo o rosário de queixas e mágoas guardados a vida inteira. Enumeram cada cuidado que tiveram conosco, cobram cada ato de amor e nos culpam por sua infelicidade. E nós? Ficamos indignados. Não hesitamos em responder veementemente, armados até os dentes porque somos tão bravos e rebeldes como eles e como toda ferida mal curada, as chagas do passado voltam a se abrir. Às vezes, calamos para não piorar a situação, mas o desgaste é imenso.
Chegamos a sua casa e lá estão eles, outra vez, subindo na escadinha perigosa para pegar uma bobagem de que nem precisavam, justamente no compartimento mais alto do armário. Falamos, insistimos, ordenamos. É a mesma coisa que nada. Na semana seguinte fazem tudo outra vez. Escondem de nós suas proezas. Saem sozinhos, insistem em atravessar avenidas perigosas. Deixam o gás ligado, esquecem de levantar a tampa do fogão para fazer café, provocando acidentes. Não temos alternativas. Contratamos pessoas para ajudá-los contra sua vontade. Esses empregados que colocamos em suas casas, à sua revelia, têm a incumbência de cuidar deles, mas com a função especial e secreta de inspecioná-los na nossa ausência, verdadeiros espiões. Diante do médico, nossos pais contam sua versão da história. Até mentem. Dizem que fazem caminhadas, que tomam os medicamentos. Os médicos desconfiam deles, mas muito mais de nós, os filhos. Aí são claros: “seu pai precisa caminhar, se não fizer isso, ele não vai mais andar um dia...” e aí pensamos ... “esse médico é jovem ainda, não sabe de nada como é minha luta, quero só ver quando seus pais ficarem idosos”. Quando saímos do consultório, eles, os pais, são desafiadores, “pois sim que caminho!” Só mais tarde entendemos que a braveza era medo, era humilhação, cansaço e desilusão com a vida.
            Como se não bastasse tanta dificuldade, a velhice também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar dos pais. Nem sempre. Há que considerar que como as pessoas são humanas demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
            Lidar com a demência senil é tarefa delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida. Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu. Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira exacerbado, que a convivência fica quase impossível.    
            Não nos esqueçamos dos casos em que a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque perdeu a paciência e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.     
             Evidentemente, todo esse caos familiar vai se estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...” ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe, até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam:  “mas ninguém mesmo?” outros ainda insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar mesmo ninguém?   
Não há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso que não seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo. Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe, quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.          
Num dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado, tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr. Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua confiança no futuro cheio de projetos.  Ainda são eles, são os nossos velhos.

A princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha, dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de todas as nossas experiências. Como já mencionado no início, nunca saberemos por que tivemos que passar por isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.   

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