Era um morro pra lá de alto. E as
pessoas viviam lá, crianças, adultos, idosos, famílias inteiras porque existem pessoas
e famílias em todos os lugares. O céu doía de tão azul e o sol brilhava
contente. A enfermeira e suas alunas subiram o morro em alegres conversas e
canções, logo foram batendo palmas e entrando em cada casa, em cada vida, em
cada história. Foram conhecendo os problemas, o tipo de comida que faziam, as
dificuldades para manter uma alimentação natural. E aí conheceram as crianças,
suas alergias, suas tosses, seus risos e às vezes seus olhares tristes. Conversaram
com todos, ensinaram métodos, receitas caseiras, ensinaram como plantar, fazer
canteiros no cantinho do quintal. Mais do que alimentação e doenças, elas
conheceram o mais importante de tudo: as pessoas e suas vidas.
Mas o mais bonito do mundo foi a
última casa, lá no alto, pertinho do céu. Casa simples, como a grande maioria
das casas daquele lado da cidade. Era a casa construída pelo Seu Isaías, um
homem já velho, que agora gemia baixinho em sua cama, carcomido por um câncer que
consumia seu esôfago. Seu Isaías não teria mais muito tempo nesta sua vida dura
que fora uma verdadeira luta num vale de lágrimas. A filha recebeu a enfermeira
e as moças, e logo relatou que o médico dizia que o pai tinha que ficar no
hospital. E aí começou a chorar porque sabia que não havia mais nada a fazer e
não queria que ele ficasse cheio de tubos e morresse longe dela. E de fato a
enfermeira percebeu que levar Seu Isaías mais uma vez para um hospital seria a
pior coisa a ser feita. E ela foi até seu Isaías. Ele cochilava, mas gemia
sempre. E ela chegou pertinho de seu ouvido e chamou:
-
Seu Isaías, seu Isaías!
O
homem tentou abrir os olhos e com dificuldade respondeu numa voz rouca que
pouco era compreensível: Ahn, quem tá aí?
-
Seu Isaías, sou a enfermeira, vim pra ver o que o senhor precisa.
Vagarosamente
ele dobrou as mãos sobre o peito, e disse: Ah, Deus cuida.
E a
enfermeira, percebendo que da próxima vez que voltassem ao morro, talvez seu
Isaías já tivesse partido, resolveu perguntar: Seu Isaías, me diga aqui, o que mais
o senhor gostaria de fazer agora, qual é o seu maior desejo?
Ele
pensou por alguns momentos, fez uma cara crispada de dor e respondeu com voz
fraca, quase sumida: Ah, eu queria que a minha cama fosse lá fora, eu queria
olhar o céu azul e sentir o sol.
Todas
se entreolharam. E agora? A enfermeira convocou: Mãos à obra gente!
A
filha relutou, não, não, está ventando. A enfermeira foi firme, vamos fazer o
desejo dele. Mas a cama não passa na porta. Uma das alunas arriscou, vamos
levar no colchão. Vamos! E chamaram vizinhos, todos ajudaram e seu Isaías foi
carregado por várias mãos, deitado no colchão de palha em cima do capim.
Recebeu o sol no rosto dando de cara com o céu azul. Um pálido sorriso surgiu
no rosto amarelado pela doença. E a enfermeira ainda perguntou: Seu Isaías, que
mais o senhor gostaria?
- Meu
hinário. A filha sabia onde estava o hinário, foi buscar e logo todas se
debruçaram sobre o hinário para cantar. Não foi difícil. Todas já tinham ouvido
a canção: “Glória, glória aleluia, glória, glória aleluia, glória, glória
aleluia, vencendo vem Jesus ...” Seu Isaías derramou lágrimas de emoção e
alegria.
Seu
Isaías morreu um ou dois dias depois da visita.
Esta
é uma história verdadeira. É minha homenagem à prima Lígia, uma profissional de
saúde que nasceu com verdadeira vocação para a enfermagem, que tem o dom de
enxergar as necessidades das pessoas e não hesita em penetrar em seus corações
e fazê-los um pouco mais felizes. As pessoas especiais jamais ignoram o
sofrimento de alguém, sempre se antecipam na ajuda ao próximo, sofrem suas
dores, e trazem um olhar sempre adiante das pessoas comuns. Repito as palavras
de Maria Júlia Paes da Silva sobre o trabalho de doutorado da Lígia: “Dizem que
a ameixeira sofre porque floresce antes das outras árvores ainda nos rigores do
inverno. Parabéns pela ousadia de ser ameixeira.” Nada mais digno, mais
sensível e mais verdadeiro.
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