terça-feira, 28 de junho de 2016

DEMÊNCIA, O RESGATE DA TERNURA





 A velhice chega e chegará para todos, a menos que a morte se adiante em sua jornada. Mas falo sobre pais velhinhos e sobre as dificuldades de relacionamento que os filhos encontram nesta fase de suas vidas. E a velhice também pode trazer a demência, o que certamente piora a situação, pois nesse caso não há um só argumento para usar com os velhos pais. Só nos restará o exercício do amor e da paciência. Os filhos, confusos e apavorados, consultam a folha sobre as características da demência, item por item. Reconhecem quase todas no comportamento dos pais. Há muitos casos em que o casal fica demente ou um deles. Em outros casos, um adoece fisicamente e o outro se torna demente. As famílias de antigamente levam alguma vantagem nesse caso, pois numerosas, lá estão as cinco filhas ponderando sobre um esquema de revezamento para cuidar dos pais. Nem sempre. Há que se considerar que como as pessoas são humanas demais, não há acordo e muitas vezes, a velhice, acrescida de demência é mais um fator para separar a família, infelizmente. Os filhos homens são mais raros nesse tipo de ajuda direta aos pais. Também nem sempre. Há filhos homens dedicados que lidam com os pais velhinhos com mais habilidade do que qualquer enfermeiro ou do que qualquer filha mulher. Cada caso é um caso.
            Lidar com a demência senil é tarefa delicada, requer sensibilidade e paciência, ninguém deve se culpar por não acertar sempre. O mais provável é errar, afinal é errando que se aprende. Na demência, acertar é difícil porque a imprevisibilidade é o previsível. Não há regra, como tudo na vida. Às vezes, os idosos dementes apresentam um temperamento totalmente diferente do que apresentavam anteriormente, fazendo crer que tiveram seus sentimentos e comportamentos reprimidos por toda a vida. Assim, libertos das peias da censura, manifestam livremente seu verdadeiro eu. Podem também apresentar seu próprio temperamento, porém de tal maneira exacerbado, que a convivência fica quase impossível.   
            Não nos esqueçamos dos casos em que a demência é circunstancial, aquela que provém de estresses hospitalares, de doenças físicas dolorosas que prendem o idoso numa cama, que o fazem sofrer dores terríveis. E são levados de um lado para outro, para procedimentos de hemodiálise, para alimentação por meio de sondas gástricas, curativos e outros tantos desgastes. Aí eles se desesperam, perdem a sanidade mental, tornam-se agressivos com todos. E que será daquela filha que por anos se dedica obstinadamente a cuidar dessa mãe ou desse pai e que também se desespera porque perdeu a paciência, e numa oração entre lágrimas, suplica a Deus que lhe dê outra oportunidade de fazer tudo certo. Muito difícil será convencê-la de que somos todos humanos e que certamente “a imperfeição nos acompanhará até à sepultura”, palavras de São Francisco de Sales.     
             Evidentemente, todo esse caos familiar vai se estabilizando com o tempo, à medida que os filhos vão encontrando caminhos para lidar com a nova situação. Quando se é possível contratar profissionais para auxiliar no cuidado com os pais, tanto melhor porque aquele que cuida também precisa de cuidados ou ficará fragilizado para enfrentar toda a sorte de problemas advindos dessa nova e estranha fase da vida que ora têm pela frente.
Nesse ponto duas questões importantes devem ser enfatizadas: a primeira é quanto aos cuidadores contratados. Até que seja estabelecida uma rotina, é natural que haja resistência por parte dos idosos. Para eles são pessoas estranhas que invadem seu mundo, sua casa, suas coisas e o são de fato, afinal quem não aprecia sua privacidade? Tudo poderá ser conseguido com paciência e sutil insistência. Há casos em que se torna necessário fazer muitas trocas até que os pais possam aceitar e gostar de quem os cuida. Eu, particularmente, só pude dormir melhor quando sabia com certeza que minha mãe estava feliz com sua cuidadora carinhosa, alegre e dispensadora dos maiores cuidados. Era reconfortante assistir ao sorriso estampado no rosto de minha mãe quando chegava quem ela gostava tanto, apesar de não ter a menor idéia de quem seria essa moça que chegava e ia embora. Nem mesmo seu nome ela sabia e quando queria chamá-la saíam os mais variados nomes possíveis. Nunca vou me esquecer de quando essa preciosa colaboradora estava em seu último dia de férias e minha mãe, que até então não tinha percebido nem mencionado sua ausência, numa clara lucidez no meio de uma cruel demência, ela disse: “A Maria me deixou...” ao que eu me apressei em lhe dizer que não, que exatamente no dia seguinte ela voltaria, mas a essa altura sua mente já vagava por outras paragens, já havia se esquecido do comentário e da presença de sua Maria. Torna-se necessário dizer que antes de Maria, muitas outras Marias passaram pela casa de minha mãe, até que houve uma empatia construída com paciência e amor. Também tivemos muitas decepções com outras cuidadoras, erramos e aprendemos, como dizia minha tia: “onde tem gente, tem coisa de gente..”.
Outra questão importante é fazer um esforço para não querer abraçar todo o universo sozinho. É verdade que nem todos, aliás, bem poucos, são os que podem ter uma equipe bem formada, pois é quase uma empresa e tudo custa muito dinheiro, mas na medida do possível, o cuidador direto precisa de descanso, de distração, de vida própria ou não sobreviverá ao cansaço físico, emocional e mental. É admirável a força de alguns filhos e maridos ou mulheres que se põem a cuidar incansavelmente de seus queridos. Só que mesmo quando é possível delegar um pouco as tarefas, eles não aceitam, ao contrário, expõem mil dificuldades, como se somente eles e ninguém mais fosse capaz de cuidar. Não é raro ouvir em uma reunião, cuidadores dizerem que não têm ninguém, que não podem contar com nenhuma ajuda. Impressionados, outros membros do grupo questionam:  “mas ninguém mesmo?” outros ainda insistem: “nem uma meia hora para que o senhor possa assistir um pouco de TV ou ir tomar um sorvete?” ao que o senhor sempre responde quase com orgulho: “não, não tenho ninguém, só eu somente”. Sem querer julgar outras famílias, pois sabemos que há aquelas que realmente não têm qualquer ajuda e sabemos também que é difícil e imprudente falar de outras pessoas porque o contexto familiar é sempre único e complexo, mas há que se tomar cuidado para não adoecer, pois se adoecemos, quem poderá cuidar se não restar mesmo ninguém?   
Não há outro caminho para viver essa situação de cuidados ao idoso demente que não seja o do amor e o da paciência. E qual seria o caminho do amor? Talvez olhando nos olhos deles, entrando em seu tempo, em seu ritmo, em seu universo. Despendendo tempo ao estar com eles, descobrindo as coisas que ainda lhes dão prazer, que os fazem lembrar um tempo em que eram felizes. Esse tempo de cuidados é muito precioso para pais e filhos. Pode ser o tempo da cura das feridas emocionais, do resgate de uma ternura que sempre existiu e que estava escondida. Ainda sinto em minhas mãos o contato macio das mãos de minha mãe, quando ficávamos de mãos entrelaçadas, alimentando nossas carências, numa troca de carinhos que nunca existiu anteriormente, embora eu nunca tenha duvidado por um segundo sequer em minha vida do seu amor por mim. Sempre vou ter em minha lembrança aqueles gestos lentos em que ela tentava guardar o lencinho nos bolsos ou entre os botões da blusa. Sempre vou me lembrar de quando parávamos em frente à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, passeio que ela adorava fazer e que fizemos três dias antes que ela se fosse. Eu fazia o sinal da cruz e ela também em seguida. Essas lembranças são tão preciosas que não digo que eu viveria todo o período difícil novamente e choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado e de amor.          
Num dia, talvez mais tarde, quando eles tiverem ido embora, vamos encontrar entre seus guardados, um bilhete, uma tentativa de escrever uma carta e na letra trêmula com que tentaram expor suas idéias já confusas, vamos compreender melhor suas dificuldades, vamos entender que buscavam saídas para seu estado, tentando preservar sua dignidade. Pode ser a encomenda de um livro que os ajudasse, o conselho de uma pessoa que assistiram pela televisão. “... Sr. Fulano”, depois riscam e colocam “Sra. Fulana... peço...” e já não entendemos o restante, não tem final, parece que não conseguiram concluir. Tampouco enviaram a carta. Não nos falaram. Não tiveram coragem de expor seus medos, suas inseguranças. Não lhe demos oportunidades porque na época as providências para a situação urgiam e estávamos tão apavorados quanto eles, era o início daquela desconhecida fase da velhice. Aí abraçamos aquele bilhete com tanto amor e tanta ternura como se fossem eles próprios. E reitero que esse amor e essa ternura certamente estiveram presentes dentro de nosso coração o tempo todo. Também olhamos suas fotos, aquelas que estão conosco quando ainda éramos crianças, olhamos seus sorrisos, seus olhos brilhantes, sua confiança no futuro cheio de projetos.  Ainda são eles, são os nossos velhos.
A princípio essa experiência de cuidados com os idosos pode ser estranha, dolorosa e ameaçadora, porém pode se revelar como a mais terna e mais rica de todas as nossas experiências. Nunca saberemos por que tivemos que passar por isso, nem por que outras pessoas tiveram que passar por outros dramas, são mistérios indecifráveis até aqui. Mas tanto quanto sei, podemos transformar o sofrimento em amor, a angústia em ternura e fazer da velhice uma época em que podemos nos reencontrar, nós e eles, nossos idosos, como naquela agradável viagem, em que tudo podemos aprender e saborear até que o trem chegue seguro ao seu destino final e saberemos que a viagem terá valido a pena.  


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