quarta-feira, 13 de julho de 2016

EVANGELHO







Ela apareceu em nossa casa, assim, vindo do nada. Só Deus sabe. Andava com dificuldade, carregando um corpo dolorido e pesado como se arrastasse atrás de si o peso de correntes e grilhões de vidas passadas, recheadas de sofrimentos e misérias. Era uma mulher negra tão maltratada pela vida que fazia dó. Sorria muito um sorriso resignado que lhe rasgava o rosto, mais parecendo um esgar de dor e lamento. Bateu em nossa porta oferecendo serviço doméstico em troca de cama e comida. Minha mãe, temente a Deus e testemunha viva dos evangelhos, percebeu que aquela mulher estava doente, não tinha nada nem ninguém, nem mesmo um lugar para recostar a cabeça. Ignorando qualquer perigo e sem nada saber de sua história, recolheu a pobre como se fosse o próprio Jesus disfarçado e quem pode dizer que não? “Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhestes ...”   
O fato foi que D.Isabel não podia trabalhar e tudo de que estava precisando era mesmo de uma cama para descansar os ossos e uma sopa quentinha para esquentar o coração. Ficava na cama até tarde da manhã e minha mãe trabalhava feito moura como sempre fez em sua vida. Logo, todos nós percebemos que D.Isabel não seria capaz de executar a mínima tarefa doméstica. Quase pela hora do almoço, lá vinha ela pelo corredor da casa, se arrastando num esforço inumano e com aquele sorriso dolorido e sem vontade, como a disfarçar seu constrangimento. Minha mãe tentava por todos os meios extrair dela alguma história, alguma pista de família, de alguém que pudesse acolhê-la, tudo em vão porque a sofrida mulher não entregava nada, inventava tudo, talvez com vergonha e dor por relembrar sua história, talvez nem se lembrasse mesmo. Em nossa casa foi cuidada, alimentada e por algum tempo teve uma cama para dormir.
Depois de muito esperar, minha mãe conseguiu um lugar para ela na Vila Vicentina, onde teve que travar um duelo de argumentação para convencer a diretoria da impossibilidade de continuar com D.Isabel em casa. Naquela época e ainda hoje, as casas de caridade eram lotadas “... pobres sempre os tereis...” O diretor dizia: “por que a senhora foi recolher a mulher? Agora fique com ela, aqui não tem mais lugar”. E minha mãe: “... mas como eu poderia deixar essa mulher na rua? O senhor há de entender e tentar me ajudar, eu trago cama e roupas e o que mais for preciso, mas não é mais possível continuar cuidando dela, tenho seis filhos e muito trabalho em casa...”
Algumas vezes fomos visitá-la. Parecia feliz, dividindo a casinha com uma mulher tão sofrida quanto ela. Depois não me lembro mais. De tão velha e doente deve ter morrido logo. Minha mãe também já se foi. Vai que se encontraram no Céu, ambas saradas de alma e de corpo, no lugar de eterna felicidade prometido por Deus para os que se amam e se ajudam, cá na Terra.

Bendito seja Deus em seus anjos e santos!        

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