domingo, 29 de maio de 2016

O QUE VOCÊ É? O QUE VOCÊ FAZ?





            Há pouco tempo visitamos minha prima Lígia em sua casa no campo e tive a grata oportunidade de conhecer Cristina, uma portuguesa simpática que tem uma casa nos arredores da “Oka Katupé”, em São Lourenço, alternando sua morada entre Santiago de Compostela e Brasil. Qual não foi minha surpresa quando minha prima me presenteou com o livro de Cristina “Quando o meu cão me passeia”. Fiquei absolutamente encantada com o livro de crônicas curtinhas que tratam de questões simples, diárias, que falam de cozinhas, de cães, filhos, envelhecimento, planetas, e outros temas que nos acontecem e nos acompanham a qualquer hora do dia a dia e da vida. Reparo que digitei acima “questões simples” quando na verdade são questões grandiosas, a gente é que não percebe quão grandiosas são.
            Quem escreve tem que ler, não há outro caminho para escrever porque é quando lemos que somos assaltados pelo desejo de escrever. Mais do que nunca comprovo ser verdade o que li no livro “O rumor da língua” de Roland Barthes.     O grande linguista e filósofo diz que não é que desejamos escrever como o autor, nem que desejamos escrever o que o autor escreveu, mas simplesmente ficamos com o desejo de escrever. E ele cita o escritor Roger Laporte que diz algo lindo: “Uma pura leitura que não suscite uma outra escritura é para mim algo incompreensível... A leitura de Proust, de Blanchot, de kafka, de Artaud não me deu vontade de escrever sobre esses autores (tampouco, acrescento, como eles), mas de escrever.”
            Voltando ao “Quando meu cão me passeia”, gosto de tudo, mas uma crônica me chamou mais a atenção. “Da cozinha e das elites”. A autora estava na cozinha preparando algo para a família quando sua filha entrou e lhe disse simplesmente que já sabia o que queria ser quando crescesse, talvez uma pintora ou atriz, não uma cozinheira como a mãe. A princípio Cristina se indignou e fez lembrar a filha que ela tinha uma carreira, com curso superior, com artigos no jornal, etc. Entretanto, ela de repente percebeu seu engano, talvez preconceito para com a culinária. E mais, percebeu que ela era, acima de tudo, mãe e “tratadora” de cinco filhos, e como tal, era por excelência, cozinheira. E tece reflexões sobre hábitos e profissões intelectuais, de raciocínios, e o quanto é agradável descobrir o lado criativo de passar a ferro ou descascar batatas. Concluiu que a gente é o que faz no momento, e assim, agradeceu ao episódio com a filha Sofia por descobrir também que é cozinheira enquanto cozinha. O que mais me encantou foi como terminou a crônica: “... é com serenidade que assino este pequeno texto como: Cristina Hauser, Cozinheira.”
            Isto me fez pensar sobre um conflito que tenho sempre quando me perguntam o que sou, ou seja, minha profissão. Na verdade, odeio dizer aposentada, pois sugere que nada mais faço da vida. Às vezes acrescento “bancária aposentada”, mas igualmente não gosto, embora o emprego como bancária foi o que me deu sustento, mas falo de desejos e prazer. Reflito, reluto, e algumas vezes, mesmo envergonhada, digo: “escritora”, e confesso que sinto um imenso prazer ao dizer isto porque escrever é o que faço com tesão, desculpe o termo. Também lavo, passo, limpo, cuido das plantas, cozinho mal pra caramba, mas sou dona de casa com orgulho. Só não sou mãe. Não? Sou sim, toda mulher nasce mãe, com instinto maternal e tudo. Mas falando sobre profissões, sobre dizer o que é ou o que faz, meu marido já se apresentava a mim quando nos conhecemos nos seguintes termos: sou engenheiro, advogado, pedreiro e cozinheiro, deixando por último as duas ocupações que  mais curtia e curte.
            Parabéns a Cristina pela sensibilidade, pelas crônicas adoráveis que me despertaram o “desejo de escrever”. Considero um livro precioso. Cristina Hauser é licenciada em História, trabalhou em Teatro, Televisão e Cinema e é ... escritora e Cozinheira. Valeu Cristina!       




quinta-feira, 26 de maio de 2016

Festa de descasamento ?

                                                                       




            A carreira de promoter, coisa dos tempos modernos, pode incluir atualmente mais uma criatividade no ramo: festa de descasamento. A novidade veio de fora e parece que “está pegando” aqui no Brasil já há alguns anos, para a alegria dos promoters que assim podem alargar seu leque de atuação. A princípio, a idéia de fazer uma festa ao descasar-se pode parecer estranha e até inconsequente, porém urge explorar todos os ângulos da questão antes de tomar qualquer partido, esclarecendo que, partido aqui se refere à posição de contra ou a favor da festa de descasamento e não aquele partido de “bom partido” ou da pessoa casadoura, alvo dos longos suspiros apaixonados.
Nitzsche, o incomparável filósofo, além de outras tantas questões, abordou também a do casamento. Dizia ele que toda pessoa, ao pensar sobre a possibilidade de se casar deveria se perguntar se seria capaz de conversar com prazer com tal pessoa até sua velhice. O problema é que quando se faz essa pergunta, o casamento ainda não se realizou e evidentemente todos acham que seriam capazes de conversar eternamente com prazer com o (a) amado (a). E o negócio é o depois, o dia a dia, pois “no início, tudo são flores”, sabiamente repetia meu pai. Além disso, Nietzsche não se casou e disse isso numa época em que o descasamento era impensável e muito menos uma comemoração de tal evento.     
Casamento é coisa séria e festa de casamento, a deduzir pelo que quase sempre demonstra a euforia dos noivos, parece ser mais séria ainda do que a prática da união. A cerimônia e a festa! Ah, sim! Aquela parafernália que tem que ser planejada com pelo menos um ano de antecedência. A lista de convidados, os convites, o lugar onde será a cerimônia, o bolo com os noivinhos em cima, os docinhos, as lembrancinhas, o vestido de noiva, meu Deus, o vestido de noiva! com cauda ou sem, o banho de noiva, a maquiagem, o terno tipo “smoking”, o carro que leva a noiva, daminhas e pajens, as alianças na cestinha ricamente ornada com fitas de seda, os promoters entrando e saindo apressadamente da igreja, aquele nervosismo gostoso, as lágrimas de emoção, os convidados olhando para trás para ver a noiva fazendo sua entrada triunfal e teatral, a fila interminável de padrinhos e madrinhas e depois da cerimônia, o baile, aquele baile! E abre a carteira porque tudo custa muito caro!
 Aí, vem a lua de mel e, finalmente, o real da vida de casados, empreendimento que nem sempre acaba bem, ao contrário da festa planejada pelos promoters com todos os requintes possíveis e impossíveis de perfeição. No começo, os cônjuges se estranham um pouco, depois se estranham mais ainda, os gênios se revelam e se rebelam. Quando a relação começa a degringolar, não há promoter que resolva, só mesmo os consortes que pensavam estar preparados. Bom, preparado, preparado, ninguém está porque num casamento tudo é possível e nessa vida, não há garantias de nada. 
Há os que persistem, que conseguem, que contornam, que se perdoam e mesmo que se toleram. Mas também há os que são mais práticos, aqueles que ao invés de se lamentarem, arrastando-se numa relação impossível, enfrentam com coragem a possibilidade de recomeçar a vida. E há os mais afoitos, que encaram a vida como uma eterna festa e tudo é motivo para festejar, até uma separação. Então vem a outra festa, a do descasamento. Os mesmos promoters são contratados para o sucesso do evento que fazem “bombar”. Li em uma reportagem que fabricam até lembrancinhas como chaveirinhos, balões e bonequinhos de bolo de descasamento e a festa serve como pretexto para conhecer um novo amor. Como diz o povo: pode?

Afinal, casamento não tem receita para dar certo, é tão difícil que até dizem ser loteria. Mas uma coisa é certa: a festa de casamento quase sempre é uma ilusão e a festa de descasamento ... não digo que sim, nem digo que não, pode ser uma cruel, mas real libertação. Nunca saberemos se Nietzsche não se casou porque foi rejeitado pela Lou-Andreas Salomé (uma ensaísta e psicanalista que fascinou o filósofo) ou se, ao contrário de louco como se julgava, talvez tenha sido mais lúcido do que todos nós. 

terça-feira, 24 de maio de 2016

PAPAS DE SÃO RAIMUNDO (fato real)



            Há muitos anos, eu, Musa, minha prima, e Sandra, nossa amiga, fizemos uma viagem para Portugal. Viagem deliciosa, curtíamos tudo, passeando pelas outras cidades próximas à Lisboa. Há quem diga que não gosta de Portugal, pois eu amo! Ah aquelas cidadezinhas medievais, as casas de pedra, as igrejas antigas, a culinária portuguesa com o frango à cabidela, os pastéis de Belém, Coimbra do choupal, a Universidade de Coimbra! O sotaque irmão! Nossa! Eu passaria o dia todo me lembrando! Bom, um dos inúmeros passeios que fizemos foi de ônibus, saindo da rodoviária de Lisboa para o Porto, pois queríamos conhecer a famosa cidade. Tudo era motivo de riso e alegria. Lembro-me de que o ônibus não estava cheio, mas preferimos ficar mais para o fundo do carro. Lá estava uma jovem mãe com duas filhas, uma já adolescente e outra ainda bem menina, e também com elas estava uma senhora bem idosa, muito séria, muito triste, lembro-me até hoje do coque amarrado no alto da cabeça, de sua face pálida e dos olhos sem brilho. Ela parecia alheia à vida.
Como a Sandra não demorava nunca para entabular uma conversa, logo ela e a jovem senhora já falavam como velhas amigas. Acho que as portuguesas logo perceberam pelo sotaque que éramos brasileiras, e a conversa girou em torno dos dois países, das diferenças quanto aos costumes e ao modo de falar de Portugal e do Brasil. As meninas se animaram e deram seus palpites. Uma delas falou sobre as colegas de escola que já usavam “tacões” (sapatos de salto alto). Não entendemos e me lembro bem de que a Musa ria às largas e as meninas riam mais ainda de nossos termos. De repente as conversas se dividiram, eram a Sandra e a jovem senhora, e eu e a Musa com as meninas. Mesmo conversando um pouco, eu percebi que a senhora idosa nada falava, nunca. Mantinha os olhos abertos, mas tristes e seu silêncio era notório. E a Musa lá instigando as garotas, como é que se diz isso e aquilo, e morria de rir. Perguntou se a mãe era brava e a mais nova disse que sim, que quando aprontavam muito, a mãe lhes dava “palmaditas no rabo”. Isso foi o máximo para a Musa.
Conversa vai, conversa vem, a mãe das meninas desatou a falar do marido, que era um homem belíssimo, e a todo instante nos lembrava disso. E sai um assunto, sai outro, quando a conversa foi para receitas e pratos portugueses. Eu ouvia um pouco lá e um pouco cá. A jovem mãe passou a explicar como era feito um prato que eu entendi como “Papas de São Raimundo”. Depois que acabou de explicar como se fazia o prato, como eu estava dividida nas conversas, pedi a ela que repetisse a receita dos Papas de São Raimundo, o que ocasionou um estrondoso acesso de gargalhadas, pois o nome não era “Papas de São Raimundo”, mas “Papas de Sarrabulho”. E riam e riam. Para minha surpresa, a senhora idosa silenciosa e triste ria com gosto, colocava a mão na boca para disfarçar, mas não se aguentava e chegou mesmo a gargalhar. Eu pensei comigo que “papas” poderiam até significar algo tipo pornográfico, algo indecoroso para com São Raimundo, o que explicaria tantas risadas, mas não, simplesmente riam porque eu havia entendido de São Raimundo.

Bem, já estávamos entrando na cidade do Porto, eu achando tudo lindo, e as portuguesas continuavam rindo sem parar e de todas, a senhora era a que mais ria. Então, a mãe das meninas me disse baixinho com aquele sotaque português adorável: Olha, nunca vi isto acontecer, estou surpresa! Minha mãe não ri há muito tempo, sequer sorri, está numa depressão profunda, estamos indo encontrar meu marido para que ele a leve num médico bom daqui do Porto. E a senhora rindo, não podia olhar para mim, nem eu pra ela. O ônibus parou para que descessem e nos despedimos calorosamente. Lá fora, o marido belíssimo as esperava com um carro igualmente belíssimo, e como o português era lindo! Meu Deus! Um homem alto, másculo e musculoso, parecia um deus grego! Ele e a mulher beijaram-se num daqueles beijos cinematográficos, deixando a gente com olho comprido e água na boca, e pude também perceber a senhora que continuava rindo. Valeu! Quem diria que eu salvaria da depressão uma pobre senhora silenciosa e triste, apenas trocando Papas de Sarrabulho por Papas de São Raimundo! Ora, pois!        

sábado, 21 de maio de 2016

O cão contemplativo




            O fato não teria sido percebido por nós se tivesse ocorrido uma única vez ou algumas poucas vezes. Mas quando o fenômeno se repete sistematicamente, já se torna no mínimo estranho. E assim aconteceu com o nosso cão, protagonista desta história. Ainda bem novo e pequeno chegou para nossa casa de campo e nosso convívio. Chegou numa alegria de fazer inveja, fazendo aquelas travessuras como destroçar travesseiros, almofadas, virar um vaso, aquelas coisas peculiares dos cães. Não foi uma nem duas vezes, como dizia minha mãe, que ele nos trouxe um pobre passarinho na boca como se fosse um presente. Era excessivamente alegre, brincalhão, como são os cães de forma geral. Latia, abanava o rabo, rosnava para estranhos e perseguia animais menores no grande quintal. Mais velho, tornou-se um cão enorme, bonito, admirado por todos que lá frequentavam nossa casa. Um cão extremamente carinhoso, mas como qualquer outro cão, já disse isso.
            Bem, acontece que Rajan, este era seu nome, depois de adulto apresentou um novo comportamento, além daqueles já conhecidos de todos nós. Daí por diante não pude mais considerá-lo um cão como outro qualquer. Como era nosso hábito, sempre ouvíamos clássicos ao entardecer. Rajan e Eros, outro cão adorável que adotamos, continuavam a brincar, correr, dormir enquanto saboreávamos um vinho. Mas numa bela tarde, às primeiras notas da Pachabel de Mozart, Rajan parou com a correria e veio para nossa varanda. Compenetrado, ergueu as orelhas demonstrando estar de ouvidos atentos. Quedou-se ereto, olhando para frente, nada mais nada menos do que para o céu em luz crepuscular que já ao entardecer dava sinais de acolher a noite. Ficamos surpresos, afinal era a primeira vez que nosso menino adotava aquele comportamento inusitado para um cão. A música o inspirara? Sem sombra de dúvidas, mas sempre ouvíamos aquela e outras músicas e ele nunca fizera isso antes. Ao término do concerto, ele ainda continuou imóvel, como em transe. Temíamos acordá-lo. Aquela cena era mágica, encantada, não tínhamos o direito de nos intrometermos. Por conta própria, a seu tempo, Rajan virou-se, olhou para nós, para seu ambiente tão familiar e veio ao nosso encontro alegre como sempre.
            No dia seguinte e nos outros também, Rajan veio para a varanda no mesmo horário ao entardecer, e numa posição de recolhimento, com a cabeça erguida, lá desfrutava de um transe, de uma contemplação absolutamente maravilhosa, algo que nos tocou o fundo da alma. Trocamos as músicas, os músicos, e mesmo no mais completo silêncio lá vinha o cão, numa precisão matemática quanto ao horário, e parecia se esquecer da vida, do mundo, mergulhando em meditação de monges tibetanos. Sua seriedade me comovia, seus olhos estáticos olhando sem ver, seu olhar profundo, tudo era sensibilidade pura naquele adorável cão. Em que pensaria, mas cães não pensam. Não? Já não poderíamos mais dizer isso com tanta certeza. E quando chovia, parecia que ele subia aos céus. Nada atrapalhava sua contemplação.
Estudamos, fomos aos livros, percorremos textos e vídeos que falassem sobre o comportamento de Rajan. Alguns apontavam para outras vidas, memória racial e coisas do gênero. Quem sabe lá em seu íntimo tivesse lembranças remotas, sentisse saudades dos primórdios dos tempos, quando os animais talvez pudessem ter falado nossa língua, ou nós a deles. Uma coisa me intrigava: por que isto não acontecera antes? Aí compreendi. Certo dia, quando eu voltava para casa, dei com um senhor bem idoso que andava com dificuldade apoiado numa bengala. Diminuí o passo porque algo me chamou atenção: de quando em quando ele parava, sem pressa alguma, talvez para descansar ou porque sentisse necessidade de observar melhor as árvores, a natureza pródiga que se apresentava em nosso bairro rural. Captei no olhar do senhor o mesmo encantamento, o mesmo jeito do olhar de Rajan. Talvez fossem pensamentos, sentimentos e desejos diferentes de quando somos jovens, algo como anseios por experiências mais elevadas, espirituais, próprias de seres que já viveram a fase do mundo material, da sofreguidão da  carne, e já se preparam serenamente para novas aventuras infinitamente mais grandiosas do que dessas cá da terra.
Bem, há que se considerar que nem todos os cães são contemplativos como Rajan, e nem todos os humanos enfrentam o entardecer da vida com a mesma sabedoria e sensibilidade, porém tudo se aprende.

     

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Civilização





            O tema é velho, batido, lugar comum e obviamente óbvio, redundância proposital. Quem já não leu ou ouviu falar sobre os excessos trazidos pela civilização e modernidade? Outro dia, eu estava em um consultório médico e conversava sobre filhos com a moça sentada ao meu lado. Perguntei a ela se tinha só o menino de quem ela narrava as travessuras, cheia daquele orgulho e ternura próprios das mães de todos os tempos. Ela me respondeu que sim, que gostaria de mais crianças correndo pela casa, porém a vida complicada e cara de hoje não permitia. E alegou, perguntando a mim e a ela mesma: como pagar um curso de inglês, de computação, de judô, de natação, de yoga infantil para mais de um filho? Impossível. Concordei com ela.
            Imediatamente me reportei a um clássico, à deliciosa obra de Eça de Queiroz, “As cidades e as serras” ou o conto “Civilização”(um condensado do livro), que eu acabara de ler no dia anterior. A história se passa mais ou menos assim: Jacinto, moço rico, nascido praticamente num palácio, tinha ao seu dispor todos os confortos e mordomias que a modernidade do século XIX podia oferecer, como máquina de escrever, telégrafo Morse, fonógrafo, telefone, teatrofone (ah! se o Eça de Queiroz pudesse ver a modernidade dos dias de hoje...) Bom, o moço tinha tudo - uma biblioteca com 1817 volumes só de sistemas filosóficos, sem falar nos compêndios sobre astrologia, medicina e outros tantos. Tinha uma escova chata e redonda para aparar o cabelo no alto, uma escova estreita para ondear o cabelo sobre a orelha, outra côncava para a parte de trás da cabeça, outra de longas cerdas para o bigode e ainda outra mais leve para as sobrancelhas. Não vou citar mais as minúcias dos engenhosos apetrechos do moço porque ninguém merece. Acontece que o Jacinto não era feliz. Trazia uma insatisfação sem remédio dentro do peito, o que o fazia bocejar a todo instante, e a despeito de três cozinheiros experimentados nos melhores cardápios ricos de todas as proteínas, trazia a face pálida e rugas de preocupação.  
            Em busca de novos ares, Jacinto decidiu passar uma temporada nas serras, em uma quinta cuidada por caseiros havia trinta anos. Por precaução, sabendo ele que a construção estava desgastada pelo tempo, enviou uma equipe de engenheiros, arquitetos, trabalhadores e malas e mais malas com todos os confortos necessários para duas semanas de montanha, como camas de penas, poltronas, divãs, banheiras, tapetes persas, livros, vinhos, champanhe, e mais muitas outras coisas. Ocorre que por um lamentável ou providencial erro de comunicação e extravio das malas cheias de modernidade, Jacinto chegou à quinta com a roupa do corpo, e desolado, deu com a casa de janelas sem vidraças, com paredes enegrecidas, buracos no telhado e apenas enxergas no chão. O caseiro Zé Brás, apavorado, atravessando a pior hora de sua vida e com as mãos na cabeça, tratou de providenciar uma ceia para o patrão. Ordenou a um bando de mulheres experientes que logo “depenava frangos, batia ovos e escarolava arroz, com santo fervor”, no dizer da narração sarcástica e adorável de Eça de Queiroz. Nada restou a Jacinto senão esperar pela ceia, encostado na janela sem vidraça, de olho nu nas estrelas que luziam no céu negro da serra. Acabou por considerar que a teoria dos seus compêndios sobre astros era bem diferente da prática real da observação. Inebriado por uma doce paz que vinha do crepúsculo, foi cear e se descobriu com uma fome leonina. Devorou os frangos, os caldos e as favas, sem se lembrar de que não gostava delas. E o vinho! Ah sim, o vinho! Caseiro, de mesa, simples, saboroso. Enfim, depois de algum tempo, encontramos um Jacinto novíssimo, bem diferente daquele da cidade civilizada. Perdera a palidez, ganhando um tom trigueiro e forte. Pescava trutas que ele mesmo assava, e estava de casamento marcado com uma rapariga bela e forte do lugar.
            Pois bem, você me perguntará, com razão, aonde quero chegar e o que isso tem a ver com aquilo e eu respondo que tudo. O mundo moderno do nosso século XXI tem trazido fartura de conhecimentos, aparelhos sofisticados e ricas experiências virtuais para nossas crianças. E tudo de tal maneira que elas serão carentes de experiências reais, como trepar em árvores, sentir a água fria das cachoeiras, ler livros apropriados para sua idade, e saber como é conviver com irmãos. Faz-me lembrar de um professor que há muitos anos contou sobre seu neto, um menino pequeno que o acompanhou até uma fazenda. Horrorizado, o garoto constatou que o leite de seu delicioso milk shake provinha das tetas da vaca, e segredou ao avô que não queria mais tomar o leite porque ele saía muito perto do rabo! É isso que dá criança que não pisa na terra!
            Bom, nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como dizia minha mãe. Há que se ter sempre bom senso, mas é fato, que é no máximo da civilização que o homem experimenta o máximo de tédio, palavras do Jacinto, que eu apenas repasso.

domingo, 15 de maio de 2016

QUEM É ESTA QUE SOU?






Há dias em que abro os olhos de manhã e já sei que estou triste sem exatamente saber por que. Tento me lembrar dos sonhos para ver se é por causa de algum lugar em que estive ao dormir ou alguém ou alguma coisa neste mundo onírico estranho que nos permite outra vida totalmente fora de nosso controle. Não me lembro de nada, aliás, raramente me lembro dos sonhos. Bem, ao sentar-me na cama, percebo que não estou apenas triste, mas fui atingida por uma magna depressão 8.9 na escala Richter com vendavais de ventos a 360 por hora.
Estou deprimida, não há duvidas. Tento me recompor. Levanto os olhos para o alto e peço ajuda aos Céus. Peço perdão a Deus pelos meus pecados e da humanidade toda. Cada passo é uma tortura, parece que carrego toneladas de correntes tão pesadas que dificultam a subida de um condenado à forca. Doem-me as articulações, os joelhos, os olhos, a alma. Olho pela janela, céu azul de inverno, domingo, tudo na santa paz de Deus. Nada de catastrófico concreto aconteceu. Sou eu, a mesma de ontem e de tantos anos.
Há dias em que durante a noite sou acordada com a chuva que fustiga violentamente minha janela. Trovões furiosos explodem, relâmpagos com força para destroçar a terra iluminam meu quarto como se fosse dia. O mundo parece desabar. Sinto-me em paz. Durmo mais um pouquinho. Acordo feliz, com uma disposição hercúlea. Abro os braços como se pudesse abraçar o mundo. Hoje sou capaz de inventar uma receita estrambótica, escrever aquele livro de 380 páginas que ganhará o Nobel, sou capaz de dançar balés clássicos e modernos mesmo já com a artrose que roubou as cartilagens de meus joelhos. Sou capaz de salvar o planeta, de estabilizar a camada de ozônio, tenho ideias brilhantes para o desastre financeiro e outras façanhas que parecem impossíveis.
Sinto-me abençoada, gratificada, feliz por nada como diz Martha Medeiros. Sou eu, a mesma de ontem e de tantos anos. Olho pela janela, o céu carrancudo me atesta que as coisas não estão tão bem assim, que não há razão para tanta euforia, mas eu me sinto feliz e pronto.
Quem é esta que sou? De que matéria fui feita?Evidentemente que as mudanças estão dentro de mim. Como sempre somos o que somos dentro da pele e não fora. Não são as tempestades nem as calmarias do planeta que me atingem, mas as interiores, independentes, as outras de mim que vêm e vão como bem entendem.
Já sei que quando acordo pesada, tudo será difícil, melhorando muito devagar, provavelmente será aquele dia em que levarei alguns longos minutos olhando para uma batata na mão esquerda e outra na mão direita, tentando me decidir qual delas devo cozinhar. De outro modo, quando acordo leve feito uma pluma, olho o céu, agradeço a chuva, o sol, o calor, o frio. Tudo me parece certo.

De que subterrâneos emerge esta criatura estranha que sou? Aquela que ora vê o mundo e sente que tudo está perdido, que contempla a vida a acha triste, e ora sente a esperança brotar como água da pedra, que tudo está em ordem e harmonia neste universo misterioso e belo que nos foi presenteado com tanto amor? Esta sou eu, sem mais nem menos.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O espírito





Minha avó sempre foi muito religiosa, assim como depois minha mãe. As duas foram zeladoras com fitas vermelhas e cruz e fizeram parte do Apostolado da Oração, prática piedosa e preciosíssima. Pois então, minha mãe ainda criança, mocinha, soube guardar e contar: lá onde moravam tinham por vizinhos uma família como outra qualquer, só que o marido era homem sem piedade alguma, implicava com a mulher por ir à igreja, proibia até. Eis que um dia ficou doente, muito mal. Todos sabiam que ia morrer, ele resmungando, xingando, uma situação difícil. Para minha avó, ele podia espernear e xingar o quanto quisesse, mas o que não podia era morrer sem Deus, sem uma confissão, sem um sinal da cruz. Então ela foi lá com algumas companheiras do apostolado, conversou com a mulher na cozinha, as duas falando baixinho. Coitada, a mulher chorava e mexia a lenha no fogão, sempre limpando as lágrimas e o suor no avental, a senhora vê, nem à igreja ele deixa a gente ir, a Marianinha ainda nem fez a Primeira Comunhão. Minha avó criou coragem, entrou lá no quarto e perguntou para o agonizante, o senhor permite que a gente chame o padre, é bom para o senhor, vai ver, ao que o homem, cheio de ódio, respondeu com os maiores palavrões, acrescentando, se entrar padre aqui, eu mato e outras coisas assim, blasfemando sem nenhum temor. A mulher começou a chorar alto, foi um Deus nos acuda, minha avó saiu arrasada, pensando que não podia entrar assim na vida dos outros, cada um é como é e ninguém tem nada com isso, porém ao mesmo tempo com a consciência limpa, de quem tinha feito o que era possível fazer. Então, naquela noite, minha avó deitou-se para dormir, fez as orações, as crianças já iam a sono solto. Ela costumava deixar acesa a luz da salinha para quebrar um pouco da escuridão, os filhos no quarto de dentro, do jeito que usava, um quarto para dentro de outro. Lá pelas tantas, ela, que não conseguia dormir, viu que a luz da salinha apagou-se até tudo mergulhar na mais profunda escuridão. Minha avó teve medo, foi tomada por um pressentimento, um frio de morte. Nesse instante sentiu passar por ela um vulto, uma coisa que a tocou, fisicamente mesmo, e passou adiante. Ela gelou, sabia que coisa normal não era. Ela contava que havia ficado imóvel, sem mexer um músculo, só ouvindo a própria respiração que controlava para não fazer barulho. Demorou um pouquinho e a luz voltou. Daí a poucos instantes meu avô entrou. Naquela época ninguém usava chave, a porta estava encostada numa cadeira. Ela respirou aliviada e ouviu dele, o fulano acabou de morrer, agorinha, há dez minutos atrás, nem isso, tá a maior choradeira na casa. Minha avó compreendeu, era ele, o espírito do homem, querendo o quê, só Deus sabe.  Tomara que tenha se arrependido a tempo. De qualquer forma, amanhã peço ao padre para celebrar missas por alma do infeliz e que Deus tenha piedade dele e de todos nós. Amém.






sexta-feira, 6 de maio de 2016

Alguém viu minha mãe?






            Alguém viu minha mãe? Ela era uma pessoa extraordinária (seu adjetivo preferido). Era uma mulher sui generis, bonita e valente como ela só. Tinha o rosto harmonioso, uma tez perfeita, um nariz afilado e um porte elegante. Parecia a Ingrid Bergman. Na verdade, acho que ela se parecia mais com a Ingrid Bergman do que a própria Ingrid Bergman. Ela era a melhor costureira de camisas de homem que já existiu, ensinava corte e costura, tinha quase um metro e setenta, mais ou menos. Era uma mulher de fibra. Sempre que surgia algum problema, ainda que grave, ela apenas dizia: ora gente, que bobagem! E assim, dessa forma, fazia parecer que os problemas não existiam ou eram pequenos demais diante da grandeza da alma e da vida.
            Minha mãe era generosa. Nunca deixava que um pobrezinho saísse de nossa casa sem um prato de comida que ela própria esquentava. Quando chegava do mercado com sacolas pesadas, costumava dizer sorrindo que, quando chegasse sua última hora, diante de Deus, e isso para nós estava tão distante quanto o sol da terra, ela, se não tivesse mais nada a apresentar a Ele, mostraria as sacolas que nos sustentavam, mostraria seu trabalho de dona de casa, de mãe, ou seja, a simplicidade grandiosa de sua vida.     
            Dentre as poucas coisas que ela trouxe em seu simples enxoval de casamento, constava uma toalha bordada para uma mesa redonda. Era linda! Havia uma princesa vestida de azul com pedrinhas que brilhavam. Quando eu era menina, costumava rodear a mesa para sentir com meus dedos a maciez do tecido do vestido da princesa e conferir o brilho das pedrinhas. À medida que o bordado seguia o rodear da toalha, a história da princesa se desenrolava em bordados diferentes. Ela caminhava numa vereda florida e estava sempre rodeada de borboletas, passarinhos e esquilos que se escondiam aqui e ali. Enfim, a princesa era acompanhada por esses seres das histórias de fadas e princesas encantadas, em que o mundo é perfeito, em que todos são felizes para sempre. O sol estava sempre brilhando, não havia tempestades, os sorrisos eram sempre tranquilos e certos. Ninguém ficava doente, ninguém morria, tudo era felicidade! Porém, nas mudanças que tivemos que fazer, nunca mais vi a toalha, nem soube da princesa.
            Ocorreu que certo dia, de forma inesperada, como é a vida e a morte, o impiedoso barqueiro chegou e trouxe uma canoa especial, dessas para caber uma só pessoa. Minha mãe não teve medo porque medo era coisa que para ela não existia. Ora gente, que bobagem! E lá foi ela, ansiosa para estar com Deus. O que mais me doeu foi seu silêncio. Não falou mais conosco. Só nos olhava com aquele olhar misterioso e cansado que tanto nos machucou. Havia uma dignidade justa naquele olhar. Mãe não devia morrer, ainda mais a minha! Soa esquisito, atrapalha a ordem da criação, faz parecer que alguma coisa está errada na harmonia do universo. Senti uma dor imensa dentro de meu peito. Era a odiosa saudade que já chegava de malas prontas para ficar. Nada me restou senão abrir as portas para ela e acolhê-la como amiga.
            A morte é tirana, porém é autêntica, é verdadeira. A vida acaba por nos enganar. Como dizia Manuel Bandeira, “a vida assim nos afeiçoa, prende. Antes fosse toda fel! Que ao  mostrar às vezes boa, ela requinta em ser cruel”. A vida nos dá os laços e nos ensina a brincar com eles, aprendemos a apertá-los. Ah os laços! Os laços com seus nós duros que depois não conseguimos desatar. Mas aí chega ela, a morte, e os corta com precisão matemática, tal como o execrável e competente carrasco habituado na guilhotina a descer a lâmina de uma vez só, sem dó nem piedade. 
            Alguém viu minha mãe? Se alguém a viu, eu preciso saber. Eu preciso ainda dizer algumas coisas, afinal sempre ficam coisas a dizer. Não me mostrem fotos, agora não, quem sabe mais tarde. Também não me digam que foi melhor assim, eu sei que foi, mas agora não, ainda não. Se alguém viu a toalha, aquela da princesa, eu preciso saber, eu ainda quero sentir a maciez do seu vestido, eu preciso saber o final da história. Naquela época eu julgava que a toalha me acompanharia por toda a vida, bem como a princesa, a minha linda e encantada princesa, linda e encantada como ela só.    



terça-feira, 3 de maio de 2016

AMOR DE OUTONO (num certo feriado ...)




            Hoje amanheceu mais um dia de sol e céu azul. Como é feriado, todos puderam se permitir uma noite de sono profundo e regozijar-se com o silêncio da manhã quando as betoneiras silenciaram, o bater de estacas foi interrompido, buzinas de carros e roncos de motos igualmente descansaram. E todos ajeitaram suas mantas para dormir até mais tarde, menos os aposentados como eu que não conseguem descansar sem culpa, pois seu inconsciente programado há tanto tempo para acordar cedo, estranham o tempo livre e se comportam como se ainda trabalhassem. Tal qual alma penada que se recusa a deixar os lugares onde viveu, esses aposentados deixaram o trabalho, mas o bendito trabalho não os deixou. Daí vem a culpa quando podem dormir um pouco mais em pleno dia de semana.  
            Bem, podia ser um dia comum, mas não foi e não é, antes diria que foi um dia glorioso, uma vez que eu sabia que um amor que nunca foi, fora finalmente resgatado. E esses amores assim tardios provam que não existe idade nem tempo exato para amar, que o encontro entre duas pessoas depois de tanto tempo é algo tão raro e tão precioso que é quase como encontrar um tesouro de valor incalculável. Um amor tardio vem faminto, saudoso e repleto de vida.  E amar num dia bonito torna tudo mais poético e mais belo, certamente inesquecível. Sempre se lembrarão do outono neste dia e sempre farão associações de dias outonais com amores felizes e encantados. Voltarão plenos de alegria para suas vidas, sentindo-se como reis e rainhas em dias de glória, e terão a certeza de que viver vale a pena.
            A mim coube apenas e discretamente registrar tal anônimo acontecimento, e também, agradecida, louvar a estação tão querida que mais me encanta, pois nasci no outono e no mês de Maria. As camélias, antúrios e orquídeas acordaram e, languidamente, se espreguiçaram e se abriram saciadas deixando o friozinho da manhã banhar suas folhas verdes e suas flores multicores.  Todas agradeceram ao sol que chegou timidamente anunciando que seus raios já não são mais de verão. Também os amantes compartilharam “as promessas de vida em seu coração”...
            Tudo maravilhoso, mas nada é perfeito, logo o caos nos envolve, e vem uma coisa ou outra para traiçoeiramente nos atestar que a vida é incerta. E ficamos paspalhos e perplexos. Todavia, por ora, está tudo bem, que venham muitos outonos e mais amores cálidos. Só por hoje sejamos felizes e quem sabe amanhã também.