domingo, 30 de outubro de 2016

"A CADA DIA BASTA O SEU CUIDADO"





Então, eu já estava sentada num dos primeiros bancos do ônibus, deixando-me levar pelos mais variados pensamentos, distraída da vida porque, como diz minha prima, quando viajamos de ônibus ficamos suspensos no tempo, sem hora para qualquer compromisso que não este de estarmos nos dirigindo para nosso destino. As rotinas diárias e todas as providências já ficaram para trás e a liberdade é nossa companheira naqueles breves momentos da viagem. Por mais preocupações que havemos sempre de levar, existe um tácito acordo de paz com os problemas, um momento ou uma pausa que surge de não sei onde, de qual recanto de nossa estranha mente e apenas saboreamos sem qualquer urgência a paisagem, olhando os campos que vão ficando para trás, e mais outros. E mais pensamentos, lembranças, elucubrações que se apresentam. Isso tudo quando o passageiro ao lado também decide desfrutar deste precioso silêncio, mas nem sempre as coisas acontecem dessa maneira.     
Bem, fui assistindo ao mundo acontecer, como diz outra prima. Em uma das paradas, havia um bando de alegres ciganas conversando animadamente e rindo muito. Três ciganas coloridas entraram e o silêncio do ônibus foi quebrado com seus risos e suas falas ininteligíveis Duas delas se acomodaram mais atrás e outra sentou-se ao meu lado, pedindo na maior transparência para se sentar à janela, ao que eu assenti sem problemas. O ônibus já arrancava para sair e as três ciganas despediam-se de outras que foram acompanhá-las naquela parada. Foi uma troca de gritos emocionados de despedida, tudo num dialeto português totalmente novo para mim: “Ó Chica, ó Chica, no esquece de fechá portão, sodade mo Deus.” Eu entendia uma coisa ou outra, mas confesso que pareciam falar uma língua estrangeira, própria delas. Eram de uma comovente sensibilidade porque também choravam e limpavam as lágrimas com as palmas das mãos mostrando os dedos cobertos por milhares de anéis. 
À medida que o ônibus se afastava, foram se acalmando, mas de quando em quando a cigana ao meu lado gritava algo para as duas lá de trás e riam e falavam em sua língua. Até que percebi que minha companheira de banco passou a me examinar com atenção. Pensei comigo, ah meu Deus, ela vai querer ler minha mão! E eu não vou querer não. Instintivamente, numa vã tentativa de proteger minhas mãos ou meu destino cruzo os braços. Neste momento a cigana com sua saia superverde-limão puxa prosa comigo. Quer saber para onde eu vou, digo para ela que vou perto e volto hoje mesmo. Finalmente ela me pergunta naquele estranho dialeto português se não quero que leia minha mão. Sabia. Tenho medo, não quero saber do que me espera. O futuro a Deus pertence. Se eu soubesse das dores que já vivi, certamente pensaria que não seria possível viver. Tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém. Mas ela saberia, de fato, o que poderiam minhas mãos contar? Não sei. Mas não quero.

Faço que não com a cabeça o mais gentilmente que posso. A cigana se abre num sorriso mostrando todos seus dentes de ouro, como se abrisse uma caixa de joias e me diz: “tem medo não loura, você é bonita, só tem coisa boa no seu caminho.” Retribuo o sorriso feliz da vida, como geralmente a gente se sente quando ouve coisas boas. Mais para o final da viagem, ela me pede um dinheirinho para comprar qualquer coisinha para o netinho que está internado. Dou de bom grado. E seguro sua mão num gesto de carinho, só pela “loura bonita” valeu. As três alegres ciganas descem e ela me acena de longe. E eu sigo meu caminho, sem querer saber como será o amanhã. A cada dia basta o seu cuidado porque entre a manhã e a tarde se muda o tempo. Além disso, nunca temos garantias de nada. E por fim, como diz G. Rosa, “precisamos também do obscuro para viver.” 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

NÃO SOMOS DONOS




            Estava relendo uma crônica da Cristina Hauser em que ela conta que experimentou soltar a trela que prendia seu cão durante um passeio. Em vez de o cão correr à sua frente como sempre parecia desejar, arrastando-a com força por todos os lugares, ele estancou. Aí andou um pouco, mas sempre olhando para trás como a certificar-se de que ela o seguia. Depois desistiu de ir à frente, optando por vir mais atrás, de onde certamente poderia vigiar sua dona. Eu disse “dona”? Sim, disse, mas não devia. Não somos donos de nossos cães, nem de ninguém e nem de nada.
            Isso me fez relembrar meu admirável psicanalista de tantos anos atrás. Eu lia para ele um conto que fiz sobre a “Joia”, nossa cadela perdigueira, a última que meu pai teve e justamente por isso de quem mais nos lembramos com tanto carinho. Bem, enquanto lia, meu psicanalista ouviu com atenção como sempre fazia quando eu levava novos contos e crônicas. Depois, com a delicadeza que nunca dispensou um tom firme que até hoje me faz falta, disse: “não soa estranho a você que a palavra ‘dono’ apareça tantas vezes em seu conto?” Foi aí que parei para pensar e refleti. Fiz o conto narrado pela própria Joia e muitas vezes, ela, a Joia, se referia a meu pai usando a palavra “dono”. É verdade, respondi eu, a Joia não se sentia propriedade de meu pai, mas uma amiga, companheira de caçadas, sobretudo uma amiga. De forma igual, tenho certeza de que meu pai nunca se sentiu dono dela. O amor entre eles certamente estava bem além do que significa a palavra “dono”, que implica um senhorio, nada tendo a ver com as pessoas ou animais que tanto amamos.
Etimologicamente, dono vem do latim “dominus”, senhor, proprietário, líder. Hummm, líder até que é legal, pois quando a Cristina Hauser pensava que estava no comando de seu cão, ele é que a guiava, exercendo o papel de líder, puxando-a fortemente por onde desejava. Mas essa liderança está mais para uma cumplicidade cheia de amor partilhado. Contudo dizemos “meu filho”, “meu marido”, “meu cão”, tudo bem. É mais por uma questão de referência. Podemos dizer “meu filho é mais velho do que o seu”, mas este pronome possessivo não significa posse, propriedade no sentido que questiono aqui.
Não, não somos donos de nada. Nem de nossos filhos, nem de nossos cães, gatos, cavalos, elefantes, seja lá do que for, até mesmo das coisas como casas, carros, dinheiro. Estamos usando estes bens temporariamente, pois desde sempre soubemos que um dia deixaremos tudo para trás. É difícil viver sem amarras, com total liberdade, isso praticamente não existe porque nossa natureza humana tem necessidade de possuir, de ter, de ser proprietário. Quanto às pessoas e criaturas que amamos, existem laços entre nós (nós nos dois sentidos), alguns mais apertados, outros mais leves, assim como a trela que usamos em nosso cão para passear. Mas bem diferente de serem algemas de ferro, são com certeza, laços de amor e de ternura.                           

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O HOMEM CRIADOR




            Não é de hoje que o homem anseia por descobrir o segredo da vida. Há alguns anos, o geneticista americano Craig Venter anunciou a criação da primeira bactéria a viver com o código genético montado em laboratório. Daí a criar uma vida artificial ainda tem chão, mas o feito de Venter é importante na medida em que, pela primeira vez, foi criado quimicamente um genoma inteiro, ainda que esse genoma não seja original, mas recriado de um já existente. Desde sempre, o homem criado quer ser criador em busca da derrota da morte, e a história mostra sua insistente luta pela imortalidade. Muitos degraus já foram galgados nessa empreitada, porém de forma mais contundente, desde a ovelha Dolly os cientistas se debruçam cada vez mais sobre DNAs e mais DNAs, ansiosos pelo próximo passo e parece que chegam cada vez mais perto de desvendar o grande mistério da criação.
            É da natureza do homem ser criativo e movido pelo desejo, características que já não percebemos nos animais. Podemos observar, admirados, a finíssima teia de aranha artisticamente urdida, a colmeia de abelhas com todos seus desenhos geométricos, o ninho de pássaros pacientemente construído, mas já sabemos que tudo isso acontece desde que o mundo é mundo, pois nunca foi constatado que uma abelha ou uma aranha tenham ousado arquitetar seu habitat de forma diferente.  Com o homem a coisa é outra. Sempre persistente e curioso, ele não para de buscar novos desafios, engendrando novas fórmulas e projetos, tentando melhorar sua qualidade de vida.
            Passado o tempo da idade das trevas em que a ousadia humana era vista como pecado e por essa razão duramente reprimida, o homem se esbaldou permitindo-se experimentar misteriosas misturas em seus modernos e profanos laboratórios. Livre para criar, ele pôs em prática toda a enxurrada de ideias que desde sempre fervilham em sua mente e povoam seus sonhos. Afinal, somente a ele foi concedida a graça de se desenvolver, de se aprimorar e de superar seus limites. Em todas as áreas o homem cresce, avança, contorna obstáculos e se delicia com as novidades que sempre estiveram ali, à espera de quem as descobrisse.
            E a arte imita a vida. O homem, sequioso por descobrir o que existia além do Jardim do Eden e criar ele mesmo seu próprio mundo, inspirou escritores que dispuseram as criaturas contra os criadores, como Frankenstein que se rebelou contra seu criador e os robôs da era moderna contra os cientistas que os criaram. Haverá sempre um preço de ser criador e de ser criado. É bom refletir: estarão todos aptos e dispostos a arcar com ele?
            Não resta dúvida de que a biologia molecular e a engenharia genética foram enriquecidas pela descoberta de Craig Venter e certamente serão mais ainda com outras novas descobertas que virão. Novas vacinas poderão ser usadas para impedir epidemias como as que já assolaram o planeta. Combatidas as doenças, pode-se prolongar a vida e adiar a temida morte, mas até hoje ninguém conseguiu vencê-la. Duvi-de-o-dó (como dizia minha mãe) que consigam.   
Também li há poucos dias que um estudo feito em Nova York aponta que o homem já poderá viver em média 115 anos. Ave Maria! Já no Brasil a expectativa de vida ainda é bem menor. Bem, de qualquer forma resta-nos saber se diante de tanta longevidade, quando o homem não tiver mais com o que sonhar e vencer, não sentirá o desejo de morrer, pois não será justamente a incerteza e a misteriosa transitoriedade da vida que a fazem ser tão preciosa e bela? E outra: como fará o Estado para resolver o problema das aposentadorias eternas? Espero que o atual governo resolva este famigerado problema como tem prometido.

E mais uma coisa. Se de fato pretendemos viver indefinidamente, que seja amando a vida e este mundo caótico e belo. Poucas pessoas chegam à idade avançada com capacidade de refletir com sabedoria e humildade. Li uma fala poética de Saramago em que ele cita sua avó: “ ... disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: 'O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer'. Assim mesmo. Eu estava lá." Saramago (As pequenas memórias). Nossa, gente, que coisa mais bonita!

terça-feira, 11 de outubro de 2016

CRIANÇAS


 
           Há alguns anos atrás escrevi uma crônica sobre meu sobrinho neto que então era ainda um garotinho. E agora, há apenas alguns dias curti uma foto dele postada pela mãe. Olhei, olhei e procurei o garotinho que eu sempre conheci tão bem. Ainda é um garoto, ainda tem ares de garoto, mas da noite pro dia nasceu nele um quê de rapazinho, não sei se é o olhar, se é o jeito de sorrir, não sei definir, algo como se o menino tivesse sido investido de uma pequena seriedade, ou tivesse perdido um dos poderes do encantamento infantil. Ganhou um novo traço, desses que não são físicos, que vêm de dentro se esgueirando misteriosamente, e que acabam por se revelar no semblante, ora sim, ora não, alternando com traços infantis, até que por fim vão se tornar permanentes. Claro que tudo isso ainda é muito sutil, percebido apenas por quem tem a sensibilidade extrema de observar uma criança.
Não sou mãe. Limitei-me ao longo dos anos a raspar o restinho da panela de meus irmãos, amando meus sobrinhos e agora sobrinhos-netos com louco amor. Digo isto com o maior orgulho porque não lamento não ter sido mãe. Deus sabe o que faz. Eu teria metido os pés pelas mãos. Sou absolutamente neurótica com proteção. Pra se ter ideia da loucura desta neurose, imaginem que quando meu sobrinho de 17 anos na época veio morar comigo, eu queria porque queria por telas nas janelas. É claro que não pude externar minhas preocupações e meu secreto intento, temia que me internassem. Não tinha cabimento. Não, definitivamente eu não poderia ter sido mãe.
Sempre tendemos a achar que nossas crianças são as melhores, as mais inteligentes e engraçadinhas. Isso porque convivemos com elas no dia a dia e assim vamos assistindo às suas notáveis tiradas. Mas a verdade é que todas as crianças, de modo geral, são assim. É que puxamos a sardinha para nosso lado, não é? É que o amor é tanto que a gente não resiste, não desiste e insiste em mostrar para o mundo as fotos e filmes dos nossos fabulosos pirralhos. Já vi tias que guardavam os dentinhos de leite de cada um, fazendo até colares, imagine só! Eu, nem tanto!
Mas voltemos ao meu sobrinho-neto, o Menino Caramelo, assim o apelidei. Um amor de garoto! Desde bem pequeno ficava tentando amarrar o cadarço no tênis até que conseguiu, e ai de alguém se dissesse: deixa que eu amarro pra você! Ele dizia meio irritado: “eu sei”. Como tudo hoje em dia é filmado, assisti à cena em que o pai ensinava o garoto a andar de bicicleta sem a rodinha. É claro que o menino caía algumas vezes e o pai, tentando dar aquele apoio, dizia: “não desiste, vamos de novo”, ao que o pirralho respondia: “eu nunca desisto”. Achei uma graça!
O Menino Caramelo nunca se incomodou com a opinião dos colegas, muito menos dos adultos. Colocava a mochila nas costas, saía cantando alto e ia para a escola na maior alegria! Também era e é o dono do mundo! Canhotinho, toca sua miniguitarra cantando a plenos pulmões junto com o pai músicas de Raul Seixas. Era fã incondicional do Homem-Aranha (agora não sei) e suas festas de aniversário não podiam ter outro tema. Naquela época me disse que seu filho iria se chamar “Peter Parker”. Adora um Milk-shake, curte de montão aniversários e sorvetes, não perdia (agora não sei) um capítulo do Carrossel e ainda por cima se vestia (agora não sei) de anjo para coroar Nossa Senhora, aliás, ele tem cara e cabelo de anjo. 
Mas ainda é criança porque as crianças, ainda que usando computadores de última geração, ainda vivem num mundo mágico e misterioso que também nós conhecemos num passado distante, mas nos esquecemos porque ficamos adultos e chatos. Assim, até tempos atrás quando o Menino Caramelo caía e se machucava, deixava a criança que existia nele se mostrar: esquecia a independência, botava a boca no mundo e não abria mão do colo amoroso da mãe que sabia consolar e curar com beijos carinhosos. E este consolo, ah, este sempre vai ser o mesmo, desde os primórdios dos tempos até hoje e para sempre.
Hoje percebi que o Menino Caramelo cresceu, que bom! Ganhou aquele quê de rapazinho, nada mais justo, mais normal e saudável do que crescer. Mas fiquei pensativa, nostálgica. Fiquei me lembrando de minha própria infância já vencida há séculos. É que tudo passa, e agora não temos mais bebês na família. Sinal de que a idade chegou! Nada de tristeza! Bora comemorar o dia das crianças!



sexta-feira, 7 de outubro de 2016

UMA PESSOA ESPECIAL





            Era um morro pra lá de alto. E as pessoas viviam lá, crianças, adultos, idosos, famílias inteiras porque existem pessoas e famílias em todos os lugares. O céu doía de tão azul e o sol brilhava contente. A enfermeira e suas alunas subiram o morro em alegres conversas e canções, logo foram batendo palmas e entrando em cada casa, em cada vida, em cada história. Foram conhecendo os problemas, o tipo de comida que faziam, as dificuldades para manter uma alimentação natural. E aí conheceram as crianças, suas alergias, suas tosses, seus risos e às vezes seus olhares tristes. Conversaram com todos, ensinaram métodos, receitas caseiras, ensinaram como plantar, fazer canteiros no cantinho do quintal. Mais do que alimentação e doenças, elas conheceram o mais importante de tudo: as pessoas e suas vidas.
            Mas o mais bonito do mundo foi a última casa, lá no alto, pertinho do céu. Casa simples, como a grande maioria das casas daquele lado da cidade. Era a casa construída pelo Seu Isaías, um homem já velho, que agora gemia baixinho em sua cama, carcomido por um câncer que consumia seu esôfago. Seu Isaías não teria mais muito tempo nesta sua vida dura que fora uma verdadeira luta num vale de lágrimas. A filha recebeu a enfermeira e as moças, e logo relatou que o médico dizia que o pai tinha que ficar no hospital. E aí começou a chorar porque sabia que não havia mais nada a fazer e não queria que ele ficasse cheio de tubos e morresse longe dela. E de fato a enfermeira percebeu que levar Seu Isaías mais uma vez para um hospital seria a pior coisa a ser feita. E ela foi até seu Isaías. Ele cochilava, mas gemia sempre. E ela chegou pertinho de seu ouvido e chamou:
- Seu Isaías, seu Isaías!
O homem tentou abrir os olhos e com dificuldade respondeu numa voz rouca que pouco era compreensível: Ahn, quem tá aí?  
- Seu Isaías, sou a enfermeira, vim pra ver o que o senhor precisa.
Vagarosamente ele dobrou as mãos sobre o peito, e disse: Ah, Deus cuida.
E a enfermeira, percebendo que da próxima vez que voltassem ao morro, talvez seu Isaías já tivesse partido, resolveu perguntar: Seu Isaías, me diga aqui, o que mais o senhor gostaria de fazer agora, qual é o seu maior desejo?
Ele pensou por alguns momentos, fez uma cara crispada de dor e respondeu com voz fraca, quase sumida: Ah, eu queria que a minha cama fosse lá fora, eu queria olhar o céu azul e sentir o sol.
Todas se entreolharam. E agora? A enfermeira convocou: Mãos à obra gente!
A filha relutou, não, não, está ventando. A enfermeira foi firme, vamos fazer o desejo dele. Mas a cama não passa na porta. Uma das alunas arriscou, vamos levar no colchão. Vamos! E chamaram vizinhos, todos ajudaram e seu Isaías foi carregado por várias mãos, deitado no colchão de palha em cima do capim. Recebeu o sol no rosto dando de cara com o céu azul. Um pálido sorriso surgiu no rosto amarelado pela doença. E a enfermeira ainda perguntou: Seu Isaías, que mais o senhor gostaria?
- Meu hinário. A filha sabia onde estava o hinário, foi buscar e logo todas se debruçaram sobre o hinário para cantar. Não foi difícil. Todas já tinham ouvido a canção: “Glória, glória aleluia, glória, glória aleluia, glória, glória aleluia, vencendo vem Jesus ...” Seu Isaías derramou lágrimas de emoção e alegria.
Seu Isaías morreu um ou dois dias depois da visita.

Esta é uma história verdadeira. É minha homenagem à prima Lígia, uma profissional de saúde que nasceu com verdadeira vocação para a enfermagem, que tem o dom de enxergar as necessidades das pessoas e não hesita em penetrar em seus corações e fazê-los um pouco mais felizes. As pessoas especiais jamais ignoram o sofrimento de alguém, sempre se antecipam na ajuda ao próximo, sofrem suas dores, e trazem um olhar sempre adiante das pessoas comuns. Repito as palavras de Maria Júlia Paes da Silva sobre o trabalho de doutorado da Lígia: “Dizem que a ameixeira sofre porque floresce antes das outras árvores ainda nos rigores do inverno. Parabéns pela ousadia de ser ameixeira.” Nada mais digno, mais sensível e mais verdadeiro.  

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

TRÂNSITO E VIOLÊNCIA



Hoje uma amiga postou no grupo do whatsApp um artigo interessante intitulado “Caminhão de lixo”. Trata-se de um motorista de taxi que ensina ao seu passageiro como não ser um caminhão de lixo, acumulando mágoas, picuinhas, estresses diários, e o que é pior, descarregando todo este lixo em cima dos outros. Imediatamente me reportei a um episódio de 21 anos atrás de que nunca me esqueci. Curiosamente envolvia um motorista de táxi que de forma parecida ao do artigo, ensinou-me, não com palavras, mas com um único gesto como não ser o tal caminhão de lixo.
Minha mãe, minha tia e eu estávamos em uma peregrinação religiosa em Medjugorje. Penso que hoje em dia a cidade e região já tenham um sistema mais adequado de locomoção devido ao infinito fluxo de peregrinos que vão diariamente visitar o lugar sagrado. Naquela época havia pousadas bem simples e andávamos a pé por todos os lados. Mas certo dia tomamos um taxi porque o lugar aonde pretendíamos ir era um pouco mais distante. Eu estava sentada no banco da frente, ao lado do motorista. Era uma confusão tremenda de carros que se enfiavam uns na frente de outros, não havia semáforos, nem guarda de trânsito. Em determinado momento quando enfim conseguimos pegar uma rua preferencial, um carro entrou abruptamente em nossa frente, fazendo o motorista brecar com força. Eu fiquei indignada, olhei para o motorista e disse: como é que pode? Ao que ele simplesmente respondeu fazendo um gesto com a mão que dizia: calma, deixa passar, não vale a pena. Tranquilamente, ele esperou que o outro motorista mal educado passasse e seguimos atrás.
Ele já devia estar acostumado com aquele trânsito caótico, é verdade, mas mesmo assim seu comportamento revelava que ele era um homem calmo, que não deixava que essas coisas atrapalhassem sua tranquilidade. Admirei muito aquele cara e toda vez que ameaço ficar irritada no trânsito, não deixo de me lembrar daquele motorista da Bósnia que me dizia só com gestos, “deixa passar”. Já ouvi que no trânsito os gênios se mostram. E há casos tão perigosos que motoristas se matam por coisas perfeitamente contornáveis. É muito chato, para não dizer outra palavra, estar esperando por uma vaga quando vem um engraçadinho e passa na frente da gente. Enfim, realmente não devemos perder a classe, a paz interior e a saúde física por causa de disputas no trânsito.  Já assisti a dois motoristas que saíram de seus carros e se atracaram com tanto ódio que certamente se um deles estivesse com uma arma, teria cometido um crime. As mulheres também saíram dos carros e nervosas, tentavam sem sucesso algum acalmar seus maridos trogloditas. A coisa toda só terminou quando outros homens que passavam seguraram os dois brigões nervosinhos.

Sim, no trânsito os gênios se revelam, o que podemos perceber facilmente tanto pela gentileza de uns como pela agressividade de outros. Vale a pena também aproveitar qualquer incidente para a gente se conhecer sem medo. Será que sou sempre gentil? Humm ... Eu já fiquei irritada no trânsito e não foi só uma vez não, já fiz cara feia e tudo. Assim, toda vez que saio rezo a oração do anjo da guarda porque nunca sabemos o que de fato nos aguarda. Vamos em frente que atrás vem gente.