sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

POTENCIAL SOB PRESSÃO




 
            Na semana passada, quando estava no salão, entre cheiros de esmalte e com os pés descansando em águas tépidas, assisti a uma propaganda no celular da minha manicure sobre um curso de desenvolvimento pessoal, liderança e tal baseado na neurolínguistica. São desses cursos que mudam radicalmente para melhor a vida de qualquer pessoa de qualquer idade, trazendo à tona todo o potencial guardado e escondido que todos possuem. Bem, eu nunca participei desses cursos, mas tenho curiosidade para saber como seria comigo, embora eu já tivesse uma amostra disso. Remontei ao início dos anos 80, quando fui fazer um curso de caixa em Brasília. Naquela época, fazer um curso de caixa implicava conhecer muito mais do que simplesmente pagar e receber. Hoje em dia acho que os cursos são feitos na própria agência. Mas era assim e lá fui eu, morrendo de medo.
Foram muitos dias de aulas em várias áreas como Grafoscopia, Psicologia, Matemática, e outras que não me lembro. Havia uma área que penso que devia se tratar de Relações Humanas, coisa desse tipo. Meus colegas eram funcionários do BB de todo o Brasil, de Norte a Sul, de todos os cantos imagináveis e inimagináveis, capitais e interior. Muitos eram extrovertidos, simpáticos, brincalhões, outros mais comedidos e outros ainda quietos, preferindo a última fileira. Eu, uma bobinha do sul de Minas, estava definitivamente enquadrada neste último grupo. Com a idade melhorei um bocadinho, mas ainda sou muito assim. Vamos lá, um belo dia, o tal professor de Relações Humanas inventou uma dinâmica com o grupo dividido em equipes. Que sofrimento! Pensei! E foi proposto o seguinte: teríamos dez minutos, não mais do que isso para montar uma peça de teatro. Cada equipe teria que montar a sua e apresentar. Como? Uma peça de teatro montada e apresentada em dez minutos? Seria possível?
Passaram-se os primeiros cinco minutos e todos conversando displicentemente, sem se importar com a tarefa e nem com o tempo. Foi me dando um frio no estômago, eu olhava aflita para o relógio e pensava, “meu Deus, não vamos conseguir cumprir a tarefa”, e responsabilidade sempre foi tudo pra mim! Quando vi que nada saía, eu tomei a frente num ímpeto que me era até então desconhecido, algo como um furacão que surge repentinamente ou um vulcão adormecido que explode. Eu disse: “gente, vamos lá! Temos que fazer uma peça, temos que montar uma peça!” Todos olharam para mim curiosos. E eu saí valente distribuindo os papéis e falas, fui inventando um enredo qualquer, fui ensaiando cada um em seu papel. Nos últimos segundos chegamos a ensaiar grotescamente a minha peça. Eu no papel principal, é claro! Eu merecia, não é? A história era mais ou menos a de uma mulher que se despedia do marido toda carinhosa e em seguida entrava em cena seu amante igualmente carinhoso. Não sei sinceramente de onde fui tirar essa ideia, talvez algum quadro de programa cômico daquela época. Havia uma garota que fez um papel do qual não me lembro também. Meu amante era um nordestino arretado que adorou a brincadeira e fez o papel exagerando tudo. A equipe achou graça e rimos muito. Tudo foi feito em quatro minutos. No tempo exato, soou o apito do professor e ele pediu que as equipes se apresentassem. Resultado: apenas a nossa havia cumprido a tarefa à risca. A turma toda aplaudiu. Eu dei o máximo de mim no papel da mulher traidora, tipo assim Fernanda Montenegro em seus melhores dias e arranquei efusivos aplausos. Digna de Oscar.
Ao final da aula o professor perguntou se tínhamos alguma noção por que tivemos que fazer aquilo. Não sabíamos de nada e ele explicou: “pessoal, não se trata de caçar talentos, se bem que tem gente aqui (apontando pra mim) que está na profissão errada,  devia se apresentar na Globo! O que eu quis ver é como estava o espírito de iniciativa e liderança de vocês. Não importava o que apresentassem, não era a atuação de artistas, mas de pessoas que sabem improvisar em tempo escasso, e fazer acontecer. A única equipe que fez foi a deles, parabéns para eles”. Palmas e palmas. (Para mim!!!)
E eu fui para o hotel simplesmente sentindo-me encantada com a vida, pensando, “eu sou uma líder, eu tenho iniciativa”, constatações e afirmativas que no momento valiam mais do que estar de posse de tesouros materiais preciosos. Sentia-me feliz, não conseguindo tirar dos lábios um sorriso amigo e matreiro!. Nunca mais me esqueci disso, afinal como esquecer o momento mágico em que descobrimos que dentro de nós mora uma outra destemida que é capaz de quebrar paradigmas?. Nascia meu ideal de Amelia Earhart que ansiava por rasgar os céus em voos maravilhosos. Marcou. Fica registrado aqui. Sou uma pessoa de iniciativa, sou uma líder! Enquanto leio este último final, sei que o sorriso amigo e matreiro está em meus lábios! Se minha mãe pudesse ler isso agora estaria dizendo: “como é bobinha ....” 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O DESABRIGADO



            Certa vez tive que passar uns dias em Belo Horizonte. Aproveitando uma folga fiz uma longa caminhada até chegar a uma praça, onde parei para descansar. Bem, estava com muita sede. Enquanto esperava que vagasse algum banco engoli quase a metade da água que minhas entranhas ressequidas imploravam de joelhos. Agora, com mais calma, eu deixava que o restante descesse gostosamente pela minha garganta, refrescando o calor intenso que eu sentia. Olhei em volta. Praça cheia, crianças gritando e correndo e eu procurando um lugar para descansar. Avistei um banco onde estava um homem aparentando ser um solitário desabrigado. Sua aparência era praticamente a de um indigente. Roupas sujas, barba comprida, um sem teto, um sem nada. Confesso, envergonhada, que corri os olhos procurando por outro banco. Mas lembrei-me dos evangelhos, dos salmos, do Eclesiástico, enfim, da palavra que diz para não desviarmos os olhos dos pobres. Entenda, ou não entenda, não querendo justificar, mas justificando, simplesmente sua aparência não era agradável. Para abreviar, decidi que não poderia desprezar quem quer que fosse. Fui até ele.
- Posso me sentar aqui?
Perguntei receosa, já esperando que ele fosse em seguida me pedir dinheiro. Puro preconceito meu. Ele me respondeu sem me olhar e um tanto seco:
- Pode se sentar, o banco é livre, é da praça, não é meu.
Agradeci, optando pelo silêncio depois de constatar que o indivíduo não era fácil, e neste caso, certa ou toda prudência era aconselhável. Mas para minha surpresa, ele se desarmou, como um guerreiro que relaxa e recolhe sua espada ao perceber que não está diante de um inimigo. Concluí que meu silêncio deve ter soado ultrajante, porém benéfico, pois o homem reagiu. Porém, mais surpresa fiquei eu com sua pergunta:
- Será que a camada de ozônio é de fato uma verdade ou mais uma dessas mentiras que a mídia poderosa tenta inculcar nas mentes despreparadas?
            Despreparada estava eu para esta pergunta surpreendente, com estas palavras tão bem colocadas, com o verbo “inculcar”, tão pouco usado no dia a dia por pessoas com aparência bem mais primorosa do que tinha este rapaz. Novamente, puro preconceito meu. Primeiro achei que um indigente fosse logo me pedir dinheiro, e segundo deduzi erroneamente que ele não fosse capaz de uma linguagem culta e correta.
Como ele continuava olhando para frente, fiquei em dúvida se ele havia se dirigido a mim ou a ele próprio, como nessas reflexões que de vez em quando costumamos fazer em voz alta para nós mesmos. Como continuei em silêncio, ele voltou seu rosto para mim com uma expressão indagadora. Senti este seu movimento e voltei-me para ele que agora me olhava diretamente. Foi aí que me deparei com a profundidade extrema que ele trazia nos olhos cansados, e confesso que nunca vi olhos mais profundos.
            Respondi sua pergunta na maior sinceridade possível:
- Não sei, não sei mesmo. O que sei é que somos enganados constantemente e eu sempre caio nessa porque não tenho o espírito crítico, o senhor compreende? Sou mais ansiosa e não paro para refletir. Sei que nesta história do nosso planeta há muitos interesses comerciais por trás de tudo. Então é provável que seja tudo mentira. Ou não, quem pode garantir?
            Ele me escutou com atenção e depois de novo desviou seu olhar. Sua fisionomia  me fez lembrar o pai de uma colega de colégio, coisa de muitos anos no passado. Era um homem bom, sofrido, com as marcas da vida no rosto, tal como este homem, que não era exatamente um velho, mas um homem maltratado pela miséria e sofrimento, certamente. Quis saber de sua história, contudo preferi o silêncio. Peco muito por não perguntar nada a ninguém com receio de estar sendo intrusa e inconveniente. Não querendo me justificar, mas justificando, se ele quisesse, certamente teria me contado. E curiosa definitivamente eu não sou.
Depois de um tempo, ele saiu arrastando sua velha mochila, provavelmente com tudo o que tinha na vida. Não me pediu nada, apenas queria conversar, a seu tempo, a seu modo. Só me restou imaginar sua história, uma vez que provavelmente eu nunca mais o veria, como nunca mais o vi.

sábado, 14 de janeiro de 2017

MUDANDO O FOCO




  
 

            Em razão da grande enchente que ocorreu aqui em Itajubá há 17 anos, tivemos que levar meus pais para um apartamento enquanto a velha casa sofria uma grande reforma. Logo após a mudança, minha mãe começou a apresentar um comportamento estranho, e um exame apontou um provável início de demência. Infelizmente só mais tarde aprendemos que mudanças de casas e lugares podem ser desastrosas para pessoas idosas. Foi o início de uma fase cruel que tivemos que enfrentar. A demência nunca regrediu, sequer estacionou, só avançou cada vez mais. Talvez tivesse acontecido de qualquer maneira, quero dizer, se não fosse a mudança, algum outro fator desencadearia a demência, como uma cirurgia, um susto que fosse, no caso, a própria enchente que foi um acontecimento tão devastador. Fomos aprendendo com o que tínhamos pela frente, no dia a dia. Foi um duro caminho de pedras, mas até entre as pedras nascem flores, assim, não posso dizer que viveria tudo de novo, que choraria todas as lágrimas que tive que chorar, mas digo com certeza que foi um período profuso de aprendizado de amor e de ternura, pois não é no sofrimento que tiramos as mais belas lições?
            Bem, não existem manuais para a vida, apenas dicas de quem já passou pelo problema, e há coisas realmente importantes que podem ser aprendidas como não colocar o idoso debaixo de uma ducha forte, pois para quem está fragilizado com a idade e doença, qualquer água é uma cachoeira assustadora. Falar alto quando a pessoa está de costas também pode ser ameaçador. Enfim, realmente não há regras a seguir porque a vida nunca é exata. Estou falando isso porque num prazo curto de tempo vi dois exemplos de mudança de idosos que foram bem sucedidos.
            O primeiro caso foi de uma senhora, que já demente e muito triste, foi levada para o campo, para a casa da filha. Lá, entre as árvores, flores e chilreados de pássaros, a senhora acalmou-se, descobriu que podia sorrir novamente. Reconheceu os filhos, leu partes do livro da filha, lembrou-se de detalhes, ou seja, a mudança foi altamente positiva, talvez pela mágica da natureza que remexe com nossas mais longínquas e preciosas lembranças, trazendo à tona uma imaculada alegria infantil, como o ruído da chuva no telhado e vidraças ou o raio do sol entrando por alguma fresta da janela.  
            O segundo caso, mais estranho, foi de outra senhora, abatida pela morte do marido já há um ano. Não era demente, apenas já um pouco confusa pela idade e aparentemente refém de uma irremediável tristeza pela perda do companheiro. Cada acontecimento como Natal, Ano Novo ou aniversário ocasionava um transtorno em todo o sistema físico da senhora. A pressão subia, a respiração alterava, os sinais vitais ficavam comprometidos, e assim os médicos eram chamados, os procedimentos adotados até que tudo se estabilizasse. Todos os cuidados eram tomados de tal forma que ela não fosse afastada de sua velha casa centenária, com as lembranças do companheiro, da vida feliz de que estava ou esteve presente em cada canto. A televisão ficava sempre sintonizada no canal religioso que ela mais gostava. Mas com a última crise não foi possível mantê-la na casa. Foi trazida para o hospital e diretamente para a UTI.
            De forma surpreendente, ela abriu os olhos e se deparou com um universo totalmente diferente do seu costumeiro dia a dia. Tudo era estranho, as roupas das pessoas, as máscaras. Ela compreendeu que estava num hospital. Já se sentindo melhor com as providências médicas tomadas, passou a observar com interesse cada detalhe daquele estranho mundo. Comentou sobre a maneira como a limpeza do quarto era efetuada, conversou com as enfermeiras, contou algumas de suas histórias. Aos poucos seu semblante ficou sereno e ela se sentiu distante da casa povoada de lembranças. Seu bem estar era tão visível na companhia daquelas pessoas que até temeram levá-la de volta para casa.
            Isso também me fez lembrar de minha mãe certa vez passando a noite no Pronto Atendimento. Enquanto pingávamos de sono ao clarear o dia, ela já desperta, admirava o pátio interior do hospital repleto de plantas. E dizia: olha as plantas, que beleza!
            Tanto em um caso como em outro houve uma mudança de foco. A primeira senhora melhorou visivelmente com a benfazeja natureza, com a presença dos filhos que iam visitá-la como se fossem crianças em férias no campo. A segunda, afastada do ambiente que lhe angustiava pelas lembranças da perda do companheiro, sentiu-se talvez alegre como quando ia ao hospital para ter seus bebês.
            Cada caso é um caso, cada pessoa é única, e definitivamente não há regras para a vida. Contudo há uma regra infalível: quando pesarem na alma os supostos erros ao lidar com os pais idosos e dementes, há que se perdoar porque somos feitos muito mais de erros do que de acertos. Quase sempre erramos mais do que acertamos. Que bom que Deus sempre vê o coração.
            De outra forma, também podemos transpor para nossa própria vida a mudança de foco. Às vezes nos encontramos tão mergulhados nos problemas e nas preocupações que deixamos nos contaminar pelo medo e angústia. Tentar mudar o foco, isto é, focar outra situação, assistir a um filme, viajar ali mesmo para o campo, conversar com uma pessoa serena, brecar as palavras e pensamentos amargos. Não vamos mudar a situação, mas certamente uma porta dentro de nós vai se abrir por onde a esperança poderá nos visitar.             

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

RECOMEÇO






 Finalmente cheguei até o quarto da casa centenária que seria minha morada dali por diante. A senhora que andava com dificuldade me levou até lá, e deixou-me só com a chave na mão. Pelo meu silêncio ela percebeu que não seria necessário falar nada, talvez também porque o quarto era tão pequeno com tão poucos móveis à mostra, que qualquer palavra seria desnecessária. E eu que sempre fui tão falante a vida toda, queria e teria que me acostumar com o silêncio, regra penosa que eu mesma me impusera já há algum tempo. As palavras não ditas estariam sempre dentro de mim e a qualquer momento poderiam se transformar numa história encantada. Bastava querer. Quedei-me num silencio respeitoso como quando nos encontramos diante de coisas sagradas. Fechei os olhos e imaginei que histórias e que vidas teriam se passado ali em outro século. Só ouvi o silêncio. Silêncio sagrado.
Mas vamos ao quarto. Achei encantador. Não é por ser pequeno que não caberiam palavras para descrevê-lo, pelo contrário, ele era tão rico, tão precioso como um castelo reservado para pouquíssimas pessoas. Era meu castelo onde eu abrigaria as riquezas interiores que até então vinha tentando adquirir a duras penas, e pode acreditar, essas riquezas exigem muito mais trabalho do que as riquezas mundanas. Bem, o chão era de taboas corridas. Havia uma cama de solteiro, com uma colcha de tricô em quadrados coloridos, tal como minha mãe fazia e assim fez para mim e para minhas irmãs. Isso que falei de minha mãe e as colchas era algo tão distante dessa nova fase de minha vida que mais parecia pedaços de sonhos, desses que vêm à mente aos poucos. Engraçado, nossa vida é tão pequena, no entanto as lembranças que guardamos são tão milenares e longínquas que soam mais como a vida de outra pessoa em outra época ou mesmo histórias de algum livro antigo. Afinal, quantos anos nós podemos viver? Tudo passa num piscar de olhos e não nos damos conta de que em algumas poucas décadas podem caber eternidades. É que não vivemos apenas os acontecimentos, os fatos, mas abrigamos pensamentos e sentimentos que pesam, mas dão cor e sentido à vida.
 A cama era simples, daquelas antigas com cabeceira onde a gente sempre pendura alguma coisa. O travesseiro era baixo, desses bons para dormir sem dor no pescoço. Um criado-mudo ao lado da cama também era antigo. Havia uma portinha com um compartimento onde eu poderia guardar meus livros preferidos, meus fiéis amigos de longa data. Em cima do criado certamente eu levaria um copo com água na hora de dormir. Havia uma cômoda, algo como um baú antigo, só que com pés, e em cima estava disposto um oratório com um crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora. Dentro do baú eu teria uma coberta para os dias mais frios. E o armário de roupas? Ah este era “de gloriosa”, como dizia minha mãe, significando algo inusitado. Era um cabo de fora a fora preso por dois suportes de madeira. As poucas roupas que caberiam estavam exatamente dentro de minha mala pequena. É incrível como podemos viver confortavelmente com poucas roupas. Ao invés de meus três armários embutidos abarrotados de roupas de inverno e verão, de sapateiras com sapatos sem fim, finalmente eu teria poucas coisas, também um velho sonho que se tornaria realidade.   
Enfim, era um quarto espartano, digamos assim, quase uma cela de um convento. Não havia televisão, prova de fogo para mim, não havia ar-condicionado, nem comodidades do mundo moderno, mas havia uma janela pequena e a vista que se descortinava era deslumbrante. Encostas verdes e floridas, e o mar, meio escondido, mas não o bastante de forma que eu o admirasse sereno, brilhando à luz do sol daquela hora, infinitamente imenso, infinitamente antigo e infinitamente profundo. O mar é um mistério.  
Este seria o meu quarto dali por diante. Era um quarto simples, mas cheio de poesia, de cores, de minha vida com minha história igualmente simples, sem grandes feitos, também sem grandes expectativas, a não ser viver simplesmente e deixar a vida me ensinar o que eu não tivera até então tempo e coração para aprender. Dali por diante seria eu comigo, sem dependências emocionais e familiares. Sempre fiquei impressionada com as freiras que iam para tal ordem religiosa e cortavam definitivamente os laços. Eu seria capaz? Sim, agora sim, contudo eu sabia que não é a mudança exterior que mais importa, embora o lugar que eu escolhera fosse o mais indicado. Dentro da gente, as coisas não se passam assim tão facilmente. Eu poderia ir para qualquer lugar do mundo, mas sabia que teria que levar comigo o barro de que fui feita, o meu passado que eu nunca poderia mudar, e minha história. Ah por que insisto tanto em minha história? É uma história comum, mas é a minha história, por isso ela é tão bonita! 
Ali, naquele pequeno castelo encantado, vislumbrei minha nova vida, meu tão sonhado recomeço. De manhã, eu faria meu serviço voluntário. Este luxo eu poderia me dar, já aposentada e tendo uma renda modesta, mas suficiente para meus gastos. Eu iria a pé para o lar dos idosos onde trabalharia como acompanhante dessas pessoas, caminhando com elas pelos jardins, lendo contos e poemas que as fariam se lembrar de suas próprias vidas e suas próprias histórias, e tudo isso na varanda entre o céu e o mar, pois o vilarejo todo era no alto do penhasco. As pessoas que não mais tivessem lembranças, aquelas que a luz já tivesse se apagado em sua alma, embaçando seu olhar triste, eu apenas ficaria ao seu lado, acariciaria suas mãos e compartilharia seu silêncio.   
O resto do dia seria meu, só para mim. Poderia ler, escrever, poderia dormir, poderia pensar, refletir, ponderar. De tardinha eu sairia e me sentaria em um banco bem em frente ao mar admirando aquele descomunal gigante azul. Ouviria seus sussurros, sua linguagem misteriosa, o gemido das ondas, o canto e os segredos das sereias. O mar é mesmo um grande mistério.
Este era o meu plano. Não é certo que dizem que temos que ter projetos, que cultivar sonhos? Santa ingenuidade! Eu então não aprendera ainda que o homem põe e Deus dispõe? Quem disse que a vida segue do jeito que a gente sonha? Mas é preciso seguir e é preciso sonhar. Mesmo que tudo desmorone, é preciso recomeçar até que a morte se apresente.
Em pouco tempo eu conheceria as pessoas do vilarejo, pois é tão pequeno que todos se conhecem. Eu seria a estrangeira que veio de longe, com um passado desconhecido. Talvez pensassem que eu fosse uma escritora fugindo da fama ou em busca dela, ou ainda uma bailarina aposentada, uma vez que meu sonho de menina foi ser bailarina clássica que nunca fui. A gente tem que ir atrás dos sonhos, por mais distantes e impossíveis que sejam porque os sonhos que não se realizam e os desejos que não se concretizam são um espinho na carne, nos perseguem até o fim da vida. De ruim conservei minha magreza e minha cintura fina, como se meu corpo teimasse em acreditar que eu dançava. Mas a suposta bailarina já não pode mais dançar, seis décadas são um peso grande para os joelhos, embora a alma seja leve como uma pluma soprada ao vento. Minha alma dança livre e divinamente.
À noite, eu voltaria para o meu castelo, aquele quarto espartano repleto de silêncio e de poesia. De minha janela pequena, eu observaria as estrelas e a lua, escutaria o mar que nunca se cansa de repetir o mesmo sussurro cheio de mistérios. Minha vida estaria recomeçando, como a gente tem sempre de recomeçar, e eu me sentiria feliz como uma criança que pensa que o mundo é seu, e ele é, a gente é que nunca tem olhos nem ouvidos para compreender a beleza estonteante da vida.