Eu ainda era bem novinha quando
acompanhei minha mãe numa cidade mais ou menos próxima onde atendia um médico
diferente. Ele era um clínico geral, mas que ficara mais ou menos famoso por
enxergar a alma das pessoas que o procuravam. E quem enxerga a alma, enxerga
tudo porque as doenças não começam no corpo, surgem lá onde normalmente não se
vê, apurando em fogo brando até que se derramam. Dizem que o corpo fala, ou
seja, quando a dor física grita é porque o mal da alma incomodou tanto que saiu
das profundezas que não vemos, mas existem.
Na sala de espera estavam diversas
pessoas e entre elas uma mulher magrinha que enxugava os olhos a todo momento.
Minha mãe logo entabulou conversa com os presentes, falava de onde vinha, ouvia
as queixas dos outros e eu escutava tudo. Quando a mulher magrinha e triste foi
chamada, todos pararam de falar, num respeito compassivo e solidário para
acompanhar a entrada na sala do médico. Eu, para me distrair um pouco, saí para
o jardim em busca de uma brincadeira, um passeio. Não sabia que brincava a
poucos metros da janela da sala onde estava o médico atendendo. Escutei e nunca
mais me esqueci.
A mulher mais chorava do que falava e o
médico ia arrancando as palavras com toda a paciência, uma por uma, como se faz
com pele de machucado quando tem que ser lavado e curado, pois tudo dói. Foi
quando eu ouvi a pergunta que ele fez à paciente, qual foi o dia mais feliz da sua vida? Ela, com voz de choro,
demorou um pouco, mas respondeu sem qualquer dúvida, o dia de meu casamento. Ele tornou a perguntar, e a senhora se lembra de tudo? Conta pra mim como foi.
No início a voz ainda parecia chorosa,
depois as palavras foram se aprumando, se reunindo, já mais enxutas, e a mulher
magrinha animou-se, discorrendo sobre o dia mais feliz de sua vida. Ela contou
sobre as primas que vieram de fora dois dias antes da festa. A gente ficava conversando até tarde da
noite sentada perto do fogão de lenha por causa do frio. Ali a gente morria de
rir e como todas ainda eram moças solteiras e puras, o assunto é claro que era
sobre a noite de núpcias, coisa que deixava todas nós nervosas. Na véspera
mesmo eu tive que ir dormir mais cedo para estar bem no dia seguinte, mas só
dormi depois de uma caneca de chá de erva-cidreira. O dia mesmo foi bom demais.
Meu vestido estava dependurado na porta, que era bem alta para não ficar
amassado. Todas elas me ajudaram a vestir e a Nicinha, que era a mais jeitosa,
arrumou meu cabelo, passou um pó-de-arroz e um batom. Meu noivo já esperava na
igreja e eu fui a pé mesmo, dando o braço pro meu pai. Todo mundo tava nas
janelas. Foi tão bom, maravilhoso demais. A entrada na igreja foi a coisa mais
bonita que já aconteceu comigo, deu um pouco de nervoso, é claro, mas eu dei
conta. Depois foi a festa, o churrasco, o bolo de casamento que a dona Santa
fez. Vivemos felizes, eu e o Zé Mauro por tantos anos, tivemos três meninos que
hoje já são tudo casados, mas moram tão longe! Nem vejo bem os netos. O mais
velho meu é a cara do pai. O Zé Mauro ficou doente no ano passado, era coisa
grave, aquela doença ruim. Ele foi embora me deixando sozinha. Não parei mais
de chorar. Já perdi pai, mãe, até a
Nicinha também já morreu. Agora
apareceu uma dor aqui do lado da costela e também uma dor de cabeça que não me
deixa dormir. A vida é triste... Nesse
ponto, sua voz tropeçou e eu ouvia apenas o fungar do nariz. O médico, paciente
e bondoso, receitou pra ela alguma coisa, mas principalmente recomendou que ela
se lembrasse da véspera e do dia do casamento. Disse que o tempo pra Deus é um
só, que esses acontecimentos felizes não tinham passado, isto é, que tinham,
tinham, mas que estavam vivos dentro dela e que sempre podiam ser vividos
novamente.
Contei isso para
minha irmã que não ficou convencida da eficácia do tratamento do médico, pois,
segundo ela, lembrar dias felizes é abrir a ferida da saudade todos os dias, o que é bom
mesmo é deixar purgar a dor, luto é luto. Mas, passados muitos anos, eu entendi
que ela precisava falar para lembrar e viver de novo, o que não podia era ficar
em silêncio. Sei que as palavras se aprumam e se aprontam sempre que convocadas
e quando são proferidas, ajudam a curar. Não há depressão que resista ao poder
das palavras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário