sábado, 21 de maio de 2016

O cão contemplativo




            O fato não teria sido percebido por nós se tivesse ocorrido uma única vez ou algumas poucas vezes. Mas quando o fenômeno se repete sistematicamente, já se torna no mínimo estranho. E assim aconteceu com o nosso cão, protagonista desta história. Ainda bem novo e pequeno chegou para nossa casa de campo e nosso convívio. Chegou numa alegria de fazer inveja, fazendo aquelas travessuras como destroçar travesseiros, almofadas, virar um vaso, aquelas coisas peculiares dos cães. Não foi uma nem duas vezes, como dizia minha mãe, que ele nos trouxe um pobre passarinho na boca como se fosse um presente. Era excessivamente alegre, brincalhão, como são os cães de forma geral. Latia, abanava o rabo, rosnava para estranhos e perseguia animais menores no grande quintal. Mais velho, tornou-se um cão enorme, bonito, admirado por todos que lá frequentavam nossa casa. Um cão extremamente carinhoso, mas como qualquer outro cão, já disse isso.
            Bem, acontece que Rajan, este era seu nome, depois de adulto apresentou um novo comportamento, além daqueles já conhecidos de todos nós. Daí por diante não pude mais considerá-lo um cão como outro qualquer. Como era nosso hábito, sempre ouvíamos clássicos ao entardecer. Rajan e Eros, outro cão adorável que adotamos, continuavam a brincar, correr, dormir enquanto saboreávamos um vinho. Mas numa bela tarde, às primeiras notas da Pachabel de Mozart, Rajan parou com a correria e veio para nossa varanda. Compenetrado, ergueu as orelhas demonstrando estar de ouvidos atentos. Quedou-se ereto, olhando para frente, nada mais nada menos do que para o céu em luz crepuscular que já ao entardecer dava sinais de acolher a noite. Ficamos surpresos, afinal era a primeira vez que nosso menino adotava aquele comportamento inusitado para um cão. A música o inspirara? Sem sombra de dúvidas, mas sempre ouvíamos aquela e outras músicas e ele nunca fizera isso antes. Ao término do concerto, ele ainda continuou imóvel, como em transe. Temíamos acordá-lo. Aquela cena era mágica, encantada, não tínhamos o direito de nos intrometermos. Por conta própria, a seu tempo, Rajan virou-se, olhou para nós, para seu ambiente tão familiar e veio ao nosso encontro alegre como sempre.
            No dia seguinte e nos outros também, Rajan veio para a varanda no mesmo horário ao entardecer, e numa posição de recolhimento, com a cabeça erguida, lá desfrutava de um transe, de uma contemplação absolutamente maravilhosa, algo que nos tocou o fundo da alma. Trocamos as músicas, os músicos, e mesmo no mais completo silêncio lá vinha o cão, numa precisão matemática quanto ao horário, e parecia se esquecer da vida, do mundo, mergulhando em meditação de monges tibetanos. Sua seriedade me comovia, seus olhos estáticos olhando sem ver, seu olhar profundo, tudo era sensibilidade pura naquele adorável cão. Em que pensaria, mas cães não pensam. Não? Já não poderíamos mais dizer isso com tanta certeza. E quando chovia, parecia que ele subia aos céus. Nada atrapalhava sua contemplação.
Estudamos, fomos aos livros, percorremos textos e vídeos que falassem sobre o comportamento de Rajan. Alguns apontavam para outras vidas, memória racial e coisas do gênero. Quem sabe lá em seu íntimo tivesse lembranças remotas, sentisse saudades dos primórdios dos tempos, quando os animais talvez pudessem ter falado nossa língua, ou nós a deles. Uma coisa me intrigava: por que isto não acontecera antes? Aí compreendi. Certo dia, quando eu voltava para casa, dei com um senhor bem idoso que andava com dificuldade apoiado numa bengala. Diminuí o passo porque algo me chamou atenção: de quando em quando ele parava, sem pressa alguma, talvez para descansar ou porque sentisse necessidade de observar melhor as árvores, a natureza pródiga que se apresentava em nosso bairro rural. Captei no olhar do senhor o mesmo encantamento, o mesmo jeito do olhar de Rajan. Talvez fossem pensamentos, sentimentos e desejos diferentes de quando somos jovens, algo como anseios por experiências mais elevadas, espirituais, próprias de seres que já viveram a fase do mundo material, da sofreguidão da  carne, e já se preparam serenamente para novas aventuras infinitamente mais grandiosas do que dessas cá da terra.
Bem, há que se considerar que nem todos os cães são contemplativos como Rajan, e nem todos os humanos enfrentam o entardecer da vida com a mesma sabedoria e sensibilidade, porém tudo se aprende.

     

Um comentário:

  1. misinha, como vc diz na epígrafe do seu blog, a vida real é a melhor ficção! tá aí: fruto de nossas conversas, da observação dos elementos da natureza e neste caso, de um cão, vc misturou primorosamente a ficção com a realidade, acrescentando ainda, a história de um senhor que tem a sabedoria de parar em meio a sofreguidão, para pensar que o que mais importa é passar por este mundo sem se apegar a nada dele... grande contradição para mim, pois justamente desses 2 cães que vc cita e tão bem enreda no seu conto, tenho que trabalhar o desapego, para o bem deles e o meu! quem sabe é sobre isso que o rajan medita e busca na contemplação da NATUREZA, esse desapego de que ele tb, tanto precisa! vc não existe, misinha! baijo

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