O tema é velho, batido, lugar comum
e obviamente óbvio, redundância proposital. Quem já não leu ou ouviu falar
sobre os excessos trazidos pela civilização e modernidade? Outro dia, eu estava
em um consultório médico e conversava sobre filhos com a moça sentada ao meu
lado. Perguntei a ela se tinha só o menino de quem ela narrava as travessuras,
cheia daquele orgulho e ternura próprios das mães de todos os tempos. Ela me
respondeu que sim, que gostaria de mais crianças correndo pela casa, porém a
vida complicada e cara de hoje não permitia. E alegou, perguntando a mim e a
ela mesma: como pagar um curso de inglês, de computação, de judô, de natação, de
yoga infantil para mais de um filho? Impossível. Concordei com ela.
Imediatamente me reportei a um
clássico, à deliciosa obra de Eça de Queiroz, “As cidades e as serras” ou o
conto “Civilização”(um condensado do livro), que eu acabara de ler no dia
anterior. A história se passa mais ou menos assim: Jacinto, moço rico, nascido
praticamente num palácio, tinha ao seu dispor todos os confortos e mordomias
que a modernidade do século XIX podia oferecer, como máquina de escrever,
telégrafo Morse, fonógrafo, telefone, teatrofone (ah! se o Eça de Queiroz
pudesse ver a modernidade dos dias de hoje...) Bom, o moço tinha tudo - uma
biblioteca com 1817 volumes só de sistemas filosóficos, sem falar nos
compêndios sobre astrologia, medicina e outros tantos. Tinha uma escova chata e
redonda para aparar o cabelo no alto, uma escova estreita para ondear o cabelo
sobre a orelha, outra côncava para a parte de trás da cabeça, outra de longas
cerdas para o bigode e ainda outra mais leve para as sobrancelhas. Não vou
citar mais as minúcias dos engenhosos apetrechos do moço porque ninguém merece.
Acontece que o Jacinto não era feliz. Trazia uma insatisfação sem remédio
dentro do peito, o que o fazia bocejar a todo instante, e a despeito de três
cozinheiros experimentados nos melhores cardápios ricos de todas as proteínas,
trazia a face pálida e rugas de preocupação.
Em busca de novos ares, Jacinto
decidiu passar uma temporada nas serras, em uma quinta cuidada por caseiros
havia trinta anos. Por precaução, sabendo ele que a construção estava desgastada
pelo tempo, enviou uma equipe de engenheiros, arquitetos, trabalhadores e malas
e mais malas com todos os confortos necessários para duas semanas de montanha,
como camas de penas, poltronas, divãs, banheiras, tapetes persas, livros,
vinhos, champanhe, e mais muitas outras coisas. Ocorre que por um lamentável ou
providencial erro de comunicação e extravio das malas cheias de modernidade,
Jacinto chegou à quinta com a roupa do corpo, e desolado, deu com a casa de
janelas sem vidraças, com paredes enegrecidas, buracos no telhado e apenas
enxergas no chão. O caseiro Zé Brás, apavorado, atravessando a pior hora de sua
vida e com as mãos na cabeça, tratou de providenciar uma ceia para o patrão.
Ordenou a um bando de mulheres experientes que logo “depenava frangos, batia
ovos e escarolava arroz, com santo fervor”, no dizer da narração sarcástica e
adorável de Eça de Queiroz. Nada restou a Jacinto senão esperar pela ceia, encostado
na janela sem vidraça, de olho nu nas estrelas que luziam no céu negro da
serra. Acabou por considerar que a teoria dos seus compêndios sobre astros era
bem diferente da prática real da observação. Inebriado por uma doce paz que
vinha do crepúsculo, foi cear e se descobriu com uma fome leonina. Devorou os
frangos, os caldos e as favas, sem se lembrar de que não gostava delas. E o
vinho! Ah sim, o vinho! Caseiro, de mesa, simples, saboroso. Enfim, depois de
algum tempo, encontramos um Jacinto novíssimo, bem diferente daquele da cidade
civilizada. Perdera a palidez, ganhando um tom trigueiro e forte. Pescava
trutas que ele mesmo assava, e estava de casamento marcado com uma rapariga
bela e forte do lugar.
Pois bem, você me perguntará, com
razão, aonde quero chegar e o que isso tem a ver com aquilo e eu respondo que
tudo. O mundo moderno do nosso século XXI tem trazido fartura de conhecimentos,
aparelhos sofisticados e ricas experiências virtuais para nossas crianças. E
tudo de tal maneira que elas serão carentes de experiências reais, como trepar
em árvores, sentir a água fria das cachoeiras, ler livros apropriados para sua
idade, e saber como é conviver com irmãos. Faz-me lembrar de um professor que
há muitos anos contou sobre seu neto, um menino pequeno que o acompanhou até
uma fazenda. Horrorizado, o garoto constatou que o leite de seu delicioso milk shake
provinha das tetas da vaca, e segredou ao avô que não queria mais tomar o leite
porque ele saía muito perto do rabo! É isso que dá criança que não pisa na
terra!
Bom,
nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como dizia minha mãe. Há que se ter sempre
bom senso, mas é fato, que é no máximo da civilização que o homem experimenta o
máximo de tédio, palavras do Jacinto, que eu apenas repasso.
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