sexta-feira, 18 de março de 2016

A bondade final





A velha mulher acordou naquele dia com um sentimento forte de desesperança. Repentinamente, uma terrível solidão se abateu sobre ela, assim como uma nuvem carregada se abate sobre a tarde plácida anunciando uma terrível tempestade. Olhou para tudo e para todos com estranheza. Algo mudara dentro dela, embora ela ainda não soubesse precisar o quê. Seria um prenúncio da morte? Ora convenhamos, pensava ela, já estou na fila faz tempo, qualquer hora é a minha vez. Entretanto, curiosamente, no meio daquela sensação de angústia e solidão, pela primeira vez a ideia da morte não lhe pareceu assim tão terrível. Na verdade, era até bem vinda, como um alívio. Esta alternância de sentimentos deixou-a confusa. Era como se a morte, sabendo da inexorável devastação que provocava nas pessoas, procurasse ser o mais gentil possível, assim trazendo certo consolo, algo como o execrável carrasco que gentilmente ajuda o condenado a subir o cadafalso, para depois lhe dar o golpe fatal.
Lembrou-se do marido que lhe dizia sempre que a morte não é problema, é solução. Esboçou um sorriso sofrido e encheu-se de saudades. Há muito que acordava e conferia os objetos conhecidos de seu quarto, pois sempre pensava que poderia morrer durante a noite. Aí, de manhã, ela se beliscava e dizia baixinho, quase gemendo, Senhor, ainda estou aqui?Ah, a morte, a morte, sabia que ela não demoraria, quem sabe naquele mesmo dia em que ela se sentia invadida por sentimentos tão estranhos e contraditórios. Também há muito que tentava se preparar para a última hora. Queria estar atenta, queria estar preparada, mas sabia que isto não se dá assim. Agora se sentia uma criança desamparada, e um choro convulsivo irrompia dentro de suas entranhas, porém com um imenso esforço engoliu as lágrimas. É preciso ser forte, ter coragem. Fechou os olhos, suspirou profundamente, e resignada, entregou-se quase humilde ao que estava por vir. Um condenado sabe que nada poderá livrá-lo daquela pena implacável, então é melhor se comportar com dignidade.    
Sim, sem sucesso ela tentara se preparar para morrer. O fato é que se pode sofrer uma dor antecipada, mas não se pode sentir de verdade a dor. Isso só na hora. É como dor de dente ou qualquer outra dor física. A gente sabe que dói, a gente se lembra da dor, porém soa como algo distante, tal qual um sonho. Pensava na família que amava, é claro que ainda morreria pelos filhos, no entanto, também pela primeira vez, experimentava um sentimento estranho e novo, uma espécie de liberdade, de desapego. Já não sofria mais se este filho passava por um problema ou se aquela neta ainda não estava encaminhada. Bobagem, nunca nada está pronto, sempre existirá algo por acabar e algo por sofrer. Neste momento ela foi até assolada por uma sensação de conformidade ou ainda de completude, como alguém que confere rigorosamente suas tarefas de trabalho, e comprova satisfeito que tudo está pronto. Suspirou novamente e acolheu a morte, como se de fato esta estivesse em pessoa batendo à porta.
Observou a moça que lhe cuidava. Era jovem, com cabelos bastos, cheia de saúde e vigor. Andava desenvolta para lá e para cá, com todas as articulações em perfeita sincronia. Secretamente, já invejara a moça em outros dias. Também já fui assim, pensava com tristeza. A velhice é uma prova de humildade, chega o dia em que temos que ser levados e lavados, como se fôssemos crianças pequenas.  Algumas vezes havia se irritado com a jovem pelo fato de ter que se submeter à ela. Agora a olhava com ternura. Mais uma avalanche de sentimentos novos e estranhos. Acariciou com delicada gentileza a mão lisinha da jovem que a olhava com curiosidade. Por fim, um último sentimento do dia a enredava completamente, foi inundada por uma extrema bondade e cochilou cheia de paz. A morte finalmente viera, terrível e doce.


Nenhum comentário:

Postar um comentário