quinta-feira, 7 de abril de 2016

HELEN (Uma homenagem à Helena)





            Ainda era cedo quando Helen acordou. Levou algum tempo para se localizar e identificar todos os últimos acontecimentos. Engraçado, pensou, isso já havia acontecido antes, anos atrás, quando fora operada. Ao voltar da anestesia, na sala de recuperação, ficou se esforçando para se lembrar do que acontecera e até mesmo de quem era. Agora havia sido mais rápido. Sim, sou Helen e este é o primeiro dia de minha nova vida. Ficou assim deitada de lado, temendo se mover e perder todo o raciocínio. Precisava pensar, relembrar e refletir. Este era seu primeiro dia separada de fato e de direito de seu marido. Esta é a minha nova cama, meu novo quarto e minha nova casa. A cama simbolizava sua separação. Sou livre, sou uma mulher sozinha. Não pôde deixar de esboçar um sorriso matreiro. Mordeu os lábios, uma mania antiga, e tornou a sorrir. Estava feliz. 
Não havia sido nada fácil, nada é, tudo tem um preço, e a libertação custa muito caro. Parecia estar ouvindo estas palavras de sua amiga, mas enfim tudo passa. Era uma mulher de quarenta e quatro anos e foi preciso coragem para romper com um casamento de quase vinte e quatro. Fechou os olhos e suspirou, precisava segurar um pouco mais este momento, esta sensação de estar liberta. Há muitos anos que seu casamento não existia mais, mas como todas as mulheres de sua geração, ou quase todas, ela esperou, não era corajosa o bastante para tomar essa decisão. Pensou no ex-marido. Casaram-se bem jovens. Nada conheciam de si nem do mundo, e ela nunca conhecera outro homem. Agora, separada dele, não sentia mágoa, nem raiva. Sentia quase uma ternura, como se ele fosse um filho desamparado. Toda a dor provocada pelas incontáveis acusações havia desaparecido. Acabou.
Ficou refletindo. Quando exatamente a separação havia começado? Não se lembrava. Há muito tempo acordava com uma sensação de que lhe faltava algo. Havia necessidade de sentir mais a vida. É verdade que lhe faltava o companheirismo do marido, mas não era bem isto o que procurava, estava certa. Procurava uma realização própria, uma afirmação de sua própria identidade. Tinha o seu trabalho, seu próprio dinheiro e foi então que resolveu voltar aos estudos. Pagou um preço alto por isso. Trabalhava o dia todo, administrava a casa e corria para a faculdade todas as noites. No início quase chegou a desistir. Sentia-se estranha. Os colegas eram bem mais novos. Sentar-se em uma carteira de escola nessa altura de sua vida! Quando era interrogada sobre alguma questão, a voz custava a sair. Depois foi sentindo um imenso prazer. Percebeu que os colegas também sentiam tanto medo quanto ela. Passou a arriscar mais. Leu livros, fez trabalhos. Ouviu relatos surpreendentes. Aprendeu. Mais do que isso. Fez novos amigos. Gente mais nova, gente mais velha. Percebeu que seu mundo podia ser maior do que aquele de antes, de seu trabalho e família.
Sentiu que era uma pessoa diferente, dona de si, que era bom ter um lugar próprio, algo que ninguém lhe podia tirar. Surpreendia-se com os conhecimentos novos! Ah! a cultura, que tesouro! Não parou de estudar. Aí veio a pósgraduação. Analisava mais as situações. Suas conversas não eram mais as mesmas e também por isso teve que pagar um preço. Como sai caro a gente mudar! Algumas amigas se afastaram. Não se sentia culpada. Já havia aprendido que quando a gente muda, as pessoas não gostam. Acostumam-se com o que sempre fomos. Era algo que não podia evitar. Sim, era uma nova pessoa. Até nem tinha mais enxaquecas. Estranho como elas tinham cessado quando decidiu voltar a estudar.
O marido não aceitou, não compreendeu. Ela tinha consciência de que havia tentado salvar esse casamento. Procurou fazê-lo compreender todas as emoções novas que sentia. Queria mesmo que ele pudesse compartilhar tudo isso com ela. Mas foi inútil. Em casa quase não se falavam. Ela tinha necessidade de comentar sobre os estudos e assim incluiu novos amigos em sua vida. Descobriu uma coisa maravilhosa! Gostava de poesia! Como nunca pudera perceber isto? É verdade, pensou, quando era menina, gostava de recitar poesias, mas achava que todas as meninas também gostavam! Passou a frequentar uma sala de poesia e se sentia tão reanimada espiritualmente que mal conseguia dormir. Teimava em ficar relembrando os versos daquela noite. O marido cada vez mais a olhava com estranheza. Tudo isso Helen pensava ainda na mesma posição desde que acordara.
De repente seus pensamentos se voltaram para sua família, seus irmãos. Lembrou-se de sua infância difícil, pobre. Lembrou-se da mãe que perdera ainda criança. Ficou imaginando, se ela ainda fosse viva, o que diria sobre sua separação. Pouco conheceu dela, se fora feliz em seu casamento ou se tivera sonhos. As mulheres naquela época pouco pensavam, apenas cumpriam seu papel, e assim foi com sua mãe. Desejou deitar sua cabeça no colo dela.  Mãe é sempre mãe.
Agora, seus pensamentos voltaram-se novamente para o ex-marido. Lembrou-se do dia em que recebera uma nomeação no trabalho e fora cumprimentada por todos, menos por ele. Depois que terminou os estudos, sentiu-se mais forte para ambicionar uma posição melhor no trabalho. Também decidiu viajar. Optou por fazê-lo sozinha. Precisava dessa prova. E como foi bom, pensou, sorrindo. Lembrou-se de como havia percorrido a pé velhas ruas de cidades da Europa, com uma deliciosa sensação de ser dona do mundo. E como visitou museus, admirando sem pressa, cada quadro, cada peça, com uma preciosa curiosidade. Foi depois da viagem que tomou a irrevogável decisão de se separar. Não havia outro homem em sua vida. Talvez no futuro, quem sabe. É claro que seria bem-vindo. Mas não agora. Agora precisava estar com ela mesma. Ainda queria mais. Muito, muito mais. Lembrou-se de Cecília Meireles...”eu quero mais do que vem nos milagres...” agora chorava. As lágrimas finalmente vieram, quentes, doces. Helen acordava naquele dia sentindo o pulsar de uma nova vida.

                                                                                                                                                                                                                    

Nenhum comentário:

Postar um comentário