Então,
eu já estava sentada num dos primeiros bancos do ônibus, deixando-me levar
pelos mais variados pensamentos, distraída da vida porque, como diz minha
prima, quando viajamos de ônibus ficamos suspensos no tempo, sem hora para
qualquer compromisso que não este de estarmos nos dirigindo para nosso destino.
As rotinas diárias e todas as providências já ficaram para trás e a liberdade é
nossa companheira naqueles breves momentos da viagem. Por mais preocupações que
havemos sempre de levar, existe um tácito acordo de paz com os problemas, um
momento ou uma pausa que surge de não sei onde, de qual recanto de nossa
estranha mente e apenas saboreamos sem qualquer urgência a paisagem, olhando os
campos que vão ficando para trás, e mais outros. E mais pensamentos,
lembranças, elucubrações que se apresentam. Isso tudo quando o passageiro ao
lado também decide desfrutar deste precioso silêncio, mas nem sempre as coisas
acontecem dessa maneira.
Bem,
fui assistindo ao mundo acontecer, como diz outra prima. Em uma das paradas,
havia um bando de alegres ciganas conversando animadamente e rindo muito. Três
ciganas coloridas entraram e o silêncio do ônibus foi quebrado com seus risos e
suas falas ininteligíveis Duas delas se acomodaram mais atrás e outra sentou-se
ao meu lado, pedindo na maior transparência para se sentar à janela, ao que eu
assenti sem problemas. O ônibus já arrancava para sair e as três ciganas
despediam-se de outras que foram acompanhá-las naquela parada. Foi uma troca de
gritos emocionados de despedida, tudo num dialeto português totalmente novo
para mim: “Ó Chica, ó Chica, no esquece de fechá portão, sodade mo Deus.” Eu
entendia uma coisa ou outra, mas confesso que pareciam falar uma língua
estrangeira, própria delas. Eram de uma comovente sensibilidade porque também
choravam e limpavam as lágrimas com as palmas das mãos mostrando os dedos
cobertos por milhares de anéis.
À
medida que o ônibus se afastava, foram se acalmando, mas de quando em quando a
cigana ao meu lado gritava algo para as duas lá de trás e riam e falavam em sua
língua. Até que percebi que minha companheira de banco passou a me examinar com
atenção. Pensei comigo, ah meu Deus, ela vai querer ler minha mão! E eu não vou
querer não. Instintivamente, numa vã tentativa de proteger minhas mãos ou meu
destino cruzo os braços. Neste momento a cigana com sua saia superverde-limão puxa
prosa comigo. Quer saber para onde eu vou, digo para ela que vou perto e volto
hoje mesmo. Finalmente ela me pergunta naquele estranho dialeto português se
não quero que leia minha mão. Sabia. Tenho medo, não quero saber do que me
espera. O futuro a Deus pertence. Se eu soubesse das dores que já vivi,
certamente pensaria que não seria possível viver. Tudo nos é permitido, mas nem
tudo nos convém. Mas ela saberia, de fato, o que poderiam minhas mãos contar?
Não sei. Mas não quero.
Faço
que não com a cabeça o mais gentilmente que posso. A cigana se abre num sorriso
mostrando todos seus dentes de ouro, como se abrisse uma caixa de joias e me
diz: “tem medo não loura, você é bonita, só tem coisa boa no seu caminho.”
Retribuo o sorriso feliz da vida, como geralmente a gente se sente quando ouve
coisas boas. Mais para o final da viagem, ela me pede um dinheirinho para
comprar qualquer coisinha para o netinho que está internado. Dou de bom grado. E
seguro sua mão num gesto de carinho, só pela “loura bonita” valeu. As três
alegres ciganas descem e ela me acena de longe. E eu sigo meu caminho, sem querer
saber como será o amanhã. A cada dia basta o seu cuidado porque entre a manhã e
a tarde se muda o tempo. Além disso, nunca temos garantias de nada. E por fim,
como diz G. Rosa, “precisamos também do obscuro para viver.”
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