sexta-feira, 7 de outubro de 2016

UMA PESSOA ESPECIAL





            Era um morro pra lá de alto. E as pessoas viviam lá, crianças, adultos, idosos, famílias inteiras porque existem pessoas e famílias em todos os lugares. O céu doía de tão azul e o sol brilhava contente. A enfermeira e suas alunas subiram o morro em alegres conversas e canções, logo foram batendo palmas e entrando em cada casa, em cada vida, em cada história. Foram conhecendo os problemas, o tipo de comida que faziam, as dificuldades para manter uma alimentação natural. E aí conheceram as crianças, suas alergias, suas tosses, seus risos e às vezes seus olhares tristes. Conversaram com todos, ensinaram métodos, receitas caseiras, ensinaram como plantar, fazer canteiros no cantinho do quintal. Mais do que alimentação e doenças, elas conheceram o mais importante de tudo: as pessoas e suas vidas.
            Mas o mais bonito do mundo foi a última casa, lá no alto, pertinho do céu. Casa simples, como a grande maioria das casas daquele lado da cidade. Era a casa construída pelo Seu Isaías, um homem já velho, que agora gemia baixinho em sua cama, carcomido por um câncer que consumia seu esôfago. Seu Isaías não teria mais muito tempo nesta sua vida dura que fora uma verdadeira luta num vale de lágrimas. A filha recebeu a enfermeira e as moças, e logo relatou que o médico dizia que o pai tinha que ficar no hospital. E aí começou a chorar porque sabia que não havia mais nada a fazer e não queria que ele ficasse cheio de tubos e morresse longe dela. E de fato a enfermeira percebeu que levar Seu Isaías mais uma vez para um hospital seria a pior coisa a ser feita. E ela foi até seu Isaías. Ele cochilava, mas gemia sempre. E ela chegou pertinho de seu ouvido e chamou:
- Seu Isaías, seu Isaías!
O homem tentou abrir os olhos e com dificuldade respondeu numa voz rouca que pouco era compreensível: Ahn, quem tá aí?  
- Seu Isaías, sou a enfermeira, vim pra ver o que o senhor precisa.
Vagarosamente ele dobrou as mãos sobre o peito, e disse: Ah, Deus cuida.
E a enfermeira, percebendo que da próxima vez que voltassem ao morro, talvez seu Isaías já tivesse partido, resolveu perguntar: Seu Isaías, me diga aqui, o que mais o senhor gostaria de fazer agora, qual é o seu maior desejo?
Ele pensou por alguns momentos, fez uma cara crispada de dor e respondeu com voz fraca, quase sumida: Ah, eu queria que a minha cama fosse lá fora, eu queria olhar o céu azul e sentir o sol.
Todas se entreolharam. E agora? A enfermeira convocou: Mãos à obra gente!
A filha relutou, não, não, está ventando. A enfermeira foi firme, vamos fazer o desejo dele. Mas a cama não passa na porta. Uma das alunas arriscou, vamos levar no colchão. Vamos! E chamaram vizinhos, todos ajudaram e seu Isaías foi carregado por várias mãos, deitado no colchão de palha em cima do capim. Recebeu o sol no rosto dando de cara com o céu azul. Um pálido sorriso surgiu no rosto amarelado pela doença. E a enfermeira ainda perguntou: Seu Isaías, que mais o senhor gostaria?
- Meu hinário. A filha sabia onde estava o hinário, foi buscar e logo todas se debruçaram sobre o hinário para cantar. Não foi difícil. Todas já tinham ouvido a canção: “Glória, glória aleluia, glória, glória aleluia, glória, glória aleluia, vencendo vem Jesus ...” Seu Isaías derramou lágrimas de emoção e alegria.
Seu Isaías morreu um ou dois dias depois da visita.

Esta é uma história verdadeira. É minha homenagem à prima Lígia, uma profissional de saúde que nasceu com verdadeira vocação para a enfermagem, que tem o dom de enxergar as necessidades das pessoas e não hesita em penetrar em seus corações e fazê-los um pouco mais felizes. As pessoas especiais jamais ignoram o sofrimento de alguém, sempre se antecipam na ajuda ao próximo, sofrem suas dores, e trazem um olhar sempre adiante das pessoas comuns. Repito as palavras de Maria Júlia Paes da Silva sobre o trabalho de doutorado da Lígia: “Dizem que a ameixeira sofre porque floresce antes das outras árvores ainda nos rigores do inverno. Parabéns pela ousadia de ser ameixeira.” Nada mais digno, mais sensível e mais verdadeiro.  

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