sábado, 30 de julho de 2016

A MÁGICA DA FOTOGRAFIA





Eu estava assistindo ao noticiário um dia desses, e me chamou a atenção a notícia da exposição “Retratos da família brasileira 1850 – 1960” no Espaço Cultural BNDES no centro do Rio. A coleção de fotografias é do cineasta, psicanalista e fotógrafo José Inácio Parente. Bem, estou reportando este fato porque tudo o que se refere a fotos antigas me fascina. Não só fotos de minha família, de meus avós, bisavós, meus pais, tios, fotos minhas com meus irmãos de quando éramos crianças, mas qualquer foto antiga. Mesmo de alguma cidade que nem conheço bem como fotos do Rio e São Paulo no início do século passado, enfim, de qualquer lugar. Eu fico perdidamente embasbacada com a foto, tipo hipnotizada mesmo. Uma cena cheia de vida captada por uma máquina capaz de eternizar aquele momento de mais de um século é coisa que me espanta. Acho simplesmente fantástico!
Mas aonde quero realmente chegar é na tragédia que acontece quando se perde uma foto, ou melhor, quando se perdia uma foto. Hoje em dia temos tudo no computador, escaneamos as fotos antigas e está tudo guardadinho lá. Já nos tempos antigos, nem tão antigos assim, vamos dizer que cerca de 20 anos atrás, muita gente ainda não tinha computador e guardava suas fotos em álbuns ou mesmo em caixas de sapatos. O jornalista que comentou sobre a exposição de fotos do José Inácio Parente, relatou que fez uma reportagem com as famílias que perderam tudo quando desabou aquele prédio Palace 2 no Rio  em 1998, e ele constatou que o que mais desgostava as pessoas que ficaram literalmente com a roupa do corpo, era o fato de terem perdido as fotos de família, fotos dos familiares, fotos de casamento, de nascimento dos filhos, todas as fotos. Era do que mais falavam. 
Quando tivemos aquela grande enchente de 2.000 aqui em Itajubá, ouvi relatos de pessoas que ficaram em depressão profunda por perderem tudo, mas principalmente por perderem as fotos dos filhos quando eram crianças. Não havia cópias, nem negativos. Simplesmente nunca mais as fotos seriam vistas. Imagine o que representa isto para uma senhora idosa que olhava diariamente para as fotos dos filhos que ficavam no criado-mudo de seu quarto. Fotos da Primeira Comunhão, na escola, nos aniversários, enfim tudo o que estava ligado aos sentimentos das pessoas. Tudo se desmanchou numa lama horrorosa que perdurou por muitos dias. A cidade ficou debaixo de água, e quando “pescávamos” alguma coisa da lama dentro de casa, era preciso passar a mão muitas vezes sobre o objeto para detectar do que se tratava. Felizmente nossos álbuns de família e caixas com fotos ficavam na parte alta de um armário no quarto de minha mãe e permaneceram intactos. Mas ouvi de várias pessoas a tristeza que sentiram por terem perdido as fotos.
Isso mostra a importância da fotografia. É a história de vidas. Perder as fotos significa perder a própria referência. Obviamente que antes da invenção da fotografia este sentimento de perda não ocorria, mas havia pinturas, as pessoas de mais posses posavam para pintores. A fotografia é uma arte incrível, de valor sentimental incalculável. Para mim, contemplar uma foto antiga me faz viajar no tempo, sentir as mesmas emoções que senti no passado, tal qual ouvir uma música me faz reviver épocas antigas. A fotografia, assim como a música, tem o poder de reavivar lembranças. Quando minha mãe estava demente, por sugestão da médica, colocamos fotos de seus antepassados na parede em frente a sua cama. E quase todos os dias, ela olhava fixamente para as fotos e dizia: minha mãe, meu pai, vovó e assim ia. Perder fotos é sim uma tragédia.
Mas conosco ocorreu um episódio inverso. Ganhamos fotos. Explico: já quarentões, fomos presenteados com uma surpresa maravilhosa. Ao fazer uma faxina em seus papeis e guardados, meu pai descobriu um envelope com muitos, mas muitos negativos, daqueles antigos. Ao olhar contra a claridade, reconhecemos nossas inúmeras fotos já conhecidas, mas grande parte não, imaginem só: eram fotos inéditas! Meus pais não se lembravam delas, não souberam explicar por que não foram reveladas. Corri no fotógrafo e qual não foi nossa emoção ao contemplar pela primeira vez fotos incríveis de nós crianças. Foi como entrar num túnel do tempo. Um presente sem preço!   

Todavia, há um fato que não pode deixar de ser registrado: se não fosse pela minha adorável fotógrafa, minha mãe, não teríamos fotos, a não ser aquela tradicional de Primeira Comunhão e aquela do Grupo Escolar com o mapa mundi de fundo. Numa época em que não se usava bater fotografias no dia a dia, minha mãe pegava sua maquininha preta e lá ia registrando os momentos de nossa querida infância. Percebo que para minha geração, temos mais fotos que o usual. Fica aqui minha homenagem à mamãe que raramente esteve presente nas fotos, no entanto estava sempre presente nos bastidores, cuidando de nós nas tarefas escolares, assando “aquela torta de banana com suspiros”, medindo nossa febre, fazendo aqueles vestidinhos maravilhosos com bolsinhos e lacinhos, e cumprindo o papel de nossa fotógrafa preferida. Se não fosse ela não teríamos como herança essas fotos preciosas. Valeu mãe!   

quarta-feira, 27 de julho de 2016

A PRISÃO






Dizem que quando a gente só fala do passado é porque já ficou velho. Tudo bem, então eu já fiquei velha porque o passado sempre me acena com tantas histórias preciosas que daria um livro e tanto. Vamos à história de hoje. Meu pai era caçador. Naquele tempo isso era permitido, fazia parte da cultura da época. Crescemos assistindo às proezas das cadelas perdigueiras Diana, Fineza, Joia e outras anteriores das quais não me lembro os nomes. Sempre adorei esses nomes de cães e vacas e cavalos, como o cavalo “Bil” por quem meu sobrinho-neto apaixonou-se.  A Joia foi a nossa última perdigueira, depois disso meu pai não caçou mais. A Diana foi da época quando eu derrubei minha chupeta no quintal e ela, esperta, abocanhou. Entrei apavorada e dei com minha mãe arrematando uma costura ao lado do rádio. Afobada, relatei o acontecido e ela, calma e linda, disse: que bom, já estava mesmo na hora de dar adeus à chupeta, esta foi sua última. E foi mesmo.  
Nos feriados, meu pai andava com roupa de caçador, espingarda, cantil, e levava as perdigueiras com ele. No final do dia trazia algumas codornas e perdizes que minha mãe preparava para o jantar. Imagine só, meu pai ia pra outra cidade se encontrar com um amigo para as caçadas e levava a espingarda do seu lado no banco, sem balas, é claro. Mas que tempos aqueles!
Bem, nos meus oito anos, meu pai foi caçar em Mato Grosso com dois amigos e um deles era o dono do armazém de minha cidade, seu Wilson, o “Irso”, pai da Irani, da Vanda e mais dezenas de filhos e filhas. E de repente chegou a notícia de que estavam presos, os três. Foi qualquer coisa com relação à licença para as espingardas que levavam. Mas era época de paz, tudo era resolvido.
 Entretanto, em casa, nós os filhos ficamos apreensivos porque éramos crianças e passava um fio medo em meu coração. Será que meu pai voltaria? Minha mãe, bem, se dependesse dela, nada era grave, sempre vinha com o seu ora gente, que bobagem, fazendo parecer que tudo daria certo na vida. Isso era bom e não era. Acho que era mais pra bom do que não porque mesmo quando as coisas não dão certo é melhor pensar que tudo é uma grande bobagem.
Aí ficamos dias sem notícias do pai. Quando eu ia ao armazém buscar algum mantimento para minha mãe, o Zezinho, um empregado do seu Wilson, dizia perto de todo mundo, e aí, menina, seu pai tá preso, agora não volta, como é que vai ser? E eu, entre apavorada e com vergonha, replicava: não tá não, ele vai voltar. Passados mais dias sem notícias, estávamos almoçando, todos nós, os filhos e minha mãe. Eu me lembro de que era um almoço silencioso quando, sem mais nem menos, na maior surpresa, meu pai pulou para dentro de nossa copa gritando e assustando todo mundo. Ele entrou em casa, pé por pé, para ninguém desconfiar. Foi a maior gritaria e felicidade, pulamos em seu pescoço, ele estava barbudo e cheirava mal, ai que saudade do meu pai! Minha mãe também superfeliz, ora gente que bobagem, dessa vez tudo deu certo. Bem feito para o Zezinho, coitado, era bom moço, só não sabia que eu era muito sensível. Minha irmã tinha uma bicicleta e subia e descia morro com uma destreza acrobática. O Zezinho disse pra ela, aposto meu violão que você não faz aquela curvinha do morro. Minha irmã, de olho no violão, já antevendo suas qualidades musicais, topou a aposta e subiu na maior categoria. O Zezinho ficou branco, todos admiraram minha irmã. Mas ela não levou o violão, não era justo.      

sábado, 23 de julho de 2016

PENSE COMO UMA MONTANHA





            Há anos atrás resolvi fazer academia, ou seja, malhar para ficar bonitinha. Pois bem, a personal pegou pesado comigo. Eu achando tudo uma beleza, fazendo proezas com pesos e encantada com o atendimento especial só para mim. E fui fazendo isso e aquilo e até “plataforma vibratória” achei de fazer, seguindo as orientações da moça. Meus joelhos gritaram por socorro, claro né? eu já era “de idade”. Fui ao médico, exames, e até hoje sofro com artrose severa. Bom, mas conversando com meu médico, ele, muito engraçado, muito espirituoso, disse assim: vocês mulheres têm cada coisa! Por que você não faz uma coisa normal, como caminhar ou hidroginástica que é tão saudável? Por que essa inovação de plataforma vibratória? Tudo que inventam vocês fazem sem pensar. Por que não observam a natureza e aprendem com ela? Você já viu alguma vaca (ham?) fazendo plataforma vibratória? Não, não é? A vaca está lá na dela com calma. Observe a natureza. E depois, a idade ...
            E aí coincidiu que folheando um livro, li algo sobre Arne Naess (1912-2009) que disse a seguinte frase: “Pense como uma montanha”. Naess foi um filósofo e ecologista norueguês que propôs uma experiência de “ecologia profunda.” Na verdade, essa noção de pensar como uma montanha é do ecologista norte-americano Aldo Leopold. Ele havia trabalhado como guarda florestal e certa vez atirou numa fêmea de lobo. Nunca mais pôde se esquecer do brilho selvagem que morria nos olhos do animal e então ele percebeu que havia naqueles olhos algo conhecido apenas pela loba e pela montanha onde ela vivia. A proposta que Naess e Leopold fazem é que não reconheçamos somente nossas necessidades, procurando apenas o benefício próprio e imediato, mas que façamos parte da biosfera, não vendo o mundo como algo separado de nós, enfim, devemos descobrir nosso lugar na natureza e perceber nossa responsabilidade para com todos os outros seres vivos.
            A preocupação com a preservação do planeta como nossa casa já vem de longo tempo, talvez desde a Revolução Industrial quando as primeiras nuvens de fumaças começaram a ganhar o céu. Entretanto, são poucos os que realmente se preocupam com a questão. A tendência é sempre pensar que o planeta é muito grande e que há exagero nos alarmes, ou que outros mais preparados darão conta de batalhar sem nosso engajamento, afinal o que podemos fazer é tão pouco que concretamente talvez não faça diferença. Mas faz. Se cada habitante da Terra fizesse o que lhe é possível, muitas batalhas já estariam ganhas. O problema são as empresas poderosas focadas no lucro exorbitante e ignorando qualquer cuidado com o meio ambiente.
            Essa consciência do “eu ecológico” proposta por Arne Naess pode parecer estranha, embora todos sejam capazes de adquiri-la, ampliando uma identificação com o mundo para incluir todo ser vivo. É que há muito que aprender, pois uma coisa é respeitar os animais e árvores, outra conviver com eles como irmãos, como fazia São Francisco. Sempre me lembro de minha prima Lígia que morando no campo, costumava cumprimentar carinhosamente uma galinha ou outra que por vezes entrava em sua casa. Ela não tomava aquela atitude costumeira de enxotar a ave como todos fazem. Conversava com ela como um ser semelhante, o que me divertia, pois achava um tanto bizarro, ora, bizarro era eu já cinquentona torturando meus joelhos numa plataforma vibratória. Também sempre me lembro de seu desconforto quando eu demorava a fechar a torneira. Hoje percebo que minha prima há muito era uma ecologista nata, seu pensamento e seu modo de sentir e viver o mundo era autenticamente genuíno e elevado, pois ela verdadeiramente pensava e pensa como uma montanha, quero dizer, ela se reconhecia como parte da natureza. Isso hoje me comove tanto!
            Arne Naess pregava uma harmonia com o mundo natural, não apenas pela preocupação com a proteção do planeta visando nosso conforto e proveito próprio, mas por uma questão mais elevada, por saber que somos parte desse mundo e ao destruir nosso meio ambiente também destruímos nossa própria vida. As mudanças nesse sentido têm ocorrido gradualmente, quero dizer, o planeta corre perigo, sim, porque não são muitos os que já perceberam o seu eu ecológico. Por outro lado, por necessidade ou realmente por uma mudança de mentalidade, as pessoas vão adotando novos comportamentos, como é o caso de muitos jovens que optam por não terem carro. A vaidade de se ter e exibir um carrão vai ficando para os mais velhos, ainda fixados nessa obsessão. A transformação para adquirir uma consciência ecológica profunda é lenta, mas temos esperança num futuro melhor para que nossos netos e bisnetos possam viver de modo diferente, levando uma vida mais prazerosa em sintonia com a natureza.
            Pensar como uma montanha é adquirir uma consciência ecológica profunda. É aprender que não precisamos de aparelhos sofisticados como “plataformas vibratórias” e sim de caminhadas ao ar livre, de água no corpo, de mais calma com a vida. Meu médico brincava, mas estava certíssimo ao me aconselhar a observar a natureza e o comportamento da vaca. Pense como uma montanha, ou como uma vaca, tanto faz, mas mude. Você é parte deste universo.

             

quarta-feira, 20 de julho de 2016

MUNDO TRISTE







Era um dia do passado. Estávamos em casa, em família. Eu sabia o que era uma família, era filha do meu pai e de minha mãe, irmã dos meus irmãos, neta dos meus avós. Sentávamos juntos para almoçar e jantar, tudo muito simples, é verdade, mas estávamos sempre juntos, éramos uma família. Minha mãe me ensinava a rezar, a fazer a tarefa da escola. Bateram à porta. Fomos abrir. Era uma mulher oferecendo os filhos para quem quisesse ficar com eles. Ela já não podia, era pobre, não dava conta de criar todos. Eram duas mulheres, vai ver que eram irmãs. As crianças olhavam para nós sem compreender o que se passava. Estavam todas até bem vestidinhas e limpinhas. Minha mãe ficou condoída, quis ajudar, indagou mais delas, quem eram, de onde vinham, é que  filho não é para se oferecer assim dessa maneira, não se pode desfazer de filho assim. Elas diziam que não tinham outro jeito, mostravam as crianças, diziam que eram boazinhas, que não davam trabalho. As crianças continuavam olhando pra nós, e até olhavam de um jeito como se quisessem ficar, levantando o pescoço para ver o que havia lá para dentro de casa, curiosas como são as crianças, parecia que não sofriam. Ninguém chorava, nem as crianças, nem as mulheres. As mulheres insistiram, diziam, olha este, minha mãe retrucava, não, não, e elas, e esta? Minha mãe balançava a cabeça, desanimada. Perguntaram se minha mãe sabia quem pudesse ficar com eles e ela respondeu, não, não sei, isto é, ninguém fica assim com filhos de outras pessoas, as crianças não podem ser separadas, são irmãos, é preciso encontrar outro jeito de resolver a situação. As mulheres saíram para a rua, as crianças saltitantes atrás, umas brincando com as outras como se fosse a coisa mais natural do mundo serem oferecidas para outras pessoas. Quando eu era menina fiquei separada de minha família por algum tempo. Tive de ficar na casa da minha tia, senti um desamparo incompreensível para mim, queria minha mãe, queria meus irmãos. Também quando minha avó ia embora, do ponto do ônibus até nossa casa, eu e minha irmã subíamos a rua chorando alto como se nunca mais fôssemos ver nossa avó querida. 
Certa vez, fiquei perdida em Aparecida do Norte. Estava com minha mãe e minha avó. E sabe como é, aquela coisa de um pensa que a criança está com o outro, o outro pensa que a criança está com o um, e é um desespero só. Acontece muito onde há multidão. Eu era muito pequena, menos de seis anos. Lembro-me vagamente de olhar para o alto, para as pessoas, mas lembro-me com certeza de que não senti medo, não sei o que sentia, não entendia o que estava acontecendo. Uma delas me encontrou, logo veio a outra, as duas com o coração disparado, dando graças a Deus. Aí eu penso, e se nunca mais eu fosse encontrada por elas, e se outras pessoas tivessem me levado. Quem seria eu?

Que coisa! As crianças oferecidas para minha mãe pareciam não sofrer, só pareciam.

domingo, 17 de julho de 2016

O QUE TERÍAMOS SIDO SE NÃO FÔSSEMOS O QUE SOMOS?




            Às vezes me pego pensando o que eu teria sido se não tivesse sido bancária. Trabalhar em banco não é vocação, não vale. Digo isto sem querer desmerecer o emprego que me deu o sustento. É que falo daquilo que está dentro da gente em forma de desejo, de sonhos a serem realizados. Geralmente quando perguntamos para as crianças: o que você quer ser quando crescer? Muitas se espelham no exemplo dos pais, tal como “quero ser médico como meu pai” ou “professora como minha mãe”. Às vezes isso é cumprido à risca, pai médico, filho médico, muitas vezes não, considerando que duas pessoas no universo inteiro não são iguais, trazem desejos e anseios bem diferentes.
Já mãe atriz, filha atriz, mãe modelo, filha modelo - pode dar certo, mas pode ser um desastre, uma vez que a filha não tem o mesmo talento e brilho da mãe, até pode ter, mas serão sempre diferentes. E ter portas abertas não garante o caminho de ninguém, cada um tem que achar o seu, cada um é que tem que encontrar e lapidar seu próprio diamante.
Fiquei imaginando o que poderiam ter sido as pessoas próximas a mim. Minha mãe foi uma dona de casa, mas no fundo não era o que ela desejava. Se tivesse nascido 30 anos depois talvez escolhesse outro caminho. Ela tinha uma grande ânsia de vida que ia muito além de ser mulher rainha do lar. Explico melhor: é claro que ela queria um amor, queria se casar, queria ter filhos porque de maneira geral todas as mulheres de todas as épocas querem, mas na época antiga ser dona de casa era quase a única opção para as mulheres. Muitas tinham um desejo pulsando dentro de seu coração, algumas poucas rompiam com tudo e alçavam voo rumo ao seu desejo, outras sabiam disso, mas conformavam-se, outras nem souberam ou souberam, mas foram felizes, já outras viveram até o fim da vida sem descobrir o que poderiam ter sido, qual sonho sua alma abrigava. 
            Voltando à minha mãe, ela brincava sempre dizendo que se tivesse tido a chance de estudar, teria estudado leis, enfatizando que achava uma beleza conhecer as leis, ou seja, teria encarado a carreira estudando Direito. Mas conhecendo-a como conheci, sei que ela não teria sido uma simples advogada, bem provável que se revelasse uma implacável juíza, era da sua natureza. Indo sempre pela trilha do desejo, observo também como era meu pai e concluo que ser um funcionário público estava a anos-luz do que realmente gostava de fazer. Sem dúvida, teria sido um intrépido caçador, um desbravador de savanas, já que adorava as caçadas, seus cães perdigueiros, suas aventuras pelo mato. Como o desejo é o que nos move, quem sabe ele teria feito até um safári na África. Eu me lembro de quando ele voltava suado das caçadas trazendo um jeito diferente no olhar, uma realização concretizada.
Meu avô, pai de minha mãe, ah este teria sido um astrônomo ou cientista, pois era apaixonado pelas estrelas e galáxias. Tinha verdadeira fascinação pelo céu. Vivia olhando para o céu estrelado, sabia os nomes todos e gostava de ler a respeito. Pois então, foi no início do século XX, precisamente em maio de 1910, que o cometa Halley foi visto perfeitamente em toda a sua majestade. Meu avô que sabia de tudo, que lia jornal e ouvia rádio se dirigiu para o alto de um monte e lá ficou na hora marcada de olho no céu. Voltou para casa pisando no ar, mais fascinado que Moisés quando recebeu as tábuas da lei. Parecia até que o cometa tinha borrifado vapor d’água que brilhava na cauda bem direto no rosto dele, tamanho o brilho que trazia na cara ao falar sobre o cometa. E dizia assim, quando o cometa voltar eu não estarei mais aqui, mas vocês sim. É verdade, todos ficamos de olho no céu em 1986, mas ele não veio tão majestoso como em 1910. Ficamos decepcionados. Meu avô foi carroceiro, canjiqueiro, um pouco de tudo, menos astrônomo.
Eu, quando menina, meti na cabeça que queria ser bailarina clássica. Nos primeiros tempos da televisão em branco e preto, eu seguia à risca umas aulas de balé.  Morávamos e moramos no interior, não tínhamos condição financeira e minha carreira de bailarina naufragou antes mesmo de ter começado. Talvez se tivesse nascido 30 anos depois (tal como minha mãe), talvez na Rússia, minha carreira de bailarina ou de ginasta estaria garantida. Em minha cidade, havia uma garota que era a baliza que saía com a banda e para mim, ser uma baliza era a felicidade suprema. Suas roupas brilhantes, os botões dourados, as franjinhas brilhando nos ombros, o bastão girando nos dedos e os movimentos graciosos em piruetas perfeitas eram meu sonho. Em casa, arrumei uma varinha e rapidamente aprendi a girá-la com perfeição entre meus dedos. Também aprendi a virar meu corpo para trás descendo as mãos na parede e para horror e desespero de minha mãe, eu saía andando pela casa como uma aranha desengonçada.
 Certa vez fizemos um circo improvisado em nosso quintal. Eu vestia um maiô vermelho e brilhava no trapézio feito grosseiramente com cordas, taboas e ferros. Balançava de uma árvore para outra presa só com os joelhos e de cabeça para baixo. Meus irmãos também aprenderam proezas incríveis e entre abacateiros, laranjeiras e mangueiras, fazíamos nossa brilhante apresentação para a plateia composta pela família, alguns parentes e vizinhos acomodados em cadeiras cambetas no chão de terra. Mas nossos mais fervorosos e fiéis espectadores eram os cães do cercado ganindo aplausos. Quem sabe poderíamos ter sido uma trupe de artistas do tipo do Circo do Soleil: “Os fantásticos Irmãos Rezende em suas inacreditáveis apresentações de malabarismo”.   
Depois de me livrar do banco, fui terminar meu curso de Letras. Aí sim me deliciei com a literatura e descobri um caminho, algo que pulsava em minha alma sem que eu soubesse. Eu já escrevia, mas conheci as fontes, os clássicos, e mais do que isso, na escola representávamos as tragédias gregas, fui Édipo Rei, Eros, e também a sofrida Inês de Castro. Até Fernando Pessoa e Walt Whitman fui, revelei-me uma atriz de qualidades excepcionais, que o diga meu amigo Fernando Pimentel, ator, produtor e diretor de teatro que me ensaiou para a peça Inês de Castro. Eu sentia uma secreta e plena felicidade fazendo essas estripulias depois de velha. Então, quem diria hem? Meu destino teria sido o palco (segundo minha irmã minha vocação era aparecer mesmo de qualquer maneira, com palco ou sem palco!). Eu me lembro de como foi nossa última semana de Letras, tudo coincidindo com a formatura logo depois. Eu, sem tempo algum, dei as costas para minha casa e vivia na faculdade. Quando tudo acabou, de volta ao lar, estava separando pilhas acumuladas de roupas para lavar e passar quando meu marido carinhoso me abraçou e disse: finalmente! do palco para o tanque.   
Termino com uma redação de minha irmã quando estava no segundo ano primário. A professora, encantada, telefonou para minha mãe para ler para ela o que Agueda tinha escrito: eu quero ser uma aeromoça, mas não uma moça aérea. Fez o maior sucesso. Ela não foi nem aeromoça, nem moça aérea. Foi bancária e eu também, talvez seguindo seus passos, já que sempre fui sua maior admiradora e puxa-saco definitivamente declarada e escancarada. Seu dom é a música, teria sido uma pianista (ela até comprou um piano) e também toca teclado e canta divinamente.
Enfim, nenhum de nós se tornou oficialmente aquilo que nos faria mais plenos, nem meus pais, nem eu, nem meus irmãos, mas o dom guardado acaba por se manifestar de uma forma ou de outra. Tal qual a luz do sol que se embrenha por qualquer fresta de uma casa fechada e a inunda tudo com um brilho intenso, o tesouro que existe dentro de nós também se derrama generosamente, às vezes em forma de um passatempo, de uma brincadeira ou mesmo em sonhos.      

Que bom seria se todos pudessem descobrir e seguir os desejos de seu coração. Certamente nascemos com os mais variados dons, e se bem aproveitados, seríamos mais felizes e mais realizados. Há coisas que não podem mais ser revertidas, mas outras quem sabe. Nunca é tarde, mas bailarina ou trapezista nesta altura da vida não dá não, está fora de questão. Escrever ainda é meu maior tesão.   

sexta-feira, 15 de julho de 2016

OS ESQUECIDOS DA ÁFRICA





Qualquer tipo de violência é abominável. O episódio de ontem do ato terrorista em Nice e também os últimos do ano passado na França nos fazem refletir sobre o que houve. Quaisquer atos terroristas são inaceitáveis, seja em prédios, sedes de jornais, aviões, praças públicas, sejam assaltos, estupros, enfim, qualquer violência. Nada justifica a violência e nada como a paz. Vivemos dias tenebrosos e olhamos com desconfiança e medo para o futuro. A esperança dos anos dourados e de uma paz duradoura converteu-se em decepção. O grupo que assumiu o ataque e assassinato dos jornalistas franceses no ano passado mandou um duro recado à França e outros países da Europa, ao que os dirigentes europeus responderam em tom igual. Tudo isso me dá arrepios. Diz o ditado popular: quem semeia vento colhe tempestades.
Bem, mas minha reflexão passa ao lado do episódio da França. Vamos retroceder no tempo lá bem longe quando as grandes potências europeias se serviram de colonizações no passado. Colonizações é modo dizer porque sabemos que o termo apropriado seria explorações. Uma nação era poderosa na medida em que era capaz de conquistar um território, digo, invadir, tomar posse, surrupiar bens em terra ou mares. Os habitantes “conquistados” se limitavam a aceitar o cargo de empregados dos ricos europeus. Viram seus territórios serem sugados no limite. Quando já nada mais podiam retirar dos conquistados, os ricos voltaram para suas casas confortáveis, suas cidades bonitas, bem longe da pobreza das colônias. Mas acontece que esses inoportunos estrangeiros decidiram procurar abrigo nos países ricos, afinal foram estes que lhes tiraram tudo. No caso específico da França, o caso é mais complicado porque os inoportunos estrangeiros são nascidos na França, e há tempos vêm demonstrando o ódio que sentem pelos seus colonizadores do passado.
Outro dia vi um vídeo que me estarreceu e esclareceu sobre a Somália e seus piratas. Isso mesmo, a Somália, aquele país devastado com fotos de mulheres esquálidas com filhos igualmente esquálidos chupando peitos magros e sem leite. Considerando minha ignorância, tomei a prudência de examinar com cuidado vários artigos e opiniões para não incorrer no erro de me deixar levar pelas emoções e meras informações sem considerar as causas e a história.
A Somália foi colonizada pela Itália e Inglaterra, e só em 1960 ficou independente, com um governo que não durou mais que nove anos, e como geralmente acontece, os somalis não souberam como se conduzir. Uma sangrenta guerra civil deu lugar a uma disputa entre grupos que combatem até hoje entre si pelo controle do país. O que se vê hoje como ontem é um país totalmente devastado, com um milhão de refugiados, fome, seca, violência e caos. A Somália é considerada o país mais perigoso do mundo.
Aproveitando-se da situação caótica, barcos dos Estados Unidos, da Ásia e da União Europeia praticaram e praticam uma pesca ilegal nos mares da Somália, uma pesca não declarada e não regulada. A exploração é tanta que as reservas pesqueiras têm seus dias contados em um país que não tem autoridade nem meios para proteger sua costa. Em meio a essa prática ilegal, a Espanha é responsável por 60% da pesca do atum e a França por 40%. Assim, a União Europeia rouba e empobrece a população mais miserável do mundo, tirando daquelas mães e filhos esquálidos sua principal fonte de proteína. Os pescadores locais nada puderam fazer. A humanidade tem feito ouvidos moucos para o sofrimento do povo somali.
Mas a arrogância dos países ricos não parou por aí. Depois de pescar ilegalmente nos mares da Somália, despejaram barris com conteúdo altamente tóxico em suas águas, fazendo daquele país seu grande lixão. O tsunami de 2004 trouxe os barris para as praias, provocando doenças e mortes para os habitantes locais. Bem, aí apareceram somalis fortemente armados atacando barcos estrangeiros que se habituaram a passar por aquelas rotas. A princípio, esses pescadores somalis reagiam de maneira desesperada para defender sua pesca em seu território, porém, passaram a sequestrar barcos e pessoas e exigido muito dinheiro para seu resgate. São os chamados piratas da Somália, que têm 70% de apoio da população local.
Vendo-se privados do vergonhoso lucro em seus negócios pesqueiros, os bandidos legais que pescavam ilegalmente lá naquelas águas já contaminadas por lixo tóxico, foram reclamar pro mundo e a ONU os ouviu. França e Espanha encabeçaram a petição de uma severa ação militar conjunta. Criaram uma patrulha com navios de guerra, aviões de reconhecimento e o diabo a quatro, afinal precisavam defender seu direito de roubar.
Mas por que não vão pescar nos seus próprios mares? Porque já não têm o que retirar deles. Faz-me lembrar do filme “Avatar”, quando o planeta Terra já estava totalmente devastado, e foram invadir outro planeta para extrair dele tudo o que houvesse para ser extraído. Nossa Amazônia que se cuide.
O vídeo termina com a triste realidade dos barcos pesqueiros também do Senegal, que não podendo mais exercer aquela função original de pescar, servem para transportar seu povo que busca uma vida melhor nos países europeus que lhe roubaram o futuro. E na Somália, os barcos pesqueiros agora também têm outra utilidade: transportar os ditos piratas para ameaçar os europeus e similares.
Ora, quem são os piratas? Os somalis, filhos da violência, que nasceram e viveram no meio de suas próprias guerras ou os mocinhos europeus e americanos que foram despudoradamente pescar nos mares da Somália?
Retomando o primeiro parágrafo, reafirmo que qualquer tipo de violência é abominável, portanto sequestro e pirataria também são atos condenáveis. Juridicamente, todo Estado pode prender um navio em razão de atos de pirataria no alto mar. Acontece que, no caso da Somália, os atos de pirataria têm sido praticados em suas próprias águas territoriais, onde se estende a sua competência jurisdicional. Entretanto, ocorre ainda que pelo caos existente em razão da guerra civil interminável, a Somália renunciou ao direito de soberania sobre seus territórios. Aí a coisa ficou ao Deus dará.
É importante ressaltar que fortunas incalculáveis já foram gastas para garantir a presença da frota naval e militar para impedir os atos de pirataria e legalizar a passagem ou pilhagem feita pelos navios dos ricos países, dinheiro que se tivesse sido gasto para ajudar o país africano a se reerguer, talvez este problema da pirataria não tivesse surgido. Evidentemente que as nações dominantes só enfiaram a mão no bolso para defender seus interesses econômicos, jamais para defender um país falido.
Nada justifica a violência de um ato de pirataria, nem qualquer ato de violência e terrorismo como o de ontem na França, mas a história mostra que pessoas crescidas no caos da guerra e violência tendem a ser violentas. É imensamente triste saber que inocentes, em grande parte crianças, foram mortos esmagados por um caminhão carregado de ódio. Entretanto, fica aqui meu grito de apoio aos habitantes da Somália e outros tão sofridos países da África pelos milhares de somalis e outros africanos mortos pela guerra, pela fome, pela miséria, pelo descaso, pelo abandono, e que nunca serão homenageados como já foram e estão sendo os franceses.
Fontes:
- Machado, Jeruza de Carvalho. O ataque dos piratas na costa da Somália. Âmbito Jurídico.com.br
- Paiva, Murilo Evangelista. A pirataria marítima na Somália em consequência da violação dos direitos humanos.
- Longo, Raul. Quem são os verdadeiros piratas da Somália.  

- Silva, Gabrielle Carolina; Santos, Adriana Cristina Omena dos Santos. A representação midiática dos “piratas” da Somália pela Revista Veja. Universidade Federal de Uberlândia.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

EVANGELHO







Ela apareceu em nossa casa, assim, vindo do nada. Só Deus sabe. Andava com dificuldade, carregando um corpo dolorido e pesado como se arrastasse atrás de si o peso de correntes e grilhões de vidas passadas, recheadas de sofrimentos e misérias. Era uma mulher negra tão maltratada pela vida que fazia dó. Sorria muito um sorriso resignado que lhe rasgava o rosto, mais parecendo um esgar de dor e lamento. Bateu em nossa porta oferecendo serviço doméstico em troca de cama e comida. Minha mãe, temente a Deus e testemunha viva dos evangelhos, percebeu que aquela mulher estava doente, não tinha nada nem ninguém, nem mesmo um lugar para recostar a cabeça. Ignorando qualquer perigo e sem nada saber de sua história, recolheu a pobre como se fosse o próprio Jesus disfarçado e quem pode dizer que não? “Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhestes ...”   
O fato foi que D.Isabel não podia trabalhar e tudo de que estava precisando era mesmo de uma cama para descansar os ossos e uma sopa quentinha para esquentar o coração. Ficava na cama até tarde da manhã e minha mãe trabalhava feito moura como sempre fez em sua vida. Logo, todos nós percebemos que D.Isabel não seria capaz de executar a mínima tarefa doméstica. Quase pela hora do almoço, lá vinha ela pelo corredor da casa, se arrastando num esforço inumano e com aquele sorriso dolorido e sem vontade, como a disfarçar seu constrangimento. Minha mãe tentava por todos os meios extrair dela alguma história, alguma pista de família, de alguém que pudesse acolhê-la, tudo em vão porque a sofrida mulher não entregava nada, inventava tudo, talvez com vergonha e dor por relembrar sua história, talvez nem se lembrasse mesmo. Em nossa casa foi cuidada, alimentada e por algum tempo teve uma cama para dormir.
Depois de muito esperar, minha mãe conseguiu um lugar para ela na Vila Vicentina, onde teve que travar um duelo de argumentação para convencer a diretoria da impossibilidade de continuar com D.Isabel em casa. Naquela época e ainda hoje, as casas de caridade eram lotadas “... pobres sempre os tereis...” O diretor dizia: “por que a senhora foi recolher a mulher? Agora fique com ela, aqui não tem mais lugar”. E minha mãe: “... mas como eu poderia deixar essa mulher na rua? O senhor há de entender e tentar me ajudar, eu trago cama e roupas e o que mais for preciso, mas não é mais possível continuar cuidando dela, tenho seis filhos e muito trabalho em casa...”
Algumas vezes fomos visitá-la. Parecia feliz, dividindo a casinha com uma mulher tão sofrida quanto ela. Depois não me lembro mais. De tão velha e doente deve ter morrido logo. Minha mãe também já se foi. Vai que se encontraram no Céu, ambas saradas de alma e de corpo, no lugar de eterna felicidade prometido por Deus para os que se amam e se ajudam, cá na Terra.

Bendito seja Deus em seus anjos e santos!        

sábado, 9 de julho de 2016

UM POUCO DE MIMO: QUEM NÃO APRECIARIA VIVER EM DOWNTON ABBEY?




            Assisti a toda a série de Downton Abbey, aliás, preciso conferir se ainda não chegou nova temporada. Esses nobres ingleses, mesmo decadentes no início do século XX, sabiam muito bem do que era feito o prazer. Ah que luxo! Percebo que o que mais chama a atenção de todo mundo que comenta comigo sobre o seriado é o fabuloso staff de empregados com seus impecáveis uniformes. O mordomo, Mr Carton, que graça, que elegância, que competência! E a bondade e compreensão da governanta, Mrs. Hughes! Eu queria muito ser como ela! E as roupas das condessas, as tiaras de pérolas, nossa que lindo! E a descida para o jantar em trajes a rigor, luvas compridas, a prataria, os cristais, o vinho servido. Fala a verdade, gente! Que beleza, como dizia minha amiga Sandra. Lógico que tanto a história como a vida real da nobreza tem que ter intrigas, onde é que já se viu um castelo inglês com tantos nobres e empregados, sem intrigas?
Faz-me lembrar de minha amiga querida, ex colega BB, quando fomos transferidas para outra cidade. Aconteceu que a agência do banco de Itajubá cortou metade dos funcionários e muitas de nós estávamos na lista. Da noite pro dia fomos trabalhar em uma agência de Guaratinguetá, e confesso que foram meses muito divertidos antes que deixássemos definitivamente o banco, sinto saudades. Certa vez em viagem, cogitamos de irmos nós todas para um castelo na Inglaterra, onde trabalharíamos como criadas, fazer o quê? Mas minha amiga, sempre genial, disse que melhor não, pois tinha ouvido dizer que também por lá estavam fazendo cortes na criadagem! E nós, como estrangeiras, seríamos as próximas.
            Bem, em meu apartamento não temos empregados, nem uma empregada, tenho apenas uma pessoa que vem de 15 em 15 dias fazer uma limpeza mais pesada, tendo em vista que não mais trabalho fora de casa, e assim tenho algum tempo livre. Então, nós damos conta, meu marido se encarregando da cozinha, e eu cuidando da limpeza da casa e da roupa, em tese. Damos conta nada. Por exemplo, ontem fez uma semana que a moça veio, e para meu desconsolo, eu passo os olhos por qualquer canto da casa e tudo está sujo, não sei por onde começar a limpar. A princípio adotei o método 1: limpar um cômodo de cada vez, seguindo os dias da semana. Não deu certo, temos mais cômodos que dias da semana. Passei a seguir o método 2: em cada dia da semana limpo uma gaveta e uma prateleira da cozinha, uma parte de cada armário dos quartos, e tiro o matinho de cada vaso. Também não deu certo. Mesmo que eu seguisse à risca, quando chegava o último dia da semana, a primeira gaveta já estava pra lá de suja. E é forno que suja, é geladeira que suja. E a gente tem que descansar, tem que escrever, tem que ler, e um monte de outras coisas como sair para o supermercado, farmácia, banco, ficar de bobeira, ver um filme, um seriado, etc. Ah esqueci de dizer: ainda tem o ócio criativo que é muito importante para quem escreve ou para quem não escreve também. Não tenho tido tempo para o ócio criativo! Então gente, é superimportante ficar sem fazer nada, digo, deixar os pensamentos irem e virem a bel prazer. Simplesmente não dou conta da casa. E olhe que tem outras coisas pra fazer como namorar. Este último item não pode jamais ser negligenciado.   
            E a roupa? Vai para a máquina, que foi feita para lavar roupas, mas não é tão simples assim, a gente tem que dar uma esfregadinha em certas roupinhas porque a máquina não vai limpar tudo direito. Para roupas brancas, sigo o que me ensinou minha prima Inácia, boa enfermeira vestida de uniforme branco que foi a vida toda: deixa de molho e depois esfrega com sabonete Palmolive branco. Fica um primor. Mas não pode deixar acumular. Não contem para ninguém, mas já houve dia em que tive que lavar 15 panos de pratos de uma vez só. Não tenho vocação para dona de casa. Odeio limpar a casa, confesso de peito aberto, assim como odeio fazer exercícios físicos. Quero tudo pronto.
            Enfim, e aí gente? fala a verdade, e Downton Abbey? Que coisa de louco! Eu dispensava a criada de quarto para me ajudar a me vestir, isso não precisava. Mas encontrar tudo limpinho, ah isso eu queria sim. E também de vez em quando, um jantar em alto estilo, um vestido daqueles chiquíssimos, ah, e também um chá com leite cremoso servido de bandeja com aqueles bolos ingleses perfumados, também queria uma tiara daquelas que a Lady Di usava, podia ser de bijuteria. E mais uma coisinha: só uma empregada e mais outra para cobrir a folga da uma. Com tudo isso, nunca mais eu queria ver um pano de prato sujo na minha vida. Também esqueci de outra coisa: tem que caminhar todo santo dia, o médico mandou, gente. Ou eu caminho ou eu cuido da casa. Fui.                       

quarta-feira, 6 de julho de 2016

ANTONIO JOSÉ DA SAMARIA



Era um menino agitado, levado, como se dizia na época, alegre e esperto. Como é que eu podia esquecer? Era negro de cabelos lisos, lindo menino! Olhos brilhantes cheios de vida. Usava uma calça nos joelhos com suspensórios do mesmo tecido. Era criado pela Samaria, sua tia avó, uma mulher acostumada a servir como os antepassados escravos. Ela trabalhava para meu tio, a poucos metros de nossa casa. Antonio José brincava com meus irmãos e sempre dava um jeito de enganar a mãe de criação. Nada grave, apenas desculpas para poder brincar mais. Samaria vinha decidida, pedia licença para minha mãe e levava o menino pela orelha, dizendo, vai ver só quando chegar em casa. Eu morria de pena e implorava para minha mãe não deixá-lo apanhar. Mas isso não era nada.
Numa tarde quente, estávamos todos, irmãos e primos, aproveitando o calor da tarde no quintal de um conhecido nosso. Antonio José também. Foi aí que brigaram, ele e o filho do dono da casa. Coisa pequena, sem importância, fácil de ser contornada. Mas o homem vociferou, perdeu as estribeiras, aproveitou para por o menino para fora e também os preconceitos entalados. Abriu o portão e expulsou Antonio José, cheio de aspereza, com a cara vermelha de raiva. Antonio José teve medo, abaixou a cabeça, não respondeu, foi saindo meio de lado, tentando mostrar que não ligava. Mas ligava sim, fazia um trejeito esquisito com a boca e saiu alquebrado pelo peso da humilhação. Todo mundo ficou no maior silêncio. Eu senti uma tristeza profunda, levantei-me com uma imensa vontade de ir embora. Todos estranharam, por que você vai? Não foi com você. Eu não sabia responder a razão de querer ir embora, ora, eu não sabia que estava sendo solidária, apenas era, e hoje, passados tantos anos, eu fico orgulhosa de mim. Acabou o dia pra mim, era como se tivesse sido comigo. A tarde quente perdeu o encanto e senti um frio no estômago. Fui embora para minha casa como se tivesse cumprido um dever. Minha mãe tinha feito café que eu bebi acompanhado de um pão com manteiga.
Até hoje, quando sinto um nervoso por dentro, me consola um café quente com pão e manteiga. Samaria já deve ter morrido, é lógico, mas por onde andará o Antonio José? Será que se lembra de nós? Será que se lembra daquele dia?



sábado, 2 de julho de 2016

AINDA VOU PARA O CAMPO





Sempre encontro com uma mulher que mora no meu prédio, um caixotão grandão dividido em inúmeras caixas (nome dado ao nosso prédio por um vizinho) onde moram inúmeras pessoas. Vez por outra, nós, os moradores do caixotão, nos encontramos nos elevadores onde levantamos os olhos dos celulares para dar bom dia, resquício dos velhos tempos em que as pessoas costumavam se dirigir umas às outras. Ficamos apenas no bom dia, boa tarde, vai chover? Frio, não? Sorrimos e continuamos nossa vida, centrados em nós mesmos. Minha caixa, digo, meu apartamento é bem no alto e quando pela manhã olho para a cidade vislumbro as milenares montanhas que tanto amo e que me cercam. Elas continuam lá, quietas, imóveis, testemunhas silenciosas de tantas histórias que já se passaram neste vale. Hoje estavam magníficas, deslumbrantes, mas são as mesmas de ontem, eu é que estou diferente, ainda vou descobrir mais sobre mim. Quando vejo aquelas montanhas que me chamam sinto um pouco de angústia porque já faz tempo que quero morar no campo, mais perto delas. Sim, definitivamente quero ir para o campo, mas ainda não estou preparada para a ausência de sinal, o sinal potente da internet, o sinal que faz a smart TV brilhar com seus filmes e seriados futurísticos que tanto me encantam. Aí penso, mas ainda existem os livros, os clássicos, os contemporâneos, os poemas que me alimentam e me inspiram a escrever meus contos e crônicas. Esta escolha entre campo e cidade é difícil para mim. Sei que este conflito parece estranho, pois o campo seria ideal para quem gosta de escrever. É fato, mas nem sempre. Digo isto porque o cotidiano, as pessoas que moram em prédios e andam apressadamente ainda me atraem mais do que o ambiente bucólico. Gosto de escrever sobre este cotidiano que nos surpreende, sobre os sentimentos contraditórios das pessoas que nunca serão totalmente boas nem totalmente más. Exatamente, o contraditório da vida. Então insisto que sou urbana, que gosto da tecnologia, do burburinho. Sou urbana, definitivamente urbana, mas definitivamente quero ir para o campo, um dia quem sabe.
Bem, voltemos à moça em questão ou a mulher que mora no meu prédio. Quando nos encontramos no elevador, eterno salão de visitas onde nós, moradores, proferimos as mesmas frases, ela sempre me pergunta algo como se sei por que tal canal da TV está fora do ar, aí respondo que não uso a parabólica, recomendo que pergunte aos porteiros, sim aos porteiros que de tudo sabem, que conhecem cada morador, que conhecem nossos costumes mais do que nós mesmos. Tenho o maior respeito por eles, mas a verdade é que sabem mesmo de tudo, de quem nos visita, sabem de nossas contas que chegam e eles colocam nos escaninhos, sabem que dia fazemos compras, se compramos vinhos ou cervejas, se nosso carro foi arranhado. Os porteiros conhecem nossos segredos, assim como os mordomos conhecem os segredos da casa nobre onde trabalham.
Mais uma vez, voltemos à moça. Então, ela me pergunta sobre o canal da TV, também comenta que o feijão está caro, que vai à feira porque é mais barato. Enfim, ela conversa bastante para quem se encontra no elevador, pois a maioria nada conversa, sorri timidamente. Ah, esqueci-me de falar dos que são mais extrovertidos. Estes riem alto, fazem alguma piada e são gentis, abrem a porta para os que vão sair antes. Também há os que não falam, não sorriem, nada de bom dia nem boa tarde. Cada um é cada um. Assisto a tudo isso porque faço as viagens mais longas, moro na última caixa. Há pessoas que só vejo com espaço de meses, e aí nos estranhamos, dizemos sempre: nem parece que moramos no mesmo prédio! Nunca nos visitamos. Isso me incomoda, nada sabemos das pessoas que são nossos vizinhos, se precisam de algo, que problemas têm. Certa vez, há anos, fizemos uma novena de Páscoa no salão de festas. Só mulheres porque os homens não são de novenas. Interrompia minha rotina, mas eu sentia uma secreta felicidade de estar com minhas vizinhas. Líamos algumas passagens dos evangelhos, de acordo com o dia da novena. Alguma vizinha bem mais velha levava algum tempo procurando lentamente pelos óculos escondidos em algum canto da bolsa e lia com dificuldade. Pacientemente como devemos e queremos ser, esperávamos que ela terminasse, pois se não fôssemos pacientes em vão seria qualquer leitura dos evangelhos. Então comentávamos sobre a passagem lida, filosofávamos, algumas delas falavam de si, de suas perdas, de suas saudades. Ficávamos sensibilizadas, aquilo nos fazia vivificar a solidariedade esquecida. Ao final, havia troca de receitas, sorrisos mais plenos. Era um encontro. Nosso encontro. Encontro real de pessoas, como se morássemos em casas na mesma rua e não em caixas.
E a moça? Bem, vamos lá. A moça que insiste em conversar comigo. Respondo sempre do jeito mais amável que encontro. Mas uma coisa curiosa me chama a atenção. Quando saímos do prédio, ela não me conhece mais. Se vamos para o mesmo lado, ela adianta o passo ou o atrasa para não caminharmos juntas, ou talvez nem faça isso, e tudo não passe de uma impressão minha, coisa de gente desconfiada. Não estou julgando, só constatando. Se nos encontramos na cidade, no centro, até próximo ao prédio, eu já me preparo para sorrir e trocar alguma frase, mas ela não me olha, parece não me conhecer. Quando acontece de estarmos esperando o elevador chegar, aí ela já me reconhece. A princípio, fiquei meio aborrecida, afinal que pessoa é esta que tem hora que conhece e hora que não conhece? Depois me lembrei do julgamento apressado que fazemos sobre as pessoas. Que sei eu dela? Nada. E que sei eu de mim? Huumm, talvez menos ainda. Então, nos conhecemos no elevador e não nos conhecemos na rua. Que assim seja. As pessoas são um mistério, e diante dos mistérios, devemos nos curvar em reverência. E depois, o que seria de nós se não existissem os mistérios? Desde os mais simples até os mais avassaladores mistérios? Precisamos também do obscuro, já dizia G. Rosa. Decidi aceitar a moça do jeito que ela é e tomara que ela tenha me aceitado do jeito que sou.

Mas decididamente ainda vou para o campo, mesmo sendo definitivamente urbana.