quarta-feira, 22 de junho de 2016

MEA CULPA





Ela apareceu naquela tarde e ficou espiando nossa brincadeira de rua. Era uma menina linda, esguia, de cabelos loiros e olhos azuis como bolinhas de gude, lembrava uma pequena dinamarquesa. Morava lá para baixo, mas não foi direto para casa. Ficou ali, tímida, só espiando. Eu era a dona da brincadeira. Cheia de poder, conduzia o jogo, mandava aqui e ali, elevava a voz até que minha mãe aparecesse no alpendre me chamando: Maria Luiza, mais baixo, isso não é modo de menina! E a Maria Helena ali, com uma vontade imensa de entrar no jogo. Antes não tivesse chamado a menina para brincar. Chamei. Ela entrou, ficou feliz, jogou pouco tempo até que chutou uma pedra e seu dedo do pé abriu numa ferida muito feia, sangrou bastante. Queríamos ajudá-la, eu queria chamar minha mãe, mas ela não deixou, só fazia que não com a cabeça, foi embora, daquele jeito que acontece quando se a gente falar uma palavra, começa a chorar. Na semana seguinte, na igreja, ensaiávamos para a Primeira Comunhão. Vi Maria Helena, e ela também me viu. Nossos olhares se cruzaram, e então eu olhei para seu pé, lembrando-me do machucado. Ela tinha um pano enrolado no pé descalço.

Alguns dias mais tarde, ouvi minha mãe ao telefone com minha tia. Minha mãe perguntava, assustada, a filha do Lorenzo? Sei, sei quem é. Ah meu Deus, tétano, mas não tem jeito? Está mal, sei, sei. Senti uma zonzeira, fiquei apavorada como quem cometeu um crime e teme ser descoberto. Fui atrás de meu primo e ele já sabia, também sentia o mesmo medo meu, acho até que traçamos algumas estratégias de fuga, pensávamos que seríamos presos. Não me lembro exatamente quando tivemos que confessar o crime e quem nos livrou da culpa. Sei que Maria Helena logo morreu, depois de ter sofrido horrores com o tétano. Não tive culpa, mas eu me sentia culpada assim mesmo. Se bobear até hoje sinto essa culpa. Como punição, segui pela vida com um medo danado do tétano. Não devia ter chamado a menina para brincar, aí eu sentiria outra culpa, eu sei, mas ela teria vivido, teria tido um amor, filhos, tristezas e alegrias, tudo que é da vida e não da morte. Ainda era muito cedo pra morrer. Ela não chegou a fazer a Primeira Comunhão. Aprendi que a culpa é uma das coisas mais difíceis dessa vida. Mea culpa.

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