sexta-feira, 30 de setembro de 2016

ADORÁVEL PRETINHA




Chego ao prédio de minha irmã. Meu marido me espera no carro, tem a ilusão de que vou apenas levar o teclado até lá em cima e volto correndo. O que ele não sabe é que vamos falar atabalhoadamente sobre pelo menos dez assuntos, tudo em oito minutos. Enquanto falamos, tiro apressadamente um cheque da bolsa para acertar nossas contas. Mesmo em pé, debruço-me sobre a mesa e começo a preencher o cheque, e aí minha irmã me chama a atenção em tom baixo para não quebrar o encanto:
- Misa, olha quem está aí pertinho de você.
            Eu acordo de meu torpor robótico, imerso num universo avesso à sensibilidade das criaturas e da natureza. Paciência. Vivo no mundo da pressa, dos atos imediatistas, da correria absurda que me anestesia e me aliena. Confesso que preciso sempre me beliscar para não perder um mundo tão lindo que acontece e que displicentemente deixo passar. Sou consumida pela vida caótica, pela ansiedade e urgência das providências.  
Mas paro e olho. É ela, a adorável pretinha, Nina, em cima da mesa, pertinho de mim como se quisesse me saudar. E ela quer, de fato. Já me conhece, e demonstra seu amor por mim. É a gatinha que minha irmã salvou do mundo cruel. Como se não bastasse nosso adorável Bichinho, que já é um respeitável gatão gigante todo plácido e amoroso, Agueda traz da rua uma microgatinha pretinha, com os bigodinhos queimados por um humano capaz dessas atrocidades. A Nina chegou, toda ela, com uma personalidade totalmente dela, arisca, charmosa, dengosa. A princípio pensamos que não ia dar certo. Até já cogitávamos de fazer uma sessão de fotos para oferecê-la no Face, pois o Bichinho se encrespava todo, disposto a não ceder lugar para a nova integrante da família. Que nada! Logo se entenderam e hoje são mais amigos do que nunca. Afinal os animais se entendem, os humanos é que não.
Nina chegou doentinha. Logo foi para o veterinário, tomou isso mais aquilo, parecia uma isquinha de gato, de tão magrinha e fragilizada. Minha irmã me relatava por telefone cada progresso da recuperação da gatinha. Não houve como não me encantar de imediato com o vocabulário incrivelmente original e cheio de sensibilidade de minha irmã para falar dos bichanos. Eu achava a maior graça toda vez que ela usava certas frases com expressões que fariam os linguistas se deliciarem. Dizia ela:
- Misa, a Nina tá tomando direitinho o remedinho dissolvido na água. Tudo com muito inho e inha. Depois de dias sem se alimentar direito, ela está dando “linguadinhas” no pratinho.
Ou:
- Misa, a Nina ficou um tempão examinando minuciosamente a caixa do ventilador. Decididamente, tudo de novo que entra pela casa tem que passar “pelo crivo” da Nina. A gatinha tem se mostrado uma espiã de tal envergadura que faria Miss Marple morrer de inveja.
            Mas tornemos à Nina em cima da mesa. Mantém aquela posição típica dos felinos quando escondem as patinhas que ficam dobradas e “guardadas” junto ao corpo. Parece uma bolinha preta. Os olhos fecham-se languidamente, para depois se abrirem com jeito de sono, como se quisesse lançar piscadelas sensuais. Já sabemos que isso é sinal de amor e carinho. Eu não me seguro. Começo a falar com ela naquela linguagem que as mães adoram falar com os bebês. E eu chamo: kit kit kit kit ... ti belejinha, veio cumprimentá a tia Misa! Qué coçá baiguinha?. Mas se ergo as mãos para acariciá-la, já sei, ela se afasta, foge. Nunca soubemos se isso é da raça, ou dela própria. De vez em quando ela se joga no chão para que cocemos a barriguinha, mas se ousamos abaixar para pegá-la, ela se esquiva. Um amor. Um amor.      
            Sempre que posso vou visitar minha irmã e brincar com os gatinhos. Eles me remontam a um passado distante, quando eu, ainda menina, chegava da escola, arrancava às pressas o uniforme, botava um short velho e ia para a casa da vizinha brincar num gramado alto com um gatinho encantador que já me esperava lá escondido dentro dos tufos de capim. Eu não sabia, mas era minha dose de remédio para suprir a ternura tão necessária na vida de todos nós.
            Amo os cães e amo os gatos. São tão diferentes e tão ternos, cada um a seu modo. Nina é pequena, mas mostra que dentro dela mora uma grande alma de felino que desperta a cada instante para atender aos seus instintos. Passa longos momentos sem mover um músculo, em posição de ataque para perseguir um tiquinho de inseto no teto. Nada mais a interessa do que caçar aquele bichinho. Mesmo sendo apenas uma minúscula gatinha, parece que dentro dela vive um tigre ou um puma com todos seus instintos raciais em pleno vigor.  
            Gosto tanto dos cães e gatos e, no entanto, não os tenho comigo. Por que será? Tento justificar para mim mesma que moro em apartamento, que podem incomodar os vizinhos, ou que se formos viajar, é um sofrimento a mais. Para dizer a verdade, tenho medo do trabalho. É como se eu adorasse bebês só para brincar com eles, mas na hora da doença e de manter a área limpinha, aí to fora! Mas de uma coisa estou certa, quem convive com cães e gatos tem um olhar diferente sobre a vida. Como diz minha irmã: “não há o que pague a ternura de abrir a porta e dar com meus gatinhos bem à minha frente, esperando por mim.” Pura verdade.      



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