Em razão da grande enchente que
ocorreu aqui em Itajubá há 17 anos, tivemos que levar meus pais para um
apartamento enquanto a velha casa sofria uma grande reforma. Logo após a
mudança, minha mãe começou a apresentar um comportamento estranho, e um exame
apontou um provável início de demência. Infelizmente só mais tarde aprendemos
que mudanças de casas e lugares podem ser desastrosas para pessoas idosas. Foi
o início de uma fase cruel que tivemos que enfrentar. A demência nunca regrediu,
sequer estacionou, só avançou cada vez mais. Talvez tivesse acontecido de
qualquer maneira, quero dizer, se não fosse a mudança, algum outro fator
desencadearia a demência, como uma cirurgia, um susto que fosse, no caso, a
própria enchente que foi um acontecimento tão devastador. Fomos aprendendo com
o que tínhamos pela frente, no dia a dia. Foi um duro caminho de pedras, mas
até entre as pedras nascem flores, assim, não posso dizer que viveria tudo de
novo, que choraria todas as lágrimas
que tive que chorar, mas digo
com certeza que foi um período profuso de aprendizado de amor e de ternura,
pois não é no sofrimento que tiramos as mais belas lições?
Bem, não existem manuais para a
vida, apenas dicas de quem já passou pelo problema, e há coisas realmente
importantes que podem ser aprendidas como não colocar o idoso debaixo de uma
ducha forte, pois para quem está fragilizado com a idade e doença, qualquer
água é uma cachoeira assustadora. Falar alto quando a pessoa está de costas
também pode ser ameaçador. Enfim, realmente não há regras a seguir porque a
vida nunca é exata. Estou falando isso porque num prazo curto de tempo vi dois
exemplos de mudança de idosos que foram bem sucedidos.
O primeiro caso foi de uma senhora,
que já demente e muito triste, foi levada para o campo, para a casa da filha.
Lá, entre as árvores, flores e chilreados de pássaros, a senhora acalmou-se,
descobriu que podia sorrir novamente. Reconheceu os filhos, leu partes do livro
da filha, lembrou-se de detalhes, ou seja, a mudança foi altamente positiva,
talvez pela mágica da natureza que remexe com nossas mais longínquas e
preciosas lembranças, trazendo à tona uma imaculada alegria infantil, como o ruído
da chuva no telhado e vidraças ou o raio do sol entrando por alguma fresta da
janela.
O segundo caso, mais estranho, foi
de outra senhora, abatida pela morte do marido já há um ano. Não era demente,
apenas já um pouco confusa pela idade e aparentemente refém de uma irremediável
tristeza pela perda do companheiro. Cada acontecimento como Natal, Ano Novo ou
aniversário ocasionava um transtorno em todo o sistema físico da senhora. A
pressão subia, a respiração alterava, os sinais vitais ficavam comprometidos, e
assim os médicos eram chamados, os procedimentos adotados até que tudo se
estabilizasse. Todos os cuidados eram tomados de tal forma que ela não fosse
afastada de sua velha casa centenária, com as lembranças do companheiro, da
vida feliz de que estava ou esteve presente em cada canto. A televisão ficava sempre
sintonizada no canal religioso que ela mais gostava. Mas com a última crise não
foi possível mantê-la na casa. Foi trazida para o hospital e diretamente para a
UTI.
De forma surpreendente, ela abriu os
olhos e se deparou com um universo totalmente diferente do seu costumeiro dia a
dia. Tudo era estranho, as roupas das pessoas, as máscaras. Ela compreendeu que
estava num hospital. Já se sentindo melhor com as providências médicas tomadas,
passou a observar com interesse cada detalhe daquele estranho mundo. Comentou
sobre a maneira como a limpeza do quarto era efetuada, conversou com as
enfermeiras, contou algumas de suas histórias. Aos poucos seu semblante ficou
sereno e ela se sentiu distante da casa povoada de lembranças. Seu bem estar
era tão visível na companhia daquelas pessoas que até temeram levá-la de volta para
casa.
Isso também me fez lembrar de minha
mãe certa vez passando a noite no Pronto Atendimento. Enquanto pingávamos de
sono ao clarear o dia, ela já desperta, admirava o pátio interior do hospital repleto
de plantas. E dizia: olha as plantas, que beleza!
Tanto em um caso como em outro houve
uma mudança de foco. A primeira senhora melhorou visivelmente com a benfazeja
natureza, com a presença dos filhos que iam visitá-la como se fossem crianças
em férias no campo. A segunda, afastada do ambiente que lhe angustiava pelas
lembranças da perda do companheiro, sentiu-se talvez alegre como quando ia ao
hospital para ter seus bebês.
Cada caso é um caso, cada pessoa é
única, e definitivamente não há regras para a vida. Contudo há uma regra
infalível: quando pesarem na alma os supostos erros ao lidar com os pais idosos
e dementes, há que se perdoar porque somos feitos muito mais de erros do que de
acertos. Quase sempre erramos mais do que acertamos. Que bom que Deus sempre vê
o coração.
De outra forma, também podemos
transpor para nossa própria vida a mudança de foco. Às vezes nos encontramos
tão mergulhados nos problemas e nas preocupações que deixamos nos contaminar
pelo medo e angústia. Tentar mudar o foco, isto é, focar outra situação,
assistir a um filme, viajar ali mesmo para o campo, conversar com uma pessoa
serena, brecar as palavras e pensamentos amargos. Não vamos mudar a situação,
mas certamente uma porta dentro de nós vai se abrir por onde a esperança poderá
nos visitar.
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