sábado, 31 de dezembro de 2016

FELIZ 2017, SEJA LÁ COMO FOR



 





Mais um ano que se vai, mais um novo ano que vem. É claro que ao amanhecer do primeiro dia do novo ano, tirando a ressaca da noite de champanhes e comidas apetitosas seremos os mesmos, apenas um pouco mais velhos. Quando muito, trarei a lista de metas e projetos na primeira gaveta da mesinha do computador. E como o tempo agora passa aceleradamente por não sei qual fenômeno de aceleração planetária que já me disseram, lá para maio ou junho, certamente constatarei que as metas não saíram do papel. Ah, não vou prometer nada, vou vivendo desviando das dificuldades como se fosse uma velha nave aposentada e perdida no espaço, sendo atingida por meteoritos que surgem de todos os lados a uma vertiginosa velocidade. Palavra de honra que às vezes me sinto conduzindo minha vida dessa forma. Desvio aqui, desvio ali até que meus olhos vislumbrem algum planeta perdido, maravilhoso e absolutamente desconhecido, onde viverei feliz como sempre quis, tal qual em Pasárgada.
Já pensou? Pouso minha nave suavemente no tal planeta. O rei em pessoa vem me receber, e me garante que ali eu serei feliz. Leva-me a um palácio suntuoso e subimos uma escada em espiral até o topo, de onde a vista é a mais deslumbrante que já vi. Lembra muito a Terra porque a natureza é pródiga, exuberante, mas há qualquer coisa a mais que não consigo distinguir. Diz o rei, meu amigo, que aqui minha vida será uma grande aventura, nada de coisas banais, cada dia trará uma surpresa boa, uma notícia tão auspiciosa que pensarei que tudo não passa de um sonho feliz, mas é real.
Diz ainda o rei que poderei andar de bicicleta, mas confesso envergonhada que não sei mais como se anda nessa geringonça de duas rodas. Sabia, ah, mas já faz tanto tempo que não me lembro. Mas ele me rebate dizendo que aqui o tempo volta até quando a gente quiser, portanto saberei pedalar como quando era criança. Sendo assim topo subir até no pau-de-sebo, já perdi o medo de qualquer coisa. Menos de uma: montar em burro brabo! Isso não! Mas tomarei banhos de mar! Ah que delícia! Brincarei de espirrar água para o céu e as gotinhas se transformarão em diamantes que brilham radiantes banhados pela luz do sol quentinho e amigo.
De tardezinha eu me deitarei na beira do rio, e o rei já tratou com a mãe-d’água pra me contar as mais incríveis histórias de aventuras que no tempo de menina meu pai nos contava antes de dormir. Lá eu serei feliz como sempre quis. Nunca mais serei triste. Quando de noite me der vontade de chorar, o rei em pessoa virá me alegrar. E trará flores de cores primores que nunca vi antes. E me contará casos tão engraçados, mas tão engraçados que me farão rir, rir tanto, tanto, desses risos que não param nunca, que fazem a gente chorar de tanto rir. Lá eu serei feliz como sempre quis.
É o que eu desejo a todos vocês! Um 2017 em Pasárgada! Ou qualquer outro lugar dentro ou fora de nós, onde haverá risos mil e onde seremos todos felizes para sempre!          



sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

UM CONTO DE NATAL




 
  

            Sofia olhava atentamente para o parque de diversões. Via crianças e pais felizes. Pensava que não podia haver felicidade maior na vida do que andar naquela roda gigante ou na barquinha. Ah! Tudo devia ser bom!  Ela suspirou profundamente e se deu conta de que já era tarde. Sofia era uma menina de nove anos, muito pobre. Seu pai estava desempregado e a mãe trabalhava como cozinheira de um hotel elegante. Era uma mulher que quase nunca sorria. Celinha, amiga de Sofia, também era pobre, mas sua mãe, ao contrário da mãe de Sofia, era uma mulher alegre como ela só! Imensa de gorda, sentava-se junto das meninas e conversava com elas. Até tinha enfeitado um pinheirinho apanhado ali mesmo, pertinho da casa. Era dezembro, mês do Natal.
            Sofia não gostava do Natal. Ficava triste por causa dos presentes que nunca ganhava. Tudo bem que o Natal não era só presentes, era tempo de ser feliz, lembrando o nascimento de Jesus, que também havia sido pobre como ela. Ela sabia disso, mas Sofia queria presentes. Só um. E se Papai Noel existisse mesmo, alguma vez ele já teria trazido um presente para ela. Mas nunca, nunca trouxera. E ela tinha visto que Papai Noel era apenas um homem fantasiado. Foi naquele Natal em que o Velhinho, em pessoa, entregaria presentes para as crianças pobres lá na Prefeitura. Sofia ficou maluca para ganhar um presente. A mãe não quis deixar, disse que Papai Noel só existia para as crianças ricas. Sofia chorou e sob os protestos da mãe foi buscar seu presente. Quando chegou perto da Prefeitura, ficou desanimada. Não sabia que existiam tantas crianças pobres assim. Mas foi furando gente de toda a maneira até chegar perto do Papai Noel. Foi então que a confusão começou.  Crianças e mais crianças avançavam em direção ao saco de presentes e pulavam em cima do Papai Noel que, nessa altura dos acontecimentos, estava bravo e xingava todo mundo. No empurra-empurra a barba branca e o bigode caíram. Foi um vexame, quase uma tragédia. Sofia caiu e por pouco não foi pisoteada. Voltou para casa chorando e pensando que a mãe tinha razão. Não existia Papai Noel. Mas era criança e no dia seguinte, sarou com o abraço afetuoso da mãe de Celinha que lhe deu uma cocada ainda quentinha. Tudo bem. Papai Noel não existia, mas ainda assim Sofia queria um presente.
Na semana seguinte, a professora avisou que o Papai Noel estaria na escola e pediu que as mães também fossem. A mãe de Sofia não quis ir, mas acabou cedendo e foram no dia marcado. Só que a fila era muito grande. Se ao menos a mãe tivesse saído mais cedo do serviço. Sofia não se aguentava de tanta ansiedade. Mas bem na hora dela, os presentes acabaram. Ela sentira vergonha, o rosto queimava de vermelho, como se tivesse feito alguma coisa errada. Papai Noel, dessa vez, não ficou bravo, até lhe deu um abraço. Voltaram para casa, mãe e filha, em silêncio. Sofia sentia uma grande vontade de chorar, mas teve medo da mãe. As lágrimas saíam sem que ela pudesse controlar. Foi direto para a cama e chorou tanto, tanto, que pensou que fosse morrer de tanto chorar. A mãe, silenciosa e séria como sempre, nem veio lhe dar um abraço. Só mais tarde Sofia compreenderia que o sofrimento amolece o coração das pessoas, mas algumas vezes endurece e para sempre. Naquela noite, ela sonhou que estava em um grande parque de diversões e que tinha todos os brinquedos só para ela. Que sorria, que ria muito mesmo, sentindo o vento no rosto, enquanto a barquinha subia cada vez mais alto. Engraçado, tudo em câmera lenta, como num filme em que ela tinha visto sobre uma menina que se perdia dos pais e quando finalmente os encontrava, ia correndo lentamente, com uma música linda de fundo. E desde então, para Sofia, câmera lenta virou sinônimo de felicidade. Sofia acordou pela manhã, lembrou-se do sonho com carinho, mas jurou que nunca mais iria para nenhuma fila de Papai Noel.
            Era domingo outra vez. Sofia foi chamar Celinha para irem ao parque. Celinha não quis. Sofia foi sozinha e lá ficou com a cara grudada na grade. Não sabia, então, que era observada pelo dono do parque, seu Nicolai, um russo gordo, com cabelos, barba e bigode brancos. Ele chegou perto de Sofia. Como é o seu nome?  Sofia -  Sofia, você quer brincar um pouco no parque? - Eu? Que-quero, mas não tenho dinheiro. - Eu sei, mas eu sou o dono do parque e no meu parque, anda quem eu quiser. Sofia não podia acreditar. Entrou pelo portão principal, como se fosse uma princesa.
            A princípio, ela foi entrando timidamente, mas pouco a pouco, foi pegando o jeito. Foi na barquinha, que subia cada vez mais alto, mais alto. Sofia sentia um arrepio, uma felicidade estranha, como nunca então tinha sentido. O vento batia em seu rosto, como no sonho. Agora ela ria alto, tão alto quanto a barquinha. Lembrou-se de Papai Noel e dos presentes. Não tem importância, eu mesma vou comprar um presente quando crescer. E vou pedir para embrulhar naquele papel verde brilhante com fita vermelha, como nos filmes americanos. De repente, Sofia sentiu que a barquinha estava balançando em câmera lenta. Será? Deve ser impressão. Mas estava, podia jurar que estava. Se fosse um filme, as pessoas poderiam ver seu sorriso, sua cabeça se movendo lentamente com os cabelos soltos ao vento. Não viu que Nicolai a observava lá embaixo. Com as mãos, tentava proteger os olhos da claridade e de vez em quando enxugava as lágrimas. Lembrava-se da filha que perdera há tantos anos. É Natal, ele pensou.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

BONECA DE MENINA





 
 
A última boneca que tive foi uma boneca da Estrela, imensa, linda, com um cheiro característico de borracha. Tinha cabelos amarelos, olhos que se abriam e fechavam em pestanas longuíssimas. Havia uma bolsinha tão pequena e tão lindinha presa com correntinha dourada no seu braço. Aquela bolsa ... ah ... aquela bolsa povoou meu imaginário de menina, ficava imaginando o que poderia conter. Na verdade não continha nada, era só de enfeite, mas para criança, tudo é possível porque ela crê. E a roupa? Meu Deus, era cor de rosa, de organza, tecido duro e espinhudo, com fiozinhos dourados e babados de um rosa mais delicado. Minha boneca não era deste mundo, do meu não. Era como se uma princesa tivesse se dignado a visitar uma menina.
Minha mãe saiu e me deixou tomando conta de minha irmãzinha mais nova, menininha de seis meses que já ficava sentadinha, balbuciava coisinhas, ria e chorava. Ela dormia. Foi então que tive a ideia de vestir o vestido de minha boneca na irmãzinha. Foram duas operações, a de despir a boneca que foi a mais fácil e a de vestir na irmã, operação complicadíssima. Esperei que ela acordasse. Primeiro vesti pela cabecinha, mas os bracinhos, que dificuldade! Minha irmã começou a reclamar do jeito que podia, choramingava, batia os bracinhos, não cooperava na brincadeira. Coitadinha, a organza espetava e ela fazia beicinhos tentando me mostrar que não era sua roupa. Finalmente consegui. Sendo moreninha, pareceu que o rosa ficou mais lindo ainda que na minha boneca. Levei a menininha na frente do espelho para ver como tinha ficado linda, mas ela não se reconheceu.
Até que, enfim, minha mãe chegou. Vinha da reza com as vizinhas. Teve a maior surpresa. Riu com gosto, achou a caçulinha linda, saiu gritando para as vizinhas antes que entrassem em casa. Elas também riram muito. Só Raquelzinha não achou graça, mas já estava mais aliviada com a mãe que chegava para salvá-la.
Saudade da minha boneca, saudade de quando a Raquel era menininha, saudade da minha mãe quando ria com gosto!

THOREAU





 


Estive lendo sobre Henry Thoreau e acabei achando o cara genial. Tudo começou com uma mensagem que recebi de minha prima Lígia que também é uma pessoa genial, uma filósofa.  Com uma sensibilidade ímpar esta prima tem me ensinado, melhor dizendo, tem me presenteado com muitas coisas preciosas. Ela me enviou uma foto que tirou de sua janela, uma foto deslumbrante com muito verde. E me relatou que ao se deparar pela manhã com aquela vista cotidiana lembrou-se de Thoreau. Na verdade nada era novo. A vista está lá todos os dias, as árvores que se deixam balançar pelo vento, e que recebem agradecidas a chuva que cai do céu. Mas há dias que alguma porta dentro de nós se abre e nós percebemos a beleza da natureza e ficamos estupefatos. Deveríamos nos surpreender todos os dias, mas geralmente isso não acontece. Desgraçadamente somos corrompidos pelas coisas mundanas e deixamos de perceber que a beleza está por aí, de graça, ao alcance de nossas mãos ou de nossos olhos, posto que já sabemos que a luz verdadeira e a mais exata está dentro de nós.  
Voltemos ao Thoreau. Nasceu no início do século XIX, foi escritor, ensaísta, ativista, ecologista nato num tempo em que esta palavra não era usada, tampouco se cogitava sobre o desgaste do planeta. Adepto de uma vida simples e natural, ele dizia: “Nunca teremos contemplado suficientemente a natureza.” Certamente que uma vida é muito curta, algumas curtíssimas, para contemplar tanta beleza. Mas o que de fato precisamos não é de quantidade de vida. Deus sabia o que fazia quando nos deu esta vida rápida, cada um com a sua para fazer o que lhe aprouver neste curto tempo de algumas décadas. Entretanto, tudo será inútil se não aprendermos a afinar nossos sentimentos, a crescer por dentro, a aprender a demorar um pouco mais o olhar para a natureza que é a nossa verdadeira casa. Perceber a riqueza que nos cerca pode desenvolver em nós uma boa cota de humanidade, pode nos tornar pessoas melhores, capazes de sobreviver aos momentos difíceis a que todos estamos sujeitos neste mundo caótico, cruel e belo.

domingo, 11 de dezembro de 2016

LOURO, 100 ANOS DE CURTIÇÃO




 


            É sabido que os papagaios são adoráveis aves inteligentes, sociáveis, marotos, canhotos que seguram o alimento com o pé esquerdo, às vezes bocejam, manifestam ciúmes, repetem e imitam o que as pessoas falam. Tudo bem, mas igual ao Louro, nunca vai existir. Que assim o dissesse a Samaria, empregada antiquíssima de certa família no início do século XX. Ela servia a família na fazenda com uma fidelidade inigualável e amor genuíno, aliás, o mesmo amor com que criou seus próprios filhos ali mesmo, todo mundo junto debaixo do mesmo teto. Foi a Samaria que apareceu um dia com um papagainho tão pequeno que mais parecia um filhote de passarinho. Começou a chamá-lo de Louro e o nome ficou. Assim me contaram.
Pois não é que o Louro reinou por cem anos naquela família? Ele não só alegrava as crianças e os adultos como interferia nos assuntos familiares, religiosos, questões financeiras, conflitos da alcova, enfim, em tudo. O papagaio era o centro das atenções. Fazia ar de debochado, dedurava o garoto que mentia para a mãe, caía duro para trás de tanto rir de alguém, caçoava das visitas e até do padre. O mais incrível é que rezava o terço com a Samaria. Por Deus, o papagaio parecia gente.
            Dizem que os papagaios vivem no máximo oitenta anos. O Louro viveu cem, também não era para menos, um papagaio tão especial como ele tinha que ter sido diferente dos outros. Considerava a Samaria sua melhor amiga, e ela assim também o considerava. Conversava com ele como se ele entendesse tudo, e quem poderia dizer que não? Se ela dizia: xiii Louro, vai chover, ele respondia: vai sim, vai sim. Quando eu disse que ele rezava o terço com a Samaria, talvez tenha exagerado um pouco, mas é certo que depois da Ave Maria, o Louro respondia: Santa Maria, amém. Isto ele falava sim senhor! Assim ouvi dizer.
O pessoal da casa se divertia em provocar o Louro na hora das refeições, principalmente as crianças. O papagaio ficava dentro de um viveiro imenso dentro da imensa cozinha que era de chão batido caiado de branquinho. E lá o Louro também provocava a família. Se a matriarca dizia para um filho: fica quieto e come menino, o Louro dizia lá do canto dele: come menino, come menino. E alguém retrucava: Cala boca, Louro! Todo mundo ria e o papagaio ria pra valer. Pra resumir, o Louro era a alegria da casa. Acompanhou gerações em cem anos de pura curtição. Viu gente nascer e morrer, e lá estava ele vivendo mais do que todo mundo.
Quando morreu certo tio da família, sujeito resmungão e desafeto do Louro, tiveram que levar o viveiro e papagaio pra longe da casa porque o Louro não parava de gritar: vai tarde, boboca, vai tarde, boboca ... Como é que pode?
Mas o vexame maior foi com o padre que ia sempre visitar a família. Ninguém sabe de onde o Louro tirou essa ideia, mas ficava gritando: “o padre quer casar, a benção seu padre! O padre quer casar, a benção seu padre!, O padre quer casar, a benção seu padre! ...” e tudo isso sem parar, repetindo, repetindo até que a Samaria tirava o Louro do viveiro, e falava: “cala a boca, papagaio sem-vergonha, descarado, debochado, seu excomungado! Eu ainda te torço o pescoço, é hoje!”. O padre fazia que não ouvia, e os velhos da casa falavam alto para encobrir a fala do Louro.     
            Contavam que o patriarca tivera um filho fora de seu casamento e que havia tentado esconder o fato da mulher. Só que quando ela soube do acontecido, pôs o velho por diante para fazer o que era certo. Neste meio tempo, o sujeito morreu tragicamente, e o patriarca, consumido pela culpa, mandou celebrar centenas de missas por alma dele. Sem que ninguém ousasse falar o nome do filho morto, o Louro passou a gritar “Cupertino, Cupertino”! várias vezes por dia. E quando o patriarca chegava à cozinha, o papagaio mexia com ele, dizendo: “papai, papai”. O velho não teve dúvidas, passou a acreditar piamente que o papagaio era uma encarnação do filho e passava as tardes ao lado do Louro, desculpando-se por não tê-lo reconhecido. A Samaria mexia os paus no fogão à lenha e balançava a cabeça como quem diz: “Seu Tonico endoidou”.
            Seu Tonico morreu, a Samaria morreu, meus pais morreram e o Louro completou cem anos. Depois da morte da Samaria, dizem que o Louro manteve a cabeça baixa e os olhos fechados, sem comer nem beber água. Guardou três dias de luto. Foi melhorando devagar até que ficou feliz novamente. O patriarca só faltou levar o Louro pro quarto, o que a matriarca não aceitou de jeito nenhum. Assim me contaram.      

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O QUE O TEMPO NÃO APAGA




            A década era de 60, e nós, meninas. Eu talvez, quase certo, era mais velha. De repente ela entrou em minha vida, ou melhor, eu entrei em sua vida, e sem sua permissão, palmilhei cada centímetro de sua personalidade, de seus sentimentos e até de seus pensamentos. Secretamente, sem trocar uma palavra, e sem nada compreender, partilhávamos sentimentos semelhantes. Sua vida era importante para mim, mas só fui perceber isso agora, há um ou dois anos quando nos tornamos amigas no Face. Engraçado, o Face tem disso, entre tantas exibições hollywoodianas, inclusive as minhas, ele une pessoas que não se veem há muitos anos.  
            Bem, na verdade eu nunca mais a tinha visto. Embora morássemos na mesma cidade, nunca nos encontramos na rua, e acredito que mesmo que tenhamos nos topado em alguma esquina, não nos reconheceríamos, nem eu a ela, nem ela a mim. Afinal lá se vão cinquenta anos. Mas nunca a esqueci. Isso não. Volta e meia quando os fantasmas do passado assomam à minha mente e me assombram, eu me lembro dela, e viajo no tempo. Ah, o tempo! Essa curiosa invenção de Deus que de tudo faz um pouco, quero dizer, o tempo. Ele cura feridas, ou pelo menos nos ajuda a conviver com elas, ainda que as cicatrizes permaneçam eternamente. O tempo passa, deixa marcas em nosso corpo, em nosso rosto, mas há uma coisa que ele não consegue fazer: expulsar a criança que ainda existe e mora em nossas entranhas, em algum recôndito lugar de nosso ser.
            Eis que no lançamento do meu livro há poucos dias, ela vem ao meu encontro, e eu, entre surpresa e encantada me apressei a recebê-la. E o abraço que entre nós meninas não houve, fosse porque não nos ensinaram que os abraços curavam, fosse porque ... por que? Não sei. Digamos que simplesmente não sabíamos que os abraços existiam, era só estender os braços e pronto. E se assim tivéssemos feito, teríamos trocado afeto, ternura, entendimento, amor. E teríamos feito uma descoberta surpreendente e preciosa para aqueles duros tempos antigos: o abraço cura, o abraço, conforta, o abraço consola. Os adultos nos olhariam com estranheza, e quem sabe teriam experimentado longe de nossos olhos aquela maravilhosa experiência do abraçar.
            Enfim, o abraço que entre nós meninas não houve, aconteceu depois de uma vida  inteira. E como foi bom! Como fiquei feliz ao abraçá-la! Pude enfim concretizar um gesto que poucos entenderiam, talvez apenas nós. Ao abraçá-la percebi que o tempo não apagou de meu coração as lembranças que carrego. Digo coração porque a mente é impessoal demais, ou exata demais para carregar sentimentos, e há lembranças que só o coração pode conter. O coração guarda tesouros imensuráveis. Minha querida Cida, guardo em meu coração a lembrança de sua franjinha curtinha, seus olhinhos redondos, seu jeito silencioso de ser e seu vestido de Primeira Comunhão.

            Obrigada, querida, por me honrar com sua presença e me emocionar com essas lembranças. Obrigada pelo abraço que atravessou o tempo, idades, mundos e galáxias, unindo as mulheres que somos agora às meninas que fomos um dia. Que a vida lhe seja generosa sempre. Você merece.            

domingo, 4 de dezembro de 2016

ABORTO - sempre re nasce a velha questão




            Causou-me espanto a notícia em 29/11 que a turma do Supremo decidiu que aborto até o terceiro mês não é crime. Invocam o direito “violado” da mulher sobre sua integridade física e psíquica. Para dizer a verdade não me causou espanto não. Já não é de hoje que a lei protege a mulher e não a criança que se desenvolve em seu útero. Evidentemente que mãe e filho são igualmente importantes, mas o bebê ainda não nascido é ignorado, desprezado e descartado. Assim, como bem questionou uma amiga, então o bebê até o terceiro mês de gestação não é considerado gente? Ele não pode se defender, mas é condenado.
            Em nome do direito à vida, não é permitido que alguém mate seu semelhante, então eu não posso entender, eu nunca vou poder entender como tantas pessoas defendem que a vida já iniciada de um ser no ventre da mãe pode ser legalmente interrompida, ou falando de forma mais dura, pode ser legalmente assassinada.
            Todas as vezes em que uma criança já nascida e crescida é abusada de qualquer forma pelos pais ou qualquer adulto, as fotos logo vão para a mídia e a indignação é total. Da mesma maneira, quando um pequeno se encontra em qualquer ameaça de perigo, seja em uma enchente, ou na janela de algum prédio, movem-se mundos e fundos para salvar a criança. Logo, lágrimas são arrancadas quando lá vem o bombeiro também chorando com o garotinho nos braços e aplausos explodem de todos os lados. No entanto, por que toda a raça humana não se une e não se move para salvar a vida da criança que ainda não pode ser vista, mas já existe dentro do corpo da mãe? Será que se mata tão facilmente porque o feto não chora, não grita, e, não sendo visto dilacerado, a consciência é aliviada? Faz sentido. Quando minha mãe cortava o pescoço do frango para depená-lo e prepará-lo para o almoço, nós crianças ficávamos indignadas com ela, ao que ela nos respondia: “não quero ver ninguém comendo frango na mesa, tá combinado?”. E na mesa o frango já cozido e cheiroso era tão diferente daquele que esperneava aflito. Já não nos lembrávamos de seu sofrimento. O que os olhos não veem o coração não sente? Então é assim?
            Não quero, não posso e não devo fazer nenhum julgamento. O que posso saber do sofrimento de uma mãe que já sabe que seu filho não nascerá normal, engraçadinho, esperto, inteligente e brilhante como os filhos dos outros? É um sofrimento extremo e incompreensível, mas de fato não posso saber a dimensão real do sofrimento que a mãe sente porque só ela sabe. Cada um é que sabe de suas dores e de suas cruzes. O que sei é que há uma vida indefesa que será assassinada. “Mas que espécie de vida esta criança terá” perguntam. Eu não sei. “Não será melhor que morra agora do que viver uma vida que não é vida?” Eu não sei. São perguntas que não sei responder, só sei que são questões dolorosas de abordar, quanto mais viver. Alegam que não se é possível falar com certeza o momento exato de quando a vida começa, ou dizendo de outra forma, quando o feto se torna um ser humano, ou para quem acredita em Deus, quando ele recebe uma alma. Para mim, é a partir da concepção, quando um ser novo se forma a partir dos que se uniram com ou sem a intenção de darem a ele uma vida. E há que se pensar que um dia este ser terá um rosto que poderá ser olhado e acariciado, um ser novo que tem direito a ter seus próprios direitos, assim como a mulher grávida se diz com o direito sobre seu próprio corpo. Ora, o que não pode é ela ter direitos sobre o corpo de outro ser, o do bebê que já vive dentro de seu útero. Este momento exato de quando a vida começa sempre foi e será mistério, não nos compete saber a exatidão dos mistérios porque já não serão mais mistérios. O que sei é que “a vida humana participa da vida de Deus”, como dizia o Cardeal Carlo Maria Martini.
            Mas meu Deus, mesmo que não se acredite em Deus ou na alma, é legal matar outro ser humano? Nunca vou poder entender.    
            Há mulheres que optam pelo aborto simplesmente porque não querem mais engravidar e que saem em defesa de outras indecisas incitando-as a fazerem o aborto. Dizem que este tal sofrimento pelo conflito de ter feito um aborto não existe, que elas próprias nunca sentiram, que se trata apenas de um argumento religioso que induz ao conflito. Porém sabemos que são feridas tão profundas que raramente se fecham, na verdade quase nunca. Sempre que estou presente quando alguma mulher conta que passou por certo perigo de vida, invariavelmente ouço que a primeira coisa que pensaram foi: “meu filho, minha filha”, naquela preocupação primeira e imediata que tem toda mãe. Como então separar este amor pelo filho nascido do não nascido ainda? Logo a mulher a quem foi legado hospedar, cuidar, proteger e amar o ser mais frágil e mais indefeso que existe! Para mim, abrigar e amar um bebê que se forma no ventre é a maior honra e o maior privilégio que uma mulher pode ter. 
            Evidentemente que há casos terríveis como mulheres que são vítimas de estupros. Neste caso eu sei que é quase impossível que tais mulheres possam sentir amor pela criança em seu útero. Sei que há mulheres que procuram fazer o aborto porque são praticamente obrigadas pelos maridos maus e violentos que as ameaçam diariamente. Sei que há mulheres pobres que abortam porque não têm mais como sustentar sozinhas tantos filhos. Sei que há adolescentes viciadas em drogas que abortam porque talvez tenham sido expulsas de casa. Sei de tantas coisas tristes que levam à prática do aborto, mas também sei que não é possível que a criança inocente que já é um ser com vida seja punida com a pena de morte. 
            Há muito tempo atrás uma conhecida nossa, uma mulher já com quatro filhos vivendo numa tremenda dificuldade financeira sofreu um acidente terrível, quebrou braços e pernas, teve o baço perfurado, bateu a cabeça, foi operada, ficou em coma e sei lá mais o quê. Mas foi se recuperando, e um dia chega o médico no quarto em que ela estava e lhe dá uma notícia surpreendente: “a senhora está grávida, apesar de tudo o que passou, apesar de todas as drogas que lhe demos, de todo o sangue que perdeu. Acredito que seja o caso de tirar esta criança porque a senhora está fraca demais para aguentar esta gravidez, e além disso, com toda a certeza, se o bebê não morrer antes, vai nascer com sérios problemas físicos e mentais de toda a espécie”. A mulher que nem sabia que estava grávida foi inundada de amor e compaixão ao saber que seu filhinho havia sofrido tudo aquilo junto com ela, e foi peremptória: “Nem pensar! Nunca! Ninguém vai tirar meu filho”. Pois a gravidez foi adiante, e nasceu seu quinto filho homem, perfeito, um garoto sensível e esperto. Naquela época não se era possível ainda detectar problemas antes do nascimento. A mulher correu todos os riscos, ela já amava seu filho. O médico ficou de queixo caído.
            Mas as histórias são diferentes, cada vida é uma história diferente. Carregar uma gravidez já sabendo que o filho é doente, que não haverá cura, que dia após dia força e coragem terão que ser arrancados dolorosamente do coração e que a vida será um mar de transtornos, é uma tristeza, eu sei. Mas o prêmio virá, acredite. Este amor é para todos, mas feliz é aquela que se dispõe a aceitar. O que parece ter sido negado a esta mãe um dia voltará de outra maneira. “Sua Majestade vos dará por outros caminhos o que vos tira por este”, já nos dizia Santa Teresa. Esta vida é um mistério. Não queiramos entender. Apenas respeitemos a Vida e Ela surpreenderá a todos nós.