A
velhice chega e chegará para todos, a menos que a morte se adiante em sua
jornada. Mas falo sobre pais velhinhos e sobre as dificuldades de
relacionamento que os filhos encontram nesta fase de suas vidas. E a velhice
também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse
caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o
exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a
folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase
todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou
um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As
famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá
estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar
dos pais. Nem sempre. Há que se considerar que como as pessoas são humanas
demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais
um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros
nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens
dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer
enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
Lidar com a demência senil é tarefa
delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não
acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na
demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há
regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um
temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo
crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida.
Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu.
Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira
exacerbado, que a convivência fica quase impossível.
Não nos esqueçamos dos casos em que
a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de
doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer
dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de
hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros
tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se
agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica
obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque
perdeu a paciência, e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê
outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que
somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à
sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.
Evidentemente, todo esse caos familiar vai se
estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para
lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para
auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também
precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de
problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse
ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos
cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que
haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que
invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não
aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil
insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os
pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude
dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua
cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era
reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando
chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria
essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria
chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de
quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha
mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara
lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...”
ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela
voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia
se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário
dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe,
até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos
muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha
tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra
questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo
sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma
equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas
na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de
vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É
admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar
incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um
pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como
se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma
reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma
ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam: “mas ninguém mesmo?” outros ainda
insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um
pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase
com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar
outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer
ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas
porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar
cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar
mesmo ninguém?
Não
há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso demente que não
seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando
nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo.
Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão
prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de
cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das
feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava
escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe,
quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca
de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por
um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha
lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos
bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos
em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e
que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também
em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo
o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar,
mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.
Num
dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre
seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra
trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender
melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado,
tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os
ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr.
Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e
já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram
concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de
expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na
época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto
eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele
bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero
que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso
coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco
quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua
confiança no futuro cheio de projetos. Ainda
são eles, são os nossos velhos.
A
princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha,
dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de
todas as nossas experiências. Nunca saberemos por que tivemos que passar por
isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são
mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o
sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que
podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável
viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao
seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.
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