D.
Áurea, D. Áurea, seu Amâncio morreu! Como morreu, criatura? Está louca? Respira
fundo, minha filha, senão você é que vai morrer já, já. Me conta, antes senta
aqui um pouco, calma, calma, toma um pouco d’água, devagar. A moça simples arfava o peito e se abanava
com a mão. Mal tomou um gole e já falava atropeladamente. Foi agorinha, ele
tava bom, até atendeu de manhã, aí foi pra casa pra almoçar, falaram que nem na
mesa sentou, no meio da cozinha teve um ataque e caiu fazendo um estrondo. D.
Áurea persignou-se e tratou de procurar ela uma cadeira porque começou a sentir
um aperto no peito, uma falta de ar. Tá cheio de gente lá, já chamaram o
médico, mas acho que não tem jeito não, ele morreu mesmo. D. Áurea suspirou
fundo e começou a empilhar os moldes, os tecidos, as tesouras e linhas porque
trabalhar seria impossível. Estava de luto.
Como
morreu? Como? As pessoas estão vivas e de repente morrem. Mergulhada nas mais
elevadas filosofias, já pensava nos instrumentos de dentista que haviam ficado
em cima da mesinha e que não seriam mais usados pelo falecido. Pensou no
franguinho delicioso que a mulher sabia preparar e que Seu Amâncio nunca mais
comeria. Pensou na viúva, sua amiga, pensou no susto que teria sido aquela
morte bruta e abrupta. Desde que fizera sessenta anos, D. Áurea passou a pensar
mais na morte, mas nunca se acostumava com ela, como toda a humanidade,
certamente. E quem é que se acostuma? Só se a gente morresse mais de uma vez,
até cansar. Aí sim, talvez fosse possível se acostumar. Ficou olhando para a
Tonha, sua empregada boa e simples que fazia o café e balançava a cabeça a todo
instante, como quem não se conforma com alguma coisa. De vez em quando, Tonha
falava sozinha, não sabia que também sabia filosofar. Dizia, é, a morte só
existe para quem fica. Depois soltava outra frase, vai quem vai, feijão no fogo
pra quem fica.
Mais
de tardezinha, D. Áurea vestiu-se de preto e foi para a casa da viúva onde Seu Amâncio
era velado. Primeiro procurou pela amiga, a viúva, que chorava sem parar.
Molhara já tantos lenços e sempre aparecia outro que alguém providenciava, mais
outro, e as lágrimas chegavam profusas para aliviar a dor. Não acredito, D.
Áurea, não acredito, como é que pode? Levantou igualzinho faz todos os dias, não
clamou de nada, de nenhuma dor, rimos, falamos da chuva que agora deu trégua,
falamos da mangueira que já tem manga, de visitar minha mãe lá em São Paulo. E
a viúva falava e chorava.
Depois
de consolar a amiga, D. Áurea chegou perto do caixão, com respeito, devagar. Lá
estava o Seu Amâncio, agora morto. Mas não parecia um morto. Não tinha aquela
cor da morte, aquela cor de quando a vida vai embora. Ele estava só dormindo,
podia jurar que sim. Só que não respirava, isso não. D. Áurea ficou sentada lá
perto e não tirava o olho do falecido porque tinha certeza de que morto ele não
estava. Isso não é cor de morto, este homem está vivo, deve ter tido um
daqueles ataques de nome complicado, aquele estado em que a pessoa fica
impossibilitada de respirar ou piscar, como se fosse um coma.
E mais tarde, D.
Áurea voltou para passar algumas horas da noite no velório. O homem estava do
mesmo jeito, sem cor nem jeito de morto. Ela tentou abordar a questão com uma
conhecida, mas não obteve sucesso. Imagine! Disse a mulher, claro que está
morto, não respira! Ora, que ideia, D. Áurea! E de manhãzinha foi feito o
enterro. De noite, todo mundo estava exausto, todos foram dormir. D. Áurea
também. Fez suas orações, rezou pelo falecido e dormiu. Sonhou que estava
enterrada viva, sentia falta de ar. Acordou ansiosa, puxando o fôlego. Lembrou-se
do amigo dentista. Levou um tempo para deitar a cabeça no travesseiro. O sono chegava
inclemente. D. Áurea lutava para permanecer acordada com medo de sonhar outra
vez, e apenas um pensamento ecoava em sua mente ... aquela cor não era de morte
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