O
nome dela era esse: Maria, só Maria. Era uma menina diferente, tinha qualquer
coisa de santa, de uma vida que não era daqui. Quando ela nasceu, sua mãe já
tinha oito filhos homens, razão do maior orgulho para o pai, que falava com
boca cheia: tenho oito filhos homens, aqui só nasce macho. E aí ocorreu que
veio a Maria, acontecimento que deveria ter sido o de maior festa e alegria para
todos e foi, menos para o pai que blasfemou, manda esse bicho pro lugar de onde veio. Todos se assustaram com
essa fala tenebrosa, mas passou. E é claro que em pouco tempo, o pai amou a
menina muito mais do que a todos os outros oito filhos juntos. Era a alegria da
casa, mimadíssima por todo mundo, principalmente pelo pai. A menina sabia tudo.
A mãe dizia, ah, meu Deus, não acho onde
coloquei aquela lã vermelha, e a Maria sabia, mãe, tá lá dentro daquela caixa, em cima dos guardados da tia Nicota,
no quarto dos fundos. A empregada dizia, será que vai chover?E a Maria, hoje
não, Dona Cida, mas amanhã o céu vai ficar escuro e vai chover muito. A mãe
da Maria não gostava disso, sentia um aperto no peito, uma preocupação, um
pressentimento, sabia que a filha era especial demais. E a Maria era uma menina
gentil com todos. Era feliz, cantava, passeando pelo quintal, seguida pelo Suez,
um velho cão, tão feliz quanto ela.
Aconteceu
que quando a Maria estava com quase sete anos, ela ficou doente. Diziam que era
“crupe”, uma doença que inflama e fecha a laringe e a menina quase morreu.
Trouxeram para outra cidade, a mãe já com aquela dor no coração, mas
silenciosa, sem coragem para externar seus pressentimentos. Pois o médico abriu
a garganta da Maria e pouco a pouco ela foi sarando até que ficou completamente
boa. A mãe botou os joelhos no chão, agradeceu e louvou a Deus e pensou, bobagem minha, minha filha vai me enterrar, assim
como os pais sempre pensam e desejam.
No ano seguinte, quando a menina já ia para oito anos, começaram os ensaios e a
preparação para a Primeira Comunhão. O dia da festa seria, vamos dizer assim,
por exemplo, dia 25 de junho. Um dia, lá pelo início do mês, Maria disse à mãe,
antes de dormir, mãe eu queria que a
senhora falasse com o Monsenhor para que eu fizesse a Primeira Comunhão já,
antes do dia 25. A mãe gelou, respirou fundo e retrucou, quê é isso menina? Tem que ser junto com a
turma, tá ficando maluquinha? Não pode ser antes, e criando coragem, perguntou:
por que, filha? Sentindo que essa
última pergunta saía com a voz trêmula e insegura. A Maria respondeu, é que não vai dar tempo. A mãe, ouvindo
o que mais temeu a vida toda, engoliu um soluço doído que já ameaçava sair,
resmungou qualquer coisa como que tolice!
Cobriu a menina e saiu do quarto, fazendo de conta que não era com ela. Foi até
ao altarzinho que tinha na sala, acendeu uma vela e pediu pra Deus que não
passasse por isso, mas que se fizesse a vontade d’Ele. Depois foi dormir, quase
conformada, afinal durante todos aqueles anos parecia até que já esperava por
isso e o fato que agora tomava seus contornos definitivos vinha romper com
aquela odiosa expectativa. O crupe fora apenas um aceno.
A
mãe não dormiu nada aquela noite e nem comentou com o marido por dois motivos:
primeiro, aprendera a falar pouco e a pensar muito, segundo, pra quê deixar o
pobre desesperado e sem dormir também? Tudo viria a seu tempo. E sentiu uma
força divina que vinha ampará-la, porque força certamente é o que precisaria
ter nos próximos dias. No dia seguinte saiu cedo. Foi até a casa da professora
que preparava as crianças e contou tudo a ela. A boa mulher pensou um pouco e ponderou,
isso não é pra gente decidir, mas para o
padre, vamos falar com o Monsenhor. O Monsenhor ouviu com toda calma e
pediu que trouxessem a menina para conversar com ele. Assim fizeram. O que
falaram, o Monsenhor e Maria, ninguém nunca vai saber porque todos já morreram
e mesmo que não tivessem morrido, foi como segredo de confissão. Há coisas que
poucos podem saber e não devem ser reveladas. Ficou acertado que a menina
fizesse a Primeira Comunhão no domingo seguinte, só ela, sem alardes para que a
cidade não ficasse em polvorosa. Diziam que ela tinha um ar angelical naquele
domingo, fazendo tudo direitinho e com muita devoção. O pai não se conformou,
ficou bravo, não queria que fizessem assim, mas a mãe de Maria ficou firme, não
arredou o pé e, mais, diziam que ela falou poucas e boas para ele. Entre outras
verdades, ela disse que se culpa havia era dele por sempre falar demais, falar
desnecessariamente e o que é pior, profetizar coisas terríveis. Mas ele não
acreditava que isso da filha não fazer a Primeira Comunhão junto com as outras
crianças fosse porque não ia dar tempo até o dia 25, como ela mesma dizia. Não,
havia de ser um capricho de criança, com certeza. As crianças têm dessas
manhas, ele pensava e tentava se convencer, afinal ela estava bem, com saúde e
tudo.
Pois
a saúde foi embora. Na semana seguinte à de sua Primeira Comunhão, Maria caiu
doente e de forma grave. Tinha dores de cabeça fortíssimas, febre, convulsões.
Gritava muito, coisa triste para uma criança tão inocente. A mãe de Maria
engolia aquele cálice amargo com dificuldade, chorava muito longe da menina,
mas quase que não saía de sua cabeceira, nem para se alimentar. Perguntava à
menina, filhinha, por que você está
gritando? Dói tanto assim? Ao que Maria, de uma maneira incrivelmente
lúcida, respondia, mas eu não gritei,
mamãe. E olhava a mãe com aqueles olhos tristes, com as pálpebras pesadas.
Quem presenciou tudo isso jamais se esqueceu, tamanha a tristeza. O pai de
Maria desesperou-se, ficava no quintal da casa chorando, murmurando contra
Deus, sempre murmurando. O cunhado tentava acalmá-lo, mesma coisa que nada.
Enfim, Maria morreu e morreu dia 25, no dia marcado para a Primeira Comunhão de
todas as crianças. Dizem que seu enterro foi uma comoção só, os oito irmãos se
revezando para carregar o caixãozinho. Algum tempo depois, a família de Maria
mudou-se para a capital e essa história foi contada de mãe para filha, de filha
para outra filha. Tudo isso é verdade. Minha mãe presenciou todo o drama. Foi
ela quem ensinou a Maria a rezar a Salve Rainha e a Ave Maria. E eu repasso a
história para que não se perca com o tempo.
Penso
que hoje Maria e minha mãe rezam juntas lá no Céu. Amém.
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