Ela apareceu em nossa casa, assim, vindo
do nada. Só Deus sabe. Andava com dificuldade, carregando um corpo dolorido e
pesado como se arrastasse atrás de si o peso de correntes e grilhões de vidas
passadas, recheadas de sofrimentos e misérias. Era uma mulher negra tão
maltratada pela vida que fazia dó. Sorria muito um sorriso resignado que lhe
rasgava o rosto, mais parecendo um esgar de dor e lamento. Bateu em nossa porta
oferecendo serviço doméstico em troca de cama e comida. Minha mãe, temente a
Deus e testemunha viva dos evangelhos, percebeu que aquela mulher estava
doente, não tinha nada nem ninguém, nem mesmo um lugar para recostar a cabeça.
Ignorando qualquer perigo e sem nada saber de sua história, recolheu a pobre
como se fosse o próprio Jesus disfarçado e quem pode dizer que não? “Porque
tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era
peregrino e não me acolhestes ...”
O fato foi que D.Isabel não podia
trabalhar e tudo de que estava precisando era mesmo de uma cama para descansar
os ossos e uma sopa quentinha para esquentar o coração. Ficava na cama até
tarde da manhã e minha mãe trabalhava feito moura como sempre fez em sua vida.
Logo, todos nós percebemos que D.Isabel não seria capaz de executar a mínima
tarefa doméstica. Quase pela hora do almoço, lá vinha ela pelo corredor da
casa, se arrastando num esforço inumano e com aquele sorriso dolorido e sem
vontade, como a disfarçar seu constrangimento. Minha mãe tentava por todos os
meios extrair dela alguma história, alguma pista de família, de alguém que
pudesse acolhê-la, tudo em vão porque a sofrida mulher não entregava nada,
inventava tudo, talvez com vergonha e dor por relembrar sua história, talvez
nem se lembrasse mesmo. Em nossa casa foi cuidada, alimentada e por algum tempo
teve uma cama para dormir.
Depois de muito esperar, minha mãe
conseguiu um lugar para ela na Vila Vicentina, onde teve que travar um duelo de
argumentação para convencer a diretoria da impossibilidade de continuar com D.Isabel
em casa. Naquela época e ainda hoje, as casas de caridade eram lotadas “...
pobres sempre os tereis...” O diretor dizia: “por que a senhora foi recolher a
mulher? Agora fique com ela, aqui não tem mais lugar”. E minha mãe: “... mas
como eu poderia deixar essa mulher na rua? O senhor há de entender e tentar me
ajudar, eu trago cama e roupas e o que mais for preciso, mas não é mais
possível continuar cuidando dela, tenho seis filhos e muito trabalho em
casa...”
Algumas vezes fomos visitá-la. Parecia
feliz, dividindo a casinha com uma mulher tão sofrida quanto ela. Depois não me
lembro mais. De tão velha e doente deve ter morrido logo. Minha mãe também já
se foi. Vai que se encontraram no Céu, ambas saradas de alma e de corpo, no
lugar de eterna felicidade prometido por Deus para os que se amam e se ajudam, cá
na Terra.
Bendito seja Deus em seus anjos e
santos!
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