Ainda
era cedo quando Helen acordou. Levou algum tempo para se localizar e
identificar todos os últimos acontecimentos. Engraçado, pensou, isso já havia
acontecido antes, anos atrás, quando fora operada. Ao voltar da anestesia, na
sala de recuperação, ficou se esforçando para se lembrar do que acontecera e
até mesmo de quem era. Agora havia sido mais rápido. Sim, sou Helen e este é o
primeiro dia de minha nova vida. Ficou assim deitada de lado, temendo se mover
e perder todo o raciocínio. Precisava pensar, relembrar e refletir. Este era
seu primeiro dia separada de fato e de direito de seu marido. Esta é a minha
nova cama, meu novo quarto e minha nova casa. A cama simbolizava sua separação.
Sou livre, sou uma mulher sozinha. Não pôde deixar de esboçar um sorriso
matreiro. Mordeu os lábios, uma mania antiga, e tornou a sorrir. Estava
feliz.
Não havia sido nada fácil,
nada é, tudo tem um preço, e a libertação custa muito caro. Parecia estar
ouvindo estas palavras de sua amiga, mas enfim tudo passa. Era uma mulher de quarenta
e quatro anos e foi preciso coragem para romper com um casamento de quase vinte
e quatro. Fechou os olhos e suspirou, precisava segurar um pouco mais este
momento, esta sensação de estar liberta. Há muitos anos que seu casamento não
existia mais, mas como todas as mulheres de sua geração, ou quase todas, ela esperou,
não era corajosa o bastante para tomar essa decisão. Pensou no ex-marido.
Casaram-se bem jovens. Nada conheciam de si nem do mundo, e ela nunca conhecera
outro homem. Agora, separada dele, não sentia mágoa, nem raiva. Sentia quase
uma ternura, como se ele fosse um filho desamparado. Toda a dor provocada pelas
incontáveis acusações havia desaparecido. Acabou.
Ficou refletindo. Quando
exatamente a separação havia começado? Não se lembrava. Há muito tempo acordava
com uma sensação de que lhe faltava algo. Havia necessidade de sentir mais a
vida. É verdade que lhe faltava o companheirismo do marido, mas não era bem
isto o que procurava, estava certa. Procurava uma realização própria, uma
afirmação de sua própria identidade. Tinha o seu trabalho, seu próprio dinheiro
e foi então que resolveu voltar aos estudos. Pagou um preço alto por isso.
Trabalhava o dia todo, administrava a casa e corria para a faculdade todas as
noites. No início quase chegou a desistir. Sentia-se estranha. Os colegas eram
bem mais novos. Sentar-se em uma carteira de escola nessa altura de sua vida!
Quando era interrogada sobre alguma questão, a voz custava a sair. Depois foi
sentindo um imenso prazer. Percebeu que os colegas também sentiam tanto medo quanto
ela. Passou a arriscar mais. Leu livros, fez trabalhos. Ouviu relatos
surpreendentes. Aprendeu. Mais do que isso. Fez novos amigos. Gente mais nova,
gente mais velha. Percebeu que seu mundo podia ser maior do que aquele de
antes, de seu trabalho e família.
Sentiu que era uma pessoa
diferente, dona de si, que era bom ter um lugar próprio, algo que ninguém lhe
podia tirar. Surpreendia-se com os conhecimentos novos! Ah! a cultura, que
tesouro! Não parou de estudar. Aí veio a pósgraduação. Analisava mais as
situações. Suas conversas não eram mais as mesmas e também por isso teve que
pagar um preço. Como sai caro a gente mudar! Algumas amigas se afastaram. Não
se sentia culpada. Já havia aprendido que quando a gente muda, as pessoas não
gostam. Acostumam-se com o que sempre fomos. Era algo que não podia evitar.
Sim, era uma nova pessoa. Até nem tinha mais enxaquecas. Estranho como elas
tinham cessado quando decidiu voltar a estudar.
O marido não aceitou, não
compreendeu. Ela tinha consciência de que havia tentado salvar esse casamento.
Procurou fazê-lo compreender todas as emoções novas que sentia. Queria mesmo
que ele pudesse compartilhar tudo isso com ela. Mas foi inútil. Em casa quase
não se falavam. Ela tinha necessidade de comentar sobre os estudos e assim
incluiu novos amigos em sua vida. Descobriu uma coisa maravilhosa! Gostava de
poesia! Como nunca pudera perceber isto? É verdade, pensou, quando era menina,
gostava de recitar poesias, mas achava que todas as meninas também gostavam!
Passou a frequentar uma sala de poesia e se sentia tão reanimada
espiritualmente que mal conseguia dormir. Teimava em ficar relembrando os
versos daquela noite. O marido cada vez mais a olhava com estranheza. Tudo isso
Helen pensava ainda na mesma posição desde que acordara.
De repente seus
pensamentos se voltaram para sua família, seus irmãos. Lembrou-se de sua
infância difícil, pobre. Lembrou-se da mãe que perdera ainda criança. Ficou
imaginando, se ela ainda fosse viva, o que diria sobre sua separação. Pouco
conheceu dela, se fora feliz em seu casamento ou se tivera sonhos. As mulheres
naquela época pouco pensavam, apenas cumpriam seu papel, e assim foi com sua
mãe. Desejou deitar sua cabeça no colo dela. Mãe é sempre mãe.
Agora, seus pensamentos
voltaram-se novamente para o ex-marido. Lembrou-se do dia em que recebera uma
nomeação no trabalho e fora cumprimentada por todos, menos por ele. Depois que
terminou os estudos, sentiu-se mais forte para ambicionar uma posição melhor no
trabalho. Também decidiu viajar. Optou por fazê-lo sozinha. Precisava dessa
prova. E como foi bom, pensou, sorrindo. Lembrou-se de como havia percorrido a
pé velhas ruas de cidades da Europa, com uma deliciosa sensação de ser dona do
mundo. E como visitou museus, admirando sem pressa, cada quadro, cada peça, com
uma preciosa curiosidade. Foi depois da viagem que tomou a irrevogável decisão
de se separar. Não havia outro homem em sua vida. Talvez no futuro, quem sabe.
É claro que seria bem-vindo. Mas não agora. Agora precisava estar com ela
mesma. Ainda queria mais. Muito, muito mais. Lembrou-se de Cecília
Meireles...”eu quero mais do que vem nos milagres...” agora chorava. As
lágrimas finalmente vieram, quentes, doces. Helen acordava naquele dia sentindo
o pulsar de uma nova vida.
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