segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Aborto – re nasce sempre a velha questão
Misa Ferreira

            Tenho ouvido nos noticiários que já se estuda a possibilidade de se inserir nas alíneas dos artigos da lei, nem sei se posso dizer assim, a legalidade do aborto nos casos em que a microcefalia pode ser causada pela “zica”. Também já ouvi que a microcefalia também pode ser causada por outros agentes infecciosos diversos. Parece que o caso ainda está em estudo. Sobre a questão do aborto legal neste caso específico, espantou-me a rapidez com que as mulheres entrevistadas nas ruas respondiam sem titubear: “é claro que o aborto tem que ser permitido, a mulher é dona de seu próprio corpo e pode fazer com que ele o que quiser”. Não quero tratar da questão da “zica”, da rubéola ou outro agente infeccioso que possa causar má formação nos bebês, tampouco quero falar da gravidez quando é o caso de estupro. Quero sim falar do valor da vida do bebê que não pode se defender dentro do útero da mãe. Em nome do direito à vida, não é permitido que alguém mate seu semelhante, então eu não posso entender como tantas pessoas defendem que a vida já iniciada de um ser no ventre da mãe pode ser legalmente interrompida, ou falando de forma mais dura, pode ser legalmente assassinada.
            Todas as vezes em que uma criança já nascida e crescida é abusada de qualquer forma pelos pais ou qualquer adulto, as fotos logo vão para a mídia e a indignação é total. Da mesma maneira, quando um pequeno se encontra em qualquer ameaça de perigo, seja em uma enchente, ou na janela de algum prédio, movem-se mundos e fundos para salvar a criança. Logo, lágrimas são arrancadas quando lá vem o bombeiro também chorando com o garotinho nos braços e aplausos explodem de todos os lados. No entanto, por que toda a raça humana não se une e não se move para salvar a vida da criança que ainda não pode ser vista, mas já existe dentro do corpo da mãe? Será que se mata tão facilmente porque o feto não chora, não grita, e, não sendo visto dilacerado, a consciência é aliviada? Faz sentido. Quando minha mãe cortava o pescoço do frango para depená-lo e prepará-lo para o almoço, nós crianças ficávamos indignadas com ela, ao que ela nos respondia: “não quero ver ninguém comendo frango na mesa, tá combinado?”. E na mesa o frango já cozido e cheiroso era tão diferente daquele que esperneava aflito. Já não nos lembrávamos de seu sofrimento. O que os olhos não veem o coração não sente? Então é assim?
            Não quero, não posso e não devo fazer nenhum julgamento. O que posso saber do sofrimento de uma mãe que já sabe que seu filho não nascerá normal, engraçadinho, esperto, inteligente e brilhante como os filhos dos outros? É um sofrimento extremo e incompreensível, mas de fato não posso saber a dimensão real do sofrimento que a mãe sente porque só ela sabe. Cada um é que sabe de suas dores e de suas cruzes. O que sei é que há uma vida indefesa que será assassinada. “Mas que espécie de vida esta criança terá” perguntam. Eu não sei. “Não será melhor que morra agora do que viver uma vida que não é vida?” Eu não sei. São perguntas que não sei responder, só sei que são questões dolorosas de abordar, quanto mais viver. Alegam que não se é possível falar com certeza o momento exato de quando a vida começa, ou dizendo de outra forma, quando o feto se torna um ser humano, ou para quem acredita em Deus, quando ele recebe uma alma. Para mim, é a partir da concepção, quando um ser novo se forma a partir dos que se uniram com ou sem a intenção de darem a ele uma vida. E há que se pensar que um dia este ser terá um rosto que poderá ser olhado e acariciado, um ser novo que tem direito a ter seus próprios direitos, assim como a mulher grávida se diz com o direito sobre seu próprio corpo. Ora, o que não pode é ela ter direitos sobre o corpo de outro ser, o do bebê que já vive dentro de seu útero. Este momento exato de quando a vida começa sempre foi e será mistério, não nos compete saber a exatidão dos mistérios porque já não serão mais mistérios. O que sei é que “a vida humana participa da vida de Deus”, como disse Carlo Maria Martini
            Há mulheres que optam pelo aborto simplesmente porque não querem mais engravidar e que saem em defesa de outras indecisas incitando-as a fazerem o aborto. Dizem que este tal sofrimento pelo conflito de ter feito um aborto não existe, que elas próprias nunca sentiram, que se trata apenas de um argumento religioso que induz ao conflito. Porém sabemos que são feridas tão profundas que raramente se fecham, na verdade quase nunca. Sempre que estou presente quando alguma mulher conta que passou por certo perigo de vida, invariavelmente ouço que a primeira coisa que pensaram foi: “meu filho, minha filha”, naquela preocupação primeira e imediata que tem toda mãe. Como então separar este amor pelo filho nascido do não nascido ainda? Logo a mulher a quem foi legado hospedar, cuidar, proteger e amar o ser mais frágil e mais indefeso que existe! Para mim, abrigar e amar um bebê que se forma no ventre é a maior honra e o maior privilégio que uma mulher pode ter.  
            Evidentemente que há casos terríveis como mulheres que são vítimas de estupros. Neste caso eu sei que é quase impossível que tais mulheres possam sentir amor pela criança em seu útero. Sei que há mulheres que procuram fazer o aborto porque são praticamente obrigadas pelos maridos maus e violentos que as ameaçam diariamente. Sei que há mulheres pobres que abortam porque não têm mais como sustentar sozinhas tantos filhos. Sei que há adolescentes viciadas em drogas que abortam porque talvez tenham sido expulsas de casa. Sei de tantas coisas tristes que levam à prática do aborto, mas também sei que não é possível que a criança inocente que já é um ser com vida seja punida com a pena de morte. 
            Há muito tempo atrás uma conhecida nossa, uma mulher já com quatro filhos vivendo numa tremenda dificuldade financeira sofreu um acidente terrível, quebrou braços e pernas, teve o baço perfurado, bateu a cabeça, foi operada, ficou em coma e sei lá mais o quê. Mas foi se recuperando, e um dia chega o médico no quarto em que ela estava e lhe dá uma notícia surpreendente: “a senhora está grávida, apesar de tudo o que passou, apesar de todas as drogas que lhe demos, de todo o sangue que perdeu. Acredito que seja o caso de tirar esta criança porque a senhora está fraca demais para aguentar esta gravidez, e além disso, com toda a certeza, se o bebê não morrer antes, vai nascer com sérios problemas físicos e mentais de toda a espécie”. A mulher que nem sabia que estava grávida foi inundada de amor e compaixão ao saber que seu filhinho havia sofrido tudo aquilo junto com ela, e foi peremptória: “Nem pensar! Nunca! Ninguém vai tirar meu filho”. Pois a gravidez foi adiante, e nasceu seu quinto filho homem, perfeito, um garoto sensível e esperto. Naquela época não se era possível ainda detectar problemas antes do nascimento. A mulher correu todos os riscos, ela já amava seu filho. O médico ficou de queixo caído.

            Mas as histórias são diferentes, cada vida é uma história diferente. Carregar uma gravidez já sabendo que o filho é doente, que não haverá cura, que dia após dia força e coragem terão que ser arrancados dolorosamente do coração e que a vida será um mar de transtornos, é uma tristeza, eu sei. Mas o prêmio virá, acredite. Este amor é para todos, mas feliz é aquela que se dispõe a aceitar. O que parece ter sido negado a esta mãe um dia voltará de outra maneira. Esta vida é um mistério. Não queiramos entender. Apenas respeitemos a Vida e Ela surpreenderá a todos nós.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Aromas e Proust






            Quem já não experimentou a sensação fugidia de ter estado em algum lugar exatamente no momento em que saboreia um bolo ou sente um aroma marcante? Falo sobre lembranças mais antigas, quase inconscientes, tão remotas que nos dão trabalho para não perder seu fio de existência. Aí a gente fecha os olhos e tenta reter aquele momento, aquela lembrança que já passa e que não temos bem certeza do que é, nem de onde. Não se trata de lembranças concretas, como quando podemos afirmar: “esta bolacha me lembra a que minha avó fazia”. Não. O que quero dizer é que não se trata apenas de lembrar, mas de viver e reviver o momento, de ter a sensação quase exata de que voltamos lá no tempo passado, como se o tempo de fato pudesse voltar.    
Marcel Proust, em uma entrevista sobre sua obra “Em busca do tempo perdido”, falou sobre a psicologia do tempo, estabelecendo uma distinção entre memória involuntária e memória voluntária. A voluntária seria aquela mais concreta e real, sem um envolvimento mais emocional e íntimo. O escritor até comparou a memória voluntária com um quadro pintado por maus pintores que não consegue despertar algo mais profundo em nós. Proust conta que, já adulto, ao voltar para casa num dia de inverno, triste e sombrio tal qual seu espírito, sua mãe lhe ofereceu chá com “madeleines”.  Simplesmente, o aroma e o sabor do chá e do amanteigado fizeram voltar de repente, jardins, seres esquecidos, personagens, a gente da aldeia e suas casinhas, a igreja e arredores. Segundo Proust, todas essas lembranças são involuntárias, formando-se por si próprias, as únicas realmente autênticas, que despertam em nós, à nossa revelia, o cheiro do passado.  Nas palavras do autor, são lembranças que nos trazem de volta as coisas numa dose exata de memória e esquecimento.
No espaço de levar aos lábios uma colherada de chá, onde o escritor deixara amolecer um pedaço do amanteigado, Proust foi invadido por um prazer delicioso e teria vivenciado novamente sua encantadora vida de menino em Combray. De onde teria vindo aquela poderosa alegria? Ele se perguntou. Um segundo gole já trouxe um pouco menos da estranha sensação do que o primeiro. Concluiu que a verdade que ele procurava não se encontrava no chá ou na bolacha, mas nele mesmo, no seu passado adormecido pelo tempo. O aroma e sabor do chá e da “madeleine” haviam permanecido por muito tempo,  mesmo após  a morte das criaturas e a destruição das coisas, palavras de Proust.  
Proust não sabia, mas o olfato tem se mostrado cientificamente o sentido mais fortemente manipulável. Parece que os odores ficam fixados no cérebro humano praticamente de forma perene e são armazenados sob a forma de emoções sempre relacionadas ao contexto em que nos marcaram. Assim, todas as vezes que sentimos esses aromas, vivenciamos novamente tudo aquilo que havíamos vivido anteriormente.
Bom, como vivemos na era do consumismo, é aqui que entra o neuromarketing, uma nova ciência que se baseia na arte de convencer alguém a comprar alguma coisa. Como funciona? Nossos sentidos são seduzidos por aromas e nós somos estimulados a consumir o produto. Me mude o nome, como dizia minha mãe, se você ainda não entrou em alguma loja perfumada, com música suave de fundo e não saiu de lá com alguma  sacola. Da mesma maneira, como não comprar um pão quentinho super cheiroso, saidinho do forno no supermercado? Pois saiba que já existem por aí sprays com aromas de pão, cheeseburger de bacon e sabe-se lá mais o quê. E o pão quentinho sugere que os outros produtos também são frescos, que convém comprá-los.

Uma coisa é Proust guiar-se pelo aroma do chá e da “madeleine” para partir em busca do tempo perdido no passado, e poder reviver, fascinado, os acontecimentos que o marcaram tanto. Uma coisa ainda é eu sentir o cheiro da borracha de que era feita minha boneca da Estrela de minha infância e fechar os olhos encantada. Outra coisa é ser manipulado pelas estratégias de experts da publicidade que agora nos mantém reféns das lojas e supermercados usando aromas químicos diversos que nos seduzem. Todas as coisas estão aí. Não quer dizer que sejam boas ou más. Vai depender  do uso que nós fazemos delas, como sempre.      

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

As tantas outras





Então, a mulher finalmente se decidiu por uma cirurgia plástica. O médico observava com atenção seu rosto, puxando de um lado, de outro, esticando um olho mais para cima, depois o outro. Pegou uma máquina fotográfica e bateu fotos de frente e de perfil. Depois disso, ele passou essas fotos em uma tela grande da parede de seu consultório, e foi explicando os detalhes que ele como um perito no assunto, julgava que deveriam ser alterados para melhorar o aspecto do rosto da jovem senhora. 
É claro que ela já tinha visto milhares de fotos de seu rosto e de seu corpo, aliás, o que a fez procurar um cirurgião plástico foi justamente por constatar em filmes caseiros e fotos e espelhos sinceros, o quanto estava envelhecida. Entretanto, aquela tela grande assim, quase obscena, escancarava o seu rosto. E foi aí que ela se estranhou. Enquanto o médico falava, ela se perguntava, estarrecida, quem seria aquela simpática senhora com pés de galinha, olhos cansados e outros tantos vincos espalhados ao redor da boca. Não podia ser ela, não devia ser ela. É que por dentro ela carregava tantas outras de outras épocas, algumas felizes, outras  sofridas. Mas aquele rosto não parecia ser o dela. Talvez fosse pela tela grande demais, não sabia ao certo. O que sabia, com certeza, é que não se reconhecia ali naquela foto. De qualquer forma, ficaram acertados assim, ela ia pensar e depois confirmaria.
Quando saiu da clínica, sem nenhum espelho nem tela onde pudesse se ver, a mulher se sentiu melhor e pensou que o mundo seria bem mais fácil se não existissem os espelhos. Agora sim, sou eu, constatou. O seu eu real estava em algum lugar recôndito e bem mais sólido do que em sua duvidosa e frágil imagem física. A de dentro, ou a outra, a invisível, a que não se podia pegar, nem esticar, esta sim era sua velha e adorável conhecida. Ali conviviam juntas a menina, a mocinha, a jovem, a mulher e a senhora. A menina, ah, essa era impossível, não podia contê-la, não sossegava nunca, era travessa, alegre e inquieta. A mocinha, bem, era bobinha, tímida e contida. Já a jovem, era audaciosa, mas sensível demais, querendo sempre agradar aos outros e sempre se ferrando. A mulher, já não era sem tempo, era mais madura, ponderava mais, pensava mais. A senhora, essa, definitivamente não sabia como se comportar, pois percebeu que existiam muitas dentro dela e não conseguia conciliar tantas. Ela riu sozinha de seus pensamentos tão malucos. Já dentro do carro, temeu olhar pelo espelho retrovisor, não sabia quem iria encontrar ou qual imagem estranharia.

Uma coisa era certa: ela sabia agora que era bem mais do que estava visível. Não gostava do aspecto cansado, da implacável velhice, mas não havia outro remédio senão encarar a si própria com bondade e simpatia. Talvez uma cirurgia fosse algo bom, talvez pudesse trazer alguma satisfação, porém sabia que seria momentânea, uma euforia até perigosa. O que valia mesmo, digamos que, a confiável, era aquela que não se podia ver, mas que existia intrepidamente sob camadas de tantas de si. Eu sou a outra, a jovem senhora pensou, um tanto triste, porém encantada. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Alegria








Quando foi que rimos com gosto, quero dizer, gargalhamos, rimos tanto que a barriga doeu e as lágrimas de alegria saíam profusamente de nossos olhos? Quem nos dera que as lágrimas fossem sempre de alegria. Quando foi que choramos de rir? Talvez tão intensamente assim tenha sido apenas quando éramos crianças ou bem mais jovens, quando ainda não conhecíamos o lado difícil da vida, ainda não tínhamos sofrido perdas dolorosas, quando a vida era mais fácil, quando não tínhamos que trancar portas durante o dia, nem precisávamos de cercas elétricas. Talvez quando ainda não tivemos que lidar com a falta de um emprego ou a doença na família. Pois é. A vida é de um jeito hoje e de outro jeito amanhã. Entre a manhã e a tarde se muda o tempo, diz a Bíblia, e é verdade. Todavia, não adianta ficar alegre só quando tudo vai bem, é preciso também aprender a ser alegre quando tudo vai mal. Olha só quem fala, logo eu, que qualquer coisinha já vira bicho de sete mil cabeças para mim. Eu também preciso aprender, é difícil, quase impossível.
Quanto mais o mundo se moderniza, permitindo muitas facilidades ao toque de um botão, as pessoas se tornam mais desanimadas e sofrem com a ausência de alegria. A Organização Mundial da Saúde estima que bem mais de 500 milhões de pessoas padeçam de uma tristeza crônica acompanhada de irritação ou mau humor, é a distimia, que dizem ser uma doença relativamente nova. Li um texto do Pe. Wagner da Canção Nova em que ele fala sobre “rascunho de alegria”, ou a alegria que vem de fora para dentro, ou aquela alegria que passa rápido como a compra de um carro novo ou um novo aparelho celular, ou ainda do efeito de um mero elogio. Bom, esta alegria logo se esvai como água.
O que nos resta? Se as coisas já estão feias, ficar mais tristes ou insatisfeitos ou deprimidos só fará tudo piorar mais ainda. A saída é cultivar a alegria interior, a que vem de Deus, que nos faz viver “entristecidos, porém alegres” como nos aconselha São Paulo. E também cultivar o senso de humor. Quem tem que não o deixe ir embora, e quem não o tem, que aprenda a ter. Pe Wagner cita uma frase de Santo Agostinho: “Ó homem, ó mulher, aprenda a dançar senão os anjos do Céu não saberão o que fazer contigo”. Viu só?
Mas eu ainda vou pela estrada da literatura e cito Guimarães Rosa porque o tema da alegria é bastante presente em sua obra. No conto “A menina de lá”, o autor nos mostra uma criança sensível e sábia em que a existência é plena de conformidade e alegria. Em “O espelho”, o narrador relata em primeira pessoa sua conclusão de que a vida seria então experiência extrema e séria, que exige o “despojamento de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra”. E no livro “Manuelzão e Miguilim”, eu cito uma frase sobre a alegria que eu amo de paixão: “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro”.

Nem sempre é fácil, aliás, quase sempre é muito difícil, o segredo é o desapego, o despojamento de tudo que não deixa nossa alma crescer como tão bem diz Rosa. Vamos aprendendo, vamos aprendendo. 

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Angústia de menina



            A menina olhou disfarçadamente através das cortinas do palco. A plateia começava a crescer. Sentiu um frio percorrer todo seu corpo. Tudo parecia mais fácil enquanto as cadeiras estavam vazias. Agora ela teria que declamar o poema de dia das mães para vários pares de olhos, e assim tudo ficava mais difícil. Pela primeira vez sentiu o peso da própria imagem, o peso dos outros. Desejou não ter aceitado a tarefa, e agora poderia estar com sua mãe lá nas cadeiras assistindo aos seus colegas. Era tarde demais. Lá vinha a professora loira, gorda e alta. Chamou a atenção da menina para que saísse de trás das cortinas. A menina foi para a varanda que havia atrás do palco. Lá ficou rememorando o poema, frase por frase, palavra por palavra. Depois se lembrou de que não fizera gestos e começou tudo de novo. De repente olhou para o céu estrelado e tudo o que quis era refugiar-se em uma estrela. Lá na rua de trás brincavam dois meninos distraidamente com a vida e a menina invejou a liberdade deles. Voltou-se para sua prisão, seu poema de dia das mães. Se ao menos o teatro estivesse vazio...
            A professora apareceu, toda imensa e loira. Seu cabelo liso e macio caía maravilhoso sobre o rosto, e ela percebeu a angústia da menina. Abaixou-se e lhe disse palavras de confiança. A menina acatou a generosidade da professora, mas sabia que nada nem ninguém poderia salvá-la naquele momento. Era como uma batalha, e como um bom soldado, esperava resignada a ordem de ataque. Olhou novamente para a noite fria que apenas cumpria seu papel com serenidade e jurou que na noite seguinte ela brincaria como os meninos e seria livre como eles. Enfim chegou o momento. A professora viera lhe buscar, e com gentileza encorajou-a a se apresentar. Alguém anunciava seu nome e dizia o nome do poema: Mãe. A menina viu-se sozinha no palco e no mundo. À sua frente milhares de caras e olhos esperavam que ela declamasse seu poema. Ela achou o rosto da mãe e começou a dizer os versos e a fazer os gestos, a princípio com moderação, depois com mais entusiasmo, depois ainda com pujança de ares teatrais. O poema não durou mais do que cinco minutos, talvez bem menos. Chuvas de aplausos caíram e ela percebeu que seu martírio terminara. Agradeceu com graciosidade e voltou-se para dentro da cortina, onde a professora a esperava com os braços abertos.
Mãe e filha voltaram felizes para casa. Nunca fora tão difícil e tão fácil. E a vida igualmente nunca fora mais bela.       
                                                                                                          

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Besouros, águias e crianças (e centopeias)





Li numa reportagem poética de Guimarães Rosa algo interessante sobre os besouros. Afirmava o escritor que a ciência, "em cômputos rigorosos" já demonstrara que o besouro não pode, de forma alguma, voar. Isso por causa da compleição do corpo, proporções, forma, peso, ou seja, cientificamente, os besouros não podem voar. Mas voam. Entretanto, acrescenta Rosa, às vezes acontece que um besouro descobre essa impossibilidade, e tomando consciência de sua inaptidão, não consegue subir nem mais um palmo e não se atreve mesmo.
 De outra forma, há aquela história da águia que fora criada entre galinhas e acreditava ser uma delas, não podendo, pois, voar porque galinhas não voam (A águia e a galinha, de Leonardo Boff). Após insistentes tentativas do sujeito que não se conformava em ver uma águia acreditando que era galinha, a águia finalmente voa, aliás, teve que fazê-lo, uma vez que foi jogada do alto de uma montanha. Ou voava, ou morria. No fundo, a águia não acreditava que podia voar.
Mais outra história que tem tudo a ver: se não estou enganada, é no livro "O mundo de Sofia". Embora eu tenha lido este livro, não me lembrava de um fato interessante que uma amiga trouxe à baila: mais ou menos assim, rezava a lenda que a centopeia dançava divinamente numa sincronia maravilhosa usando suas milhares de pernas (15 a 190 pares). Aí aconteceu que algum outro bichinho perguntou a ela como era sua técnica para usar tantas pernas ao dançar. E a centopeia parou de dançar para pensar como era a tal técnica, conclusão: ela simplesmente nunca mais dançou.
Transpondo para a condição humana, verificamos que somos capazes de proezas incríveis, vencemos obstáculos intransponíveis, porém apenas quando nos vemos em uma situação limite. Normalmente guardamos nossas ousadias e preferimos ações mais comedidas, como se guarda a roupa de festa para as grandes ocasiões e usa-se a roupa modesta para dias comuns. E nossa vida acaba sendo uma monótona sucessão de dias comuns. o foco todo parece estar centrado não naquilo que podemos ou não, mas no que acreditamos que podemos. Não está no poder, mas no crer. O besouro não pode voar, mas não sabe disso, acredita que pode e voa. A águia pode voar, mas se criada entre galinhas, acredita que não pode e não voa.
Em um documentário de televisão já foi mostrado que pessoas que nasceram com deficiência no cérebro, contra todas as evidências científicas, desenvolveram aptidões normalmente tidas como impossíveis. O cérebro, vamos dizer assim, molda-se à situação exigida. Em outro estudo, uma pessoa era monitorada enquanto fazia exercícios ao piano. O cérebro então exibia a área afetada pelos movimentos dos dedos comprimidos ao teclado. Entretanto, outra pessoa sentava-se ao lado da que praticava ao piano, mas não se mexia, apenas observava os movimentos, acompanhando mentalmente. Pois não é que o cérebro dessa pessoa, também monitorada, apresentava a mesma variação da primeira? A força da mente é demais! Diga a uma pessoa do que ela é capaz e observe. De outra maneira, diga do que não é e também observe.
A criança não sabe que não pode, portanto não tem medo de tentar, ela acredita e faz. A infância é receptiva e sábia, marcada pela intuição. Não é por acaso que Jesus aconselhava que acolhêssemos o reino de Deus como uma criança. Quando nos tornamos adultos, vacilamos na fé. Vamos caminhando sobre as águas, mas tal como Pedro, quando o vento fica mais acirrado, somos tomados pelo medo e afundamos. Já não podemos mais contar com a sagrada inocência da infância em que todas as coisas são possíveis.
Sejamos besouros ou águias, ou ainda centopeias, tanto faz, importa acreditar. Melhor ainda, sejamos como as crianças. Se a gente não se fizer criança, a vida ficará difícil, seremos estranhos num mundo cada vez mais estranho e impossível.  

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Ondas gravitacionais: assim caminha a humanidade





            Nesta semana explodiu uma notícia tipo bomba falando sobre ondas gravitacionais, teoria já conhecida e formulada por Einstein há cem anos e só agora comprovada, se é que este pode ser o termo correto, pois na verdade tais ondas só agora foram detectadas deixando a comunidade científica em polvorosa. É lógico que eu, como milhares de leigos, não entendemos nadica de nada. A coisa é complicada mesmo, pois envolve dois buracos negros que se convergiram em um só, envolve massas que se deslocam pelo espaço em movimento acelerado e que provocam ondas que são detectáveis em princípio pelo seu efeito na compressão e dilatação de objetos físicos. Copiei esta frase inteira do que li porque não saberia repeti-la.
Enfim, a partir do momento em que os cientistas ouviram um som que seria o barulho de fenômenos que aconteceram no universo há bilhões de anos, a ciência se depara com uma nova porta. Na realidade esta porta sempre existiu, sempre esteve lá e sempre esteve aberta. Einstein já havia percebido e alertado os cientistas sobre ela. Só que daqui para frente será possível atravessar esta porta e descobrir sabe-se lá mais o quê: mais e mais novas possibilidades e novidades para a humanidade, antes só imaginadas em livros e filmes. Falam já na incrível possibilidade de viajar no tempo, coisa que me encanta e me espanta.  
Bem, e nós com isso? Perguntando mais educadamente, o que isso afeta nossas vidas atuais com nossos problemas diários? Aí é que está: estes nossos problemas são e serão sempre pequenos diante da grandiosidade do mistério da existência humana, mas para nós que temos que botar a mão na massa diariamente, são problemões. Assim, tão rapidamente após a notícia não é possível para nós em nossa leiguisse, compreender a dimensão e importância das ditas ondas gravitacionais. Mas uma escritora e professora de física esclareceu a dimensão dessa novidade que me satisfez plenamente: comparou esta “descoberta” com o impacto que teve em nossas vidas o advento da eletricidade ou do raio X. Imagine viver sem a eletricidade, sem o raio X e outros exames decorrentes que possibilitaram o tratamento de diversas doenças. Meus avós em sua juventude usavam lampiões, que podem parecer românticos, mas nada práticos para nós em nossa modernidade. Minha mãe disse que a melhor invenção para ela havia sido a do chuveiro elétrico e dizia com gosto: “ah, o banho de chuveiro elétrico é uma gostosura!”. Vamos mais além: como é que vivíamos ou sobrevivíamos sem a internet? 
A empolgação científica, deixo para os físicos e entendidos, eu caminho por outra estrada, a do encantamento, a da literatura, dos romances e contos que povoaram a mente de tantos escritores que se inspiraram em possibilidades científicas, em ficções futurísticas, que o diga Ray Bradbury com suas histórias em mundos alternativos. Fico doidinha de pensar em naves espaciais chegando a planetas misteriosos, em civilizações avançadas, em viajar no tempo, em todas essas alucinações e desejos malucos.    
Não estamos preparados ainda. Nunca ninguém esteve, tudo e todos a seu tempo. Talvez e muito provavelmente as viagens no tempo acontecerão. E depois? Não haverá mais mistérios? É claro que sim. Os mistérios fazem parte da nossa natureza, são essenciais. O homem, inconformado com a massacrante realidade e com a lógica das coisas, será sempre movido pela necessidade de buscar e desvendar mistérios. Já dizia Guimarães Rosa: “Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro”.
Agora, descoberta que faça o homem ser feliz, isso é outra conversa.

            

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Pequena em fuga




            A menina acordou naquele dia, excitadíssima. Não demorou nem um centésimo de segundo para se localizar, pois já se lembrou com alegria de que estava na fantástica casa da avó. Tudo lá era diferente da sua própria casa, e nos seus pequenos quase três anos já sabia como era bom ter um lugar para ir e um lugar para voltar. Antes de dormir, já instalada numa cama improvisada pela avó, a garota observava a bondosa senhora que ia e vinha de lá para cá, sempre metódica e organizada, com fronhas, mantas e objetos desconhecidos. Era um novo mundo para a pequena hóspede. Acostumada às suas rotinas diárias, tudo ali parecia interessante, desde o colorido das colchas até a maçaneta da porta do guarda-roupa, incrustado com flores e frutas mínimas. A vida era uma aventura, disso a pequena também não tinha dúvidas.
            A mãe ocupava o quartinho dos fundos, tomando conta da irmã menor, ainda pouco mais que um bebê. Também era bom ficar com elas, observar a irmã agarrar e chupar o peito da mãe com uma força de gigante. Entretanto, a vinda da irmã menor significava que agora não era sempre que tinha a mãe só para ela. Então, enquanto a bebê mamava ou chorava, a menina esperava pacientemente com o livro de histórias na mão, para que a mãe lesse para ela. Já a avó, essa era inteira para a pequena, e no momento, aquele imenso quarto era tudo o que uma garota como ela precisava, pois os tesouros iam se apresentando generosamente cada vez que a avozinha abria uma gaveta e depois uma caixa e depois, um saquinho com terços e medalhas coloridas. Realmente o mundo era incrível.
A pequena era silenciosa, não perguntava, não questionava, apenas olhava. Era tímida, um jeito seu mesmo. Seu silêncio contrastava com a tagarelice das primas e primos que moravam logo adiante da casa da avó e que matraqueavam sobre coisas que a menina ainda desconhecia, acostumada como estava com o mundo pequeno e quieto da casa e cidade dos pais.
Era carnaval. Tudo na rua parecia para a garota uma loucura geral. Pessoas fantasiadas passavam cheias de alegria, jogando confetes coloridos e soprando apitos freneticamente como se estivessem a chamar o mundo todo para entrar na brincadeira. A menina gostava apenas de ver, pois entrar na folia era simplesmente uma espécie de violência para seu jeito quieto de ser. Eis que apareceu o tio puxando pela mão as três primas e veio buscar a pequena para ir ao clube dançar no baile infantil. Tudo já estava combinado e acertado. A mãe concordou e achou bom que a menina fosse com as primas. Mas a garota não quis e se fechou num silêncio impossível. Todos insistiam, agradavam, até que o tio, um tanto impaciente porque era seu jeito de ser, agarrou a mão da menina e disse: “não tem querer, você vai e vai gostar muito, quer apostar?”. As primas estavam com fantasias de bailarina e a pequena não tinha fantasia alguma. Estava apenas com seu vestido de chapeuzinho vermelho que trazia toda a história bordada no barrado da roupa. Mas não era sua fantasia, era seu vestido. Ela já sabia de cor toda a história que sempre conferia encantada rodeando o vestido.
A menina foi arrastada sem piedade, sentindo-se dolorosamente contrariada e perdida cada vez que se afastavam mais e mais da casa da avó. Tudo o que queria era a paz conhecida daquele quarto imenso com pequenos tesouros. Chegaram ao baile. O salão era impossível de descrever, nunca tinha vista nada igual. Era gigantesco aos olhos da criança. O som da orquestra era altíssimo, toneladas de confetes caíam como chuvas sobre as pessoas e serpentinas furavam o ar ameaçadoramente. As crianças estavam extasiadas, pareciam extremamente alegres. Somente a pequena olhava tudo com desconfiança e medo. O tio a empurrou para o centro do salão para que dançasse junto com as primas. Ah não, isso já era demais, foi o máximo que ela conseguiu suportar. Agora a pequena estava desolada e cheia de terror. Sentia-se num mundo horrendo com palhaços que para ela eram monstros assustadores. Ela fechou os olhos e cobriu o rosto com as mãos como se assim pudesse apagar o que a apavorava. E num gesto até surpreendente para ela mesma, se desvencilhou de tudo e de todos, procurou a saída e em poucos minutos ganhava a praça. Estava ofegante, medrosa, porém livre.
Era preciso voltar para a casa da avó, tal qual o chapeuzinho vermelho de seu vestido. E ela foi caminhando, sem imaginar os perigos de uma cidade para uma pequena como ela e sem que ninguém tivesse lhe ensinado o caminho. Em sua perspicácia de canhotinha, com uma incrível capacidade de localização, percebeu a torre da igreja e por ela foi se guiando, descia algumas ruas, olhava as casas e as pessoas. Todos eram absolutamente estranhos e desconhecidos. As pessoas, enlouquecidas pela festa, não estranhavam uma pequena garotinha sozinha, afinal tudo é possível em dias de carnaval. E ela continuou seu caminho, passou pelos arcos da ponte, viu o rio, quieto e manso lá embaixo. Seu coração batia descompassado, tinha medo e a solidão era insuportável. Passou a mão pelo rosto que estava quente e vermelho pelo sol. Gotículas de suor se formavam na testa. Não estava certa de que conseguiria voltar, mas ela nem sabia disso, era apenas um sentimento doloroso de estar só.   
Finalmente alcançava a rua da avó e a casa tão querida já se mostrava lá adiante. Ela apertou o passo e logo chegou. Abriu o portãozinho e entrou na sala onde a avó e a mãe conversavam. Estava salva. Para surpresa de todos, a pequena em fuga conseguira um feito até então inacreditável para os adultos. O tio mandão chegou logo em seguida, primeiramente apavorado, depois aliviado e depois ainda irritado por ver a audácia da garota. A mãe a repreendeu, mas não deixou de sentir um orgulho gostoso por ver que a filha era esperta e inteligente. A pequena estava feliz por ter voltado, porém algo nela estava quebrado. Aprendera que a vida era incerta e que na maioria das vezes ela teria que salvar a si mesma.              

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Carnaval em Pedra Branca em 1935 - Trecho do livro "Luzes do Passado" do Tote, meu pai



            O carnaval em Pedra Branca sempre foi uma festa de muita animação, mas a do ano de 1935 não resta dúvida que foi a maior, que deixou saudades para todos, até para mim, que na época era um adolescente de 16 anos, que gostava muito de música carnavalesca. Confesso que não tinha uma boa voz, que se misturava com as vozes do povo folião. Dizem que no carnaval canta-se de qualquer jeito, afinado ou não; o principal é expandir a alegria, o entusiasmo, qualidade que contamina qualquer um. O carnaval de 1935 foi muito bem organizado e tudo feito com a maior antecedência para não esquecer os pequenos detalhes. Foram muitos blocos dos quais ninguém tinha conhecimento e que só apareceram nos dias de carnaval, para receber aplausos da multidão, pela beleza e originalidade.   
            Pelo tempo decorrido, não me lembro o nome de nenhum bloco, mas daquele em que eu desfilei, este ficou gravado e não era bem um bloco, mas um simples caminhão, no qual foi alojado o “JAZ-BAND”, que animou todos os bailes e que as principais figuras eram o Gaspar Carneiro, o Finfa, o Silvio Faria, marido da Ditinha, este tomava conta da bateria e, ao mesmo tempo, era o cantor nomeado. Não era um conjunto musical dos mais afamados, mas que deu conta do recado, isto lá deu, e que nas voltas pelas ruas da cidade recebia palmas pelas músicas executadas e de todos aqueles que apareciam nas janelas das casas.
            Lembro-me que fui admitido no caminhão por uma cortesia dos integrantes, e usava uma fantasia, se isto podia ser chamado de fantasia, constava apenas de uma camisa de malandro, e a Bába, minha tia, me fez uns desenhos no rosto a carvão, de forma que estava muito bem caracterizado. Não me esqueci deste detalhe. O clube onde foram realizados os bailes era o prédio onde hoje é casa do Enéas, na parte superior, e ficava superlotado, cada um mais folião que o outro e havia os puxadores de cordão, que arrastavam para o meio do salão todas as pessoas, mesmo aquelas que não tinham muito jeito para brincar. Lembro-me do Sr. Abel Bustamante e do Sr. Maximiano Ribeiro, aquele que foi Coletor Estadual de Pedra Branca por algum tempo. E lá no clube, no meio de toda aquela brincadeira, os dois foram alvos de uma cena que provocou risos gerais. O Sr. Abel Bustamante, em determinado momento, com um frasco de lança perfume na mão, foi para cima do Sr Ribeiro e quebrou o vidro em sua careca, derramando todo o conteúdo pelo rosto abaixo. A verdade é que ninguém se danou, ninguém se feriu, ninguém se machucou, tudo foi levado à conta da alegria, da brincadeira e da festa que o carnaval proporciona a todos.
            Foi, na minha opinião, o carnaval mais bonito que eu tomei parte, talvez porque todos os moradores da cidade marcaram presença, deram o seu apoio e contribuíram para o maior brilhantismo da festa.

            Só o carnaval de 1935 ficou gravado na minha memória, não me lembrando de outros na cidade.  A minha participação foi muito ativa e de bom proveito, deixando-me inteiramente satisfeito.   

domingo, 7 de fevereiro de 2016

As alegrias de Dona Lalá






Dona Lalá era mulher fina, educada com todos os requintes da etiqueta. Mesmo tendo que se mudar para uma cidadezinha onde todo mundo era simples, não dispensou os detalhes que denunciavam sua incontestável finesse. Por exemplo, para todas as refeições em sua casa, mesmo as diárias e rotineiras com o marido e as filhas, a mesa era guarnecida com louça inglesa, diversos talheres e taças, guardanapos de tecido, tudo combinando. Ela fez questão de ministrar aulas de etiqueta e arte da mesa para a Tonha, moça simples, criada entre pratos e canecas esmaltados. Tonha vivia vestida de empregada inglesa, com touca na cabeça e achava tudo muito bonito. Aprendeu tudinho. Quando Seu Jorge chegava do serviço, Dona Lalá ia receber o marido na porta de casa com um discreto e rápido beijinho na boca. Pegava seu paletó e chapéu (na época ainda se usava chapéu) e enquanto ele dava uma olhada no jornal, ela trazia um cálice de xerez e ficava ao seu lado, lendo a página feminina. Daí a pouco, a Tonha batia o sininho para avisar que o almoço estava pronto e depois do almoço servia um cafezinho em bandeja de prata. Nos domingos à tarde, ela e o marido ouviam Verdi e Puccini. Assim era a fina rotina na casa de Dona Lalá.
Ela teve quatro filhas que fez questão de educar no mesmo requinte. As moças tinham aulas de piano e bordado e só não tinham aulas de balé porque a cidade não dispunha do curso. Logo que entraram em idade de namorar e casar, Dona Lalá se apressou a dar aulas de prendas do lar para as meninas. Em pouco tempo já sabiam como fazer um verdadeiro chá inglês, rosquinhas e bolos de frutas. O enxoval, ah, este era cuidadosamente providenciado, com tantos jogos de cama de algodão puríssimo, tantas colchas, edredons, etc, etc... tudo como mandava o manual de Economia Doméstica do Colégio de freiras.
Mas faltava ensinar sobre a intimidade, aquela da alcova, como se comportar na primeira noite de casados. Então, com muito jeito, Dona Lalá ia escolhendo as palavras aqui e ali para descrever o orgasmo, coisa que as meninas supostamente deveriam conhecer e sentir apenas quando envolvidas sexualmente com o marido. É que nada poderia garantir que não fossem sentir o tal orgasmo antes do casamento, mas para todos os efeitos, as moças sentiriam o fino gozo depois de casadas e não antes. Sozinhas, então, nem pensar. Ou melhor, nem pensar em abordar tal questão, afinal moças finas eram mais guardadas de assuntos e sensações mundanas. Dona Lalá, não encontrando outra palavra que melhor definisse a gloriosa sensação, disse às filhas que elas sentiriam uma singular “alegria”, algo que não podia ser posto em palavras, de tão peculiar, tão original e tão gostoso, deixando escorregar esse último adjetivo num delicioso ato falho.
Dona Lalá, sem querer, ensinava de modo eficiente o que havia sentido, o que leva a crer que era muito feliz com seu Jorge, ou que sempre sentira muitas alegrias com o marido. Afinal, só pode ensinar uma verdadeira alegria quem soube aprender o que é verdadeiramente gostoso. E assim ela ensinou corretamente às meninas as delícias do sexo, conferindo ao orgasmo matizes singelos e líricos, conforme as propriedades coerentes de seu fino caráter.    
Certíssimo. Quem já não esboçou um sorriso matreiro depois de uma forte alegria?        


Aviso à Comunidade Blattodea (baratas)






            O quartel general das blattodeas vem, com grande preocupação, alertar aos seus membros do perigo iminente que nossa grande comunidade está à mercê. A despeito de sermos conhecidos como uma raça inextinguível pelas piores catástrofes naturais e até pela destruição do planeta Terra, pela primeira vez o Conselho Ortóptero confessa que se sente vulnerável e acha por bem comunicar a todos que nosso futuro já dá sinais claros de esgotamento e consequente desaparecimento. Acreditamos sinceramente que há tempo para reverter este sinistro quadro de nossa sobrevivência, mas para tanto, fizemos um relato claro dos cuidados que cada membro da comunidade deve tomar.
            Amigas, não devemos temer as catástrofes, elas nunca serão nosso pior inimigo. Todos já sabem disso. Nosso pior inimigo é o homem, mais precisamente as mulheres, e mais precisamente uma mulher. Esta espécime humana em particular tem se revelado uma poderosa inimiga com comportamentos totalmente desvairados e totalmente inusitados e desconhecidos até então. Suspeitamos que tal comportamento possa contagiar mentalmente as outras de sua espécie, numa forma de histeria coletiva ou de massificação antibaratística. A História mostra que as piores armas não são a intimidação física, mas  o aliciamento mental e moral. O comportamento neurótico feminino é o que devemos temer.
            Há pouco tempo, uma de nossas mais queridas companheiras foi acuada e assassinada brutalmente com requintes de crueldade pelo marido da dita mulher desvairada. Ela própria só gritava loucamente como se gritos matassem, mas o marido, como é devotadamente apaixonado por ela, partiu em perseguição à nossa amiga, tão enfurecido como se fosse matar um dragão. Pois bem, no dia 05/02, a despeito de todos os informes para que nenhuma barata se metesse na casa daquela mulher ensandecida, a barata cujo nome optamos por tornar incógnito a pedido dela (da barata), estava se refestelando no escuro da noite se alimentando de restos de patê de berinjela que caíram no chão. Tudo parecia calmo e seguro até que a tal mulher subiu a acendeu as luzes. A barata incógnita correu rapidamente e se encolheu toda debaixo de um banco. Consciente de que os próximos minutos seriam os últimos de sua vida, entregou sua alma a Deus e revestiu-se de dignidade diante da morte inevitável. 
Precisamente neste ponto do relato é que queremos enfatizar aspectos do comportamento psicótico da mulher: arregalou e revirou os olhos de forma apavorante, depois fez menção de descer correndo as escadas, mas estancou, trêmula e abobada, parecia procurar por algo que não encontrou, e em nenhum momento perdeu de vista nossa amiga. Depois optou por descer, contrariada talvez por saber que nossa barata pudesse se esconder. Voltou para cima e procurou novamente com os olhos esbugalhados de terror algo que parecia quem sabe ser a arma de que precisava. Nada encontrando, desceu correndo outra vez. Esta operação foi repetida inúmeras vezes até que se deu por vencida. Apagou as luzes, desceu, deixando nossa companheira viva e feliz. Esta, corajosamente desceu as escadas para ver o que tinha ocorrido. Percebeu que a mulher trancou-se num quarto não sem antes colocar vários panos de chão debaixo da porta para impedir que nossa brava companheira entrasse. No outro quarto dormia o marido, completamente bêbado tombado com duas garrafas de vinho. Conclusão: nossa barata foi salva pela bebedeira do marido. Mesmo após insistentes apelos da mulher, parece que o homem não conseguiu acordar.
Pedimos o máximo de cuidado. Não se fiem na sorte desta barata incógnita. Você poderá ser a próxima a morrer e de forma cruel, pois nem sempre o marido estará bêbado. Depois de estudar exaustivamente os anais de nossa raça e fazer incessantes investigações no caso das mulheres desvairadas, apontamos alguns itens que devem ser rigorosamente observados:
- olhos esbugalhados e tremor indicam alta probabilidade de atos insanos.
- evitem as loucas que têm maridos, a menos que estes estejam bêbados.
- gritos histéricos indicam total perda de qualquer atitude controlada. Fujam o mais rápido possível.
Não nos responsabilizamos por quaisquer mortes trágicas, antes lamentamos profundamente. Nunca vamos entender o motivo para tanto pavor.

Atenciosamente, Blattodea Voadora.





quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O padre








A história foi mais ou menos assim: dizem que lá no tempo antigo, quando essas coisas aconteciam com mais frequência, chegou um pessoal de lá da roça trazendo um defunto. Era tudo muito primitivo, sem serviço de funerária, coroas de flores e outras coisas modernas. A família mesmo fazia o caixão, eles lavavam o morto, vestiam nele a melhor roupa dentre as menos pobres, enfeitavam o caixão com flores apanhadas ali no campo mesmo e tratavam das últimas providências que eram as religiosas. Passar na igreja era o mais importante, encomendar o corpo a Deus, com água benta e orações próprias para o momento.
Bom, chegaram até a igreja. Ficaram esperando enquanto uns poucos batiam na casa paroquial chamando o padre para o serviço. O padre era homem dominado pelas misérias humanas como o poder, ambição e prazer pelo sossego, que Deus me perdoe falar isso, mas dizem que assim é que era. Então, meio contrariado por ter que sair de seus cômodos, perguntou se haviam trazido o dinheiro para pagar o serviço religioso. Os homens, gente simplíssima e pobríssima, disseram que não tinham e não tinham mesmo, acredito. Mas dentro de sua humildade e fé pura, “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, achando tudo corretíssimo por serem tementes a Deus, prometeram ao padre arrecadar o dinheiro com as famílias da cidade. O padre disse que assim o fizessem e quando tivessem a quantia necessária, que o chamassem novamente e voltou aos seus afazeres ou passatempos, não sei.
Quando os homens chegaram até a igreja para comunicar o fato aos que ficaram tomando conta do morto, eis que sai um padre da sacristia, paramentado e investido de todos os poderes clericais. Ele se apresentou como sendo o padre tal, perguntou o que desejavam e se prontificou a encomendar o corpo, sem cobrar um tostão, pois Deus, que conhece o mais profundo de todos os corações estava, está e estará acima de qualquer decisão humana. Assim foi feito.
Agora não me lembro muito como foi, mas o padre que esperava a arrecadação do dinheiro foi à igreja para saber do andamento das coisas e quando lá chegou deu com o pessoal já indo embora para enterrar o morto. Exigindo explicações, ficou estupefato com o fato de aparecer um padre que não existia, pois se existisse outro por lá, ele saberia. Os homens contaram como tudo aconteceu e falaram o nome do padre e descreveram suas feições, ah, e muito importante, disseram que ele fizera anotações no livro da sacristia. O padre, já sentindo o coração disparar e avermelhar suas bochechas, abriu o livro e quase desfaleceu ao ver a assinatura do padre tal. Comparando o nome e a letra, percebeu tratar-se de um padre já falecido há muito tempo naquela paróquia, um padre santo e muito amado pelo povo da cidadezinha. Pois é. Naquela noite, os homens da roça voltaram para casa conformados com a irremediável finitude da vida, deram graças em tudo, deitaram a cabeça em travesseiros de palha e dormiram o sono dos justos. Dizem que o padre não dormiu naquela noite, nem nas outras seguintes. Teve até que ir para a cidade grande fazer um tratamento porque ficou abalado dos nervos. Depois sarou e voltou, mas não sei se de alma melhorou.