Ela apareceu naquela tarde e ficou
espiando nossa brincadeira de rua. Era uma menina linda, esguia, de cabelos
loiros e olhos azuis como bolinhas de gude, lembrava uma pequena dinamarquesa. Morava
lá para baixo, mas não foi direto para casa. Ficou ali, tímida, só espiando. Eu
era a dona da brincadeira. Cheia de poder, conduzia o jogo, mandava aqui e ali,
elevava a voz até que minha mãe aparecesse no alpendre me chamando: Maria Luiza, mais baixo, isso não é modo de menina! E a Maria Helena ali, com
uma vontade imensa de entrar no jogo. Antes não tivesse chamado a menina para
brincar. Chamei. Ela entrou, ficou feliz, jogou pouco tempo até que chutou uma
pedra e seu dedo do pé abriu numa ferida muito feia, sangrou bastante.
Queríamos ajudá-la, eu queria chamar minha mãe, mas ela não deixou, só fazia
que não com a cabeça, foi embora, daquele jeito que acontece quando se a gente
falar uma palavra, começa a chorar. Na semana seguinte, na igreja, ensaiávamos
para a Primeira Comunhão. Vi Maria Helena, e ela também me viu. Nossos olhares
se cruzaram, e então eu olhei para seu pé, lembrando-me do machucado. Ela tinha
um pano enrolado no pé descalço.
Alguns dias mais tarde, ouvi minha mãe
ao telefone com minha tia. Minha mãe perguntava, assustada, a filha do Lorenzo? Sei, sei quem é. Ah meu
Deus, tétano, mas não tem jeito? Está mal, sei, sei. Senti uma zonzeira,
fiquei apavorada como quem cometeu um crime e teme ser descoberto. Fui atrás de
meu primo e ele já sabia, também sentia o mesmo medo meu, acho até que traçamos
algumas estratégias de fuga, pensávamos que seríamos presos. Não me lembro
exatamente quando tivemos que confessar o crime e quem nos livrou da culpa. Sei
que Maria Helena logo morreu, depois de ter sofrido horrores com o tétano. Não
tive culpa, mas eu me sentia culpada assim mesmo. Se bobear até hoje sinto essa
culpa. Como punição, segui pela vida com um medo danado do tétano. Não devia
ter chamado a menina para brincar, aí eu sentiria outra culpa, eu sei, mas ela
teria vivido, teria tido um amor, filhos, tristezas e alegrias, tudo que é da
vida e não da morte. Ainda era muito cedo pra morrer. Ela não chegou a fazer a
Primeira Comunhão. Aprendi que a culpa é uma das coisas mais difíceis dessa
vida. Mea culpa.
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