A moça acordou, tomou um banho
quentinho. Depois desceu e tomou seu café da manhã: ovo quente, café preto com
torradas, manteiga e mel. Abotoou o casaco de lã pura, enrolou o cachecol no
pescoço e saiu animada para trabalhar. Cantarolava qualquer coisa baixinho,
estava feliz à toa, a vida estava tão boa!
A
virar a esquina, quando começava a descer a rua de morro, topou com aquela gente
maltrapilha. Era uma família de pobres, talvez umas oito ou dez pessoas, alguns
já adolescentes, outros mais novinhos, um bebê que era sacudido no colo da
menina de onze ou doze anos que poderia ser a mais velha. Não tinham agasalho,
e três deles choravam alto, enquanto mãe desferia murros em suas costas e
cabeças. A mulher não chorava por fora, mas chorava por dentro porque sua
fisionomia crispada revelava um intenso sofrimento. Ela e um dos filhos
carregavam o que parecia ser sua mudança: algumas tralhas embrulhadas em panos.
Era tudo o que possuíam.
A
moça tiritava de frio e a visão daquelas crianças quase nuas era insuportável. De
onde viriam? Era tão cedo, as crianças deviam estar com sono também. A mulher
praguejava e batia nos pequenos que choravam. A moça foi perto dela, pôs a mão
em seu ombro? De onde a senhora vem? As crianças estão com frio. A mulher lançou
um olhar agudo para aquela estranha bem agasalhada que nada sabia da vida, da
miséria, dos pecados dos ricos que têm muito, dos que nada repartem, dos que
acumulam e exploram os mais pobres. Olhou com ódio, ódio puro. A moça recuou.
Mas não podia deixar que se fossem assim. As poucas pessoas que passavam por
eles, de carro ou a pé, viravam o rosto e seguiam em frente, longe dos olhos,
longe do coração. A pobreza e o sofrimento são difíceis de se ver, imagine de
se viver.
Mas
a moça foi junto com eles. Estava com vontade de chorar e sentia o café da
manhã embrulhar o estômago. Era preciso salvá-los. Entendeu. Foram despejados,
certamente. Foram acordados no meio da madrugada e enxotados como cães de rua.
Os cães da casa estavam aquecidos no canil, e tinham comida e água. Mas eles
não. A mulher em desespero teve que acordar os filhos, um por um, com murros
para descarregar a mágoa, para que aprendessem como a vida é injusta. Saíram
assim, com a roupa do corpo, quase que nem roupa tinham. Os pequenos tiritavam
de frio. A moça já estava perto do local de emprego. Não podia se atrasar. E o
que mais podia fazer? Bater na casa do padre? Na casa do prefeito? De repente,
viu a rodoviária, sim, lá tinha café com leite quente para todos. A mulher
ainda olhava para ela com ódio. A moça tirou tudo o que tinha na carteira.
Olha, pega, disse ela à mulher sofrida. Compre um café com leite para as
crianças, não bata nelas, elas não têm culpa. A mulher pegou o dinheiro,
abaixou a cabeça. Tudo o que queria era uma cama quente, era um sentido pra sua
vida tão cruel.
A
moça abaixou a cabeça também. Pensou em como o mundo estava errado, como os
ricos tinham tanto e os pobres nada. Aquela mulher não tinha nada, apenas
filhos envoltos em trapos. As crianças choravam porque queriam dormir
aquecidos, queriam um leite quente, queriam brincar, ir à escola, queriam ser
felizes. Não era tão difícil assim, se todo mundo fizesse um pouco. Entrou no banco. Olhou para o relógio, para as
caras dos colegas que contavam piadas antes do expediente. Chegou, interrompeu
as piadas e os risos e contou a história dos pobres. Fez-se um silêncio, até
que uma colega disse, um tanto contrariada:
- Também,
esse povo só sabe fazer filho, pra que fazer tantos filhos pra deixar aí
sofrendo?
Um
outro colega falou:
- Não
fica assim, querida, Jesus mesmo falou que pobres sempre teremos...
A
moça se arrependeu de ter falado sobre o assunto, foi saindo de mansinho, foi
para o banheiro, chorou, lavou o rosto. Respirou fundo e foi trabalhar. Eles
não entendiam, ou ela é que não entendia mais o mundo. Trabalhou, viu as contas
abarrotadas de dinheiro dos ricos. E pensou nos pobres, nas crianças, naquela
menina de uns onze ou doze anos que chorava e recebia murros da mãe. Ela
própria havia chorado muito na mudança de cidade, quando tinha por essa idade.
A mãe não a consolou, ficou brava, mas não bateu nela, e depois ela sempre teve
uma casa, uma cama, uma comida boa. Nunca a vida lhe pareceu tão dura, tão
cruel. Balançou a cabeça, suspirou, e pensou: por onde estariam agora, para
onde iriam os pobres?
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