Ela saiu de casa de bem com a vida. Para
dizer a verdade sentia-se muito bem neste último dia do ano. Decidiu que
prestaria mais atenção em todos os detalhes, em todas as pessoas, em todas as árvores,
em todas as coisas. O elevador demorou, mas ela não se alterou. Para que a
pressa? Os anos vêm, depois se vão, ficam para trás e novos anos virão. E nós?
Bem, nós viveremos alguns poucos anos porque a vida é curtíssima. Na rua foi
abordada por um casal que pedia informações sobre uma tal loja de artesanato.
Ela não conhecia e ficou desolada por não poder ajudar porque naquela manhã ela
estava realmente de bem com a vida, imbuída dos mais nobres sentimentos e
disposta a salvar o planeta de qualquer catástrofe se fosse preciso. No
supermercado cumprimentou a todos com delicadeza. Viu o preço do espumante
Nero, ficou tentada a comprar, mas desistiu, bobagem, já tinha vinhos e
espumantes para as Festas. Voltou pra casa ainda cheia de boas intenções e bons
propósitos para aquele dia e também para os próximos dias do ano novo que em
poucas horas estaria nascendo. Subiu para a sacada. Percebeu que alguns lírios
da paz estavam secos e foi podá-los. No momento em que podava a flor, foi
inundada por gratas lembranças dos antúrios da mãe, a eterna cuidadora e
guardiã das plantas e flores, e imediatamente lembrou-se de uma frase do pai
que ele sempre dizia se referindo ao casamento com certo escárnio: no início
tudo são flores ... Ela sorriu com
carinho. Sempre se espantava com a liberdade com que os pensamentos transitavam
a bel prazer por sua mente, sempre um puxando outro, sempre uma lembrança
puxando outra. E foi precisamente neste momento que ela sentiu uma ligeira
pontada dentro do peito, uma sensação estranha que ainda não sabia precisar se
era algo físico ou produto de suas emoções, e percebeu que aquele bem estar do
início do dia já não estava tão bem assim. Suspirou profundamente, sentiu
preguiça, lembrou-se das tarefas que ainda tinha por fazer, lembrou-se de
mágoas antigas, porém tentou afastar os maus pensamentos. Saboreou o tutu de
feijão que o marido fizera, pois de fato estava maravilhoso, e o gostinho do
sal, do bacon e o inalterável bom humor daquele homem salvaram o momento
perigoso. Às três da tarde, a tristeza voltou, irrompeu e finalmente imperou vitoriosa.
Derrotada, a mulher ficou imaginando como é que era possível ter outra dentro
de si tão diferente, obviamente que não apenas uma, havia muitas outras com os
mais diversos estados de espíritos e com quem ela era obrigada a conviver
diariamente. E comprovou a verdade de que a alegria é extremamente frágil e
fugidia, uma porcelana finíssima sempre prestes a quebrar, e lutar contra isso
era tão inútil como um exército de fracos gatos pingados a lutar contra legiões
de soldados robustos que se infiltravam por todos os flancos. Tentou em vão
vencer o momento depressivo. Observe que tudo se passava dentro dela, sem que
ninguém percebesse aquele turbilhão de pensamentos e sentimentos
contraditórios. Os primeiros fogos começaram a pipocar já de tardezinha. Ela
foi para a cozinha preparar o restante da sobremesa. Fazia tudo penosamente arrastando-se
como um moribundo que pela última vez se levanta da cama e ainda tenta andar
com passos cambaleantes. A mulher da manhã definitivamente não era a mesma
mulher da tarde. E ela esperou que a noite, sua hora preferida, lhe trouxesse
pelo menos algum sentimento que a consolasse. Então a noite benfazeja caiu
serenamente, e seu espírito foi se fortalecendo pouco a pouco. A julgar pela
paz que agora descia sobre ela como uma água tépida e reconfortante, todos os
demônios do meio-dia voltaram para suas cavernas. Havia música ao longe,
cheiros de carnes assadas, gritos de crianças brincando no por-do-sol,
gargalhadas sonoras. Embora fosse cedo para comemorar o Ano Novo, ela encheu
uma taça de vinho, saboreou o primeiro gole e deu o primeiro sorriso gostoso depois
de horas de aflição. Depois riu de si mesma, de seus medos, de seus conflitos.
Ergueu a taça para o espelho que refletia sua imagem e desejou para si mesma:
Feliz Ano Novo!
É a nossa vida !
ResponderExcluirTão real Misinha. Sentimentos e pensamentos tão contraditórios neste final do ano em todos nós e sempre que um ano termina e outro começa. Você detalhou bem o que pretendemos ser daí em diante, porém, que não conseguimos sustentar nem por horas. Você foi perfeita nesta nossa ambiguidade da data.
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