“Há
uma luz mais intensa que olhos comuns não podem sequer imaginar. Esta luz não
vem dos olhos físicos. Está dentro de nós. Cuidemos para que ela não se apague
porque em algum momento é com ela que haveremos de enxergar a beleza tão
necessária à vida.”
Realizei o sonho de abandonar os
óculos depois de centenas de anos. É lógico que fiquei tensa na cirurgia. Quem
não fica? Os olhos são instrumentos tão delicados e tão maravilhosos. Já tinha
me submetido à cirurgia no olho esquerdo em outubro e agora, foi a vez do olho
direito. Fui firme. Segurei na mão de Deus e fui. Então, naquela sala repleta
de pessoas com mais de 60, inclusive a articulista que escreve este artigo, fui
guiada pela enfermeira gentil. Vesti um traje que serviria para cinco de mim
dentro daquela calça imensa e uma blusa que me caía nos ombros. Fiquei quieta
no meu canto tentando me adaptar a uma situação estranha de esperar que me
levassem para que eu enxergasse sem óculos.
A enfermeira chegou sempre gentil
com um copinho que continha um líquido cor de rosa e me disse que era para
relaxar. Eu sabia, já tinha provado daquele líquido um mês antes. Engoli tudo de
uma vez só como se faz com um gole de cachaça. Então tentei entabular uma
conversa com ela de tal forma que a convencesse a me dar outra dose do remédio
cor de rosa. Disse a ela:
-
Filhota, dá pra trazer outra dose?
-
Não, não pode, a senhora vai relaxar só com este. Vai ver só.
-
Não vou não, você não me conhece, sou mais ansiosa que todos estes que estão
aqui. Você não se lembra? O anestesista teve que aplicar o líquido na minha
veia da última vez. Relaxo coisa nenhuma. Sou capaz de dar um vexame, estou
morrendo de medo.
Dito desta forma, a moça se apressou
a me aplicar uma agulha na veia caso o remédio fosse mesmo necessário. Várias
pessoas foram levadas antes de mim. Conformei-me a refletir sobre a vida, sobre
a vista e tudo o mais antes que levassem. Fiquei lá pensando comigo como a
visão é importante para todo mundo. Mas foi aí que me lembrei do fabuloso livro
autobiográfico de Jacques Lusseyran (1924-1971), leitura recomendada por minha
amiga Vera Weber há anos atrás. Jacques escreveu sua autobiografia aos 29 anos
(1953), oito anos após sua libertação do cativeiro nazista. Foi um herói da
Resistência Francesa inúmeras vezes condenado. Este homem incrível perdeu a
visão num acidente quando era uma criança de 7 ou 8 anos. A perda de sua visão
física lhe conferiu a descoberta de uma visão interior muito mais rica do que
poderia supor. Sim, estamos presos a muitos condicionamentos e talvez nesta
vida jamais saberemos de coisas que poucos souberam em situações e
circunstâncias especiais. Dizia Jacques: “A vista é um instrumento milagroso
que nos oferece todas as riquezas da vida física. Mas nada ganhamos no mundo
sem pagar por isto, e em contraposição a todos os benefícios que a vista nos
traz somos obrigados a ceder outros de cuja existência nem suspeitamos. Essas
foram as dádivas que eu recebi com tanta abundância”.
Jacques viveu coisas incríveis.
Ganhava corridas de meninos com visão perfeita, sabia guiar-se pelo vento em
seus ouvidos. Já na Resistência, sempre que suspeitavam de alguém que pudesse
traí-los, levavam a pessoa à presença de Jacques que só de ouvi-los em seu tom
de voz sabia se era confiável ou não. Nos campos de prisioneiros, foi quase o
único sobrevivente. Ele descreve coisas inimagináveis em sua estada lá.
Algumas coisas que ele disse:
“Eu
era sustentado por uma mão. Estava coberto por uma asa ... Eu estava livre para
ajudar os outros, não sempre, não muito - à minha própria maneira, mas eu podia
ajudar. Podia tentar mostrar aos outros o que deveriam fazer para continuar
vivendo. Podia dirigir-lhes o fluxo da luz e da alegria que ficara tão
abundante dentro de mim.”
“Acabei
por descobrir em Shakespeare um espírito tão complexo como a própria vida ...
Ele era maior que os outros, pois tinha o que eu havia procurado inutilmente em
toda a parte do teatro clássico francês: o excesso divino”.
Certamente Jacques também foi
agraciado com o excesso divino, pois um garoto que perde a visão não se refaz
assim com tanta naturalidade. Mas desde sempre ele contou com o tenaz exercício
da vontade, ausência total de preconceitos e disposição para amar, palavras
dele. Nada o detinha. Por mais cego que fosse, a luz continuava lá dentro dele,
mais serena do que nunca. Ele se dizia prisioneiro da luz. Estava condenado a
ver, que lindo! Que lindo!. Todavia, como a vida é sempre inexata, depois de
sobreviver à guerra e seus sofrimentos, Jacques morreu num acidente de carro na
França, em companhia de sua esposa. Mas viveu intensamente guiado pela luz que
ele nunca deixou que se apagasse.
Bem, voltando à minha cirurgia, logo
fui despertada de minhas lembranças e reflexões pela enfermeirinha gentil que
me levou à sala onde os médicos mascarados me esperavam. Respirei fundo e me
entreguei com coragem àqueles competentes profissionais que me livraram dos
óculos. Entendam, agora depois de me lembrar de Jacques e sua luz, decidi que
os óculos representariam para mim meras escamas que me impediam de ver coisas
que não eram visíveis sem a luz interior.
Dessa
vez não foi preciso o medicamento na veia. Enfrentei de peito aberto, medrosa,
bobinha, mas sempre espantada com a vida que sempre nos surpreende. Pensei
comigo que houvesse o que houvesse, a luz estaria sempre lá, dentro de mim. Era
só abrir uma porta dessas que não se pode ver com os olhos físicos. Entre a
conversa dos diligentes médicos, ainda tive a graça de me lembrar de minha cara
amiga Santa Teresa de Ávila: “...e eu que pensava que podia enxergar apenas com
os olhos do corpo“.
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