sexta-feira, 31 de março de 2017

ABRACADABRA



Ontem disse umas coisas para uma amiga que eu não queria dizer, melhor dizendo, que eu não deveria dizer. Normalmente, engulo as palavras, mas quando falo, o mundo acaba. Aí é que percebo a força que as palavras têm. Quando não consigo engolir, elas vêm atropeladamente, e palavras curam tanto quanto machucam. Melhor se tivessem ficado quietas em seu mundo, e que a gente nunca tivesse a oportunidade de dizer nada porque uma vez ditas são fatais. Se ... se ... se... não tivessem sido ditas, a vida seguia do jeito que era, de manhã, de tarde, de noite, sorrisos alegres, sorrisos amargos, terrores noturnos, algumas esperanças e até sonhos. E quando eu entrego meu dia a Deus pela manhã, entrego meus pensamentos, sentimentos e palavras. Contudo sei e aceito que o “justo cai sete vezes ao dia”. Até os santos caíram muito. Não é verdade que sempre “não fazemos o bem que queremos e fazemos o mal que não queremos”?
As palavras têm vida. Adelia Prado diz que “quem entender a linguagem entende Deus”. Olha a força das palavras! Tudo em nossa vida está ligado às palavras que dão nomes às coisas e expressão aos nossos sentimentos. Então, foi triste como uma despedida! Mas a vida é assim, feita de encontros, mas de muitas rupturas, aliás, cada momento é uma ruptura com outros momentos. Dizem que o segredo da vida é aceitação serena de tudo o que vem, afinal quem foi que nos garantiu que tudo correria bem, que tudo acabaria bem? Só as mães falam isso quando percebem o terror do filho que chora ao acordar de um pesadelo. Dizem elas: tudo vai ficar bem. Mas no correr da vida, o filho vai perceber que nem sempre ou quase nunca tudo fica bem. E impotente, ele prosseguirá porque não haverá outro caminho a seguir, e se tiver sabedoria aprenderá que é melhor sofrer “bem” como tudo na vida deve ser bem feito. O que é que tem sofrer? Soframos bem, ora pois.
Voltemos às palavras. Elas são mágicas. Podem edificar, podem destruir, podem se transformar em poemas delicadíssimos, podem romper relacionamentos, podem transformar uma vida para sempre, para melhor ou para pior. Já disse isso. Podem declarar guerras entre países e fazer retornar a paz.  Estou dizendo mais do que o óbvio, nada de novo. Mas eu queria inventar uma palavra que consertasse tudo, que abrisse as portas emperradas, que curasse as dores do corpo e da alma.  Aí me lembrei do abracadabra, a palavra encantada que quando dita curava febres e inflamações. Etimologicamente, do aramaico, abracadabra significaria “eu crio enquanto eu falo”, ou ainda “faço desaparecer algo ruim com esta palavra”. Pronto. Já me sinto com uma varinha mágica dizendo abracadabra e com as mãos cheias do pó de “pirlimpimpim”. Jogo o pó e digo “abracadabra”, e desfaço o mal feito e crio o bem. Ah! como eu queria o poder do abracadabra, como seria bom! Não é bem assim. Para acreditar nisso eu teria que acionar o encantamento de menina e não é toda hora que sou capaz dessa façanha. Às vezes a realidade é real demais da conta.
Não sei, não sei. Como diria Rilke, “tenho tanto medo das palavras. Elas dizem tudo com tamanha precisão.”
Bem, existe outra palavra mágica, infalível, mas real, saindo do coração: Perdão. E depois, bem, depois a gente deixa seguir o barco, soltando um pouco as amarras, aliviando os fardos, abaixando as velas, deixando a correnteza nos levar ao seu bel prazer. Pode até ser que este barco vá dar numa ilha encantada. Quem sabe.
Depois disso, apenas um pouco de silêncio. Perdão. Tenho dito. 

sexta-feira, 24 de março de 2017

CULINÁRIA E ESCRITA




Nunca tive o menor pendor para as coisas de casa. Lembro-me de minha mãe que me chamava atenção para o fato, dizendo: suas irmãs já sabem costurar na máquina, fazem tricô e crochê e você passa ventando pela minha máquina de costura sem a mínima curiosidade. Era verdade, e é verdade. Na cozinha, para ser absolutamente honesta e sincera, o pouco que sei aprendi com meu marido. Mas não passo de um arroz, uma salada e alguma farofa. Ele é quem cozinha no dia a dia, e curte muito fazer suas receitas. Seu empadão de palmito é imbatível, as empanadas argentinas, hummm, seu pão caseiro, enfim tudo o que faz é saboroso. Quando nos conhecemos, depois de saborear uma comidinha deliciosa que ele havia feito, prometi que eu faria algo da próxima vez. Minha irmã e eterna cúmplice me ensinou uma receita de lasanha que eu adoro. Memorizei cada passo e lá fui tentar minha façanha culinária. Mas ninguém faz uma comida só de guardar os passos. Meu marido, que ouvia um clássico qualquer enquanto curtíamos um vinho, logo percebeu minha falta de intimidade com a cozinha, a começar por cortar cebolas. Tomou o encargo e eu abri o jogo: não sei nem cortar uma cebola. A verdade liberta. Me senti leve como uma pluma. Fingir que cozinhava foi uma santa mentira de perna curta, mas uma coisa é certa: não seria pelo estômago que eu o conquistaria. E nem precisava. Ele já me amava. 
E quando o amor acontece, tudo concorre para o bem daqueles que se amam, até não saber cozinhar. Lembrei-me de novo de minha mãe que contava que uma conhecida dela, recém-casada, não sabia fazer nadica de nada de casa. E o marido ficou doente. O médico aconselhou que ele tomasse uma canja de galinha, no tempo em que canja de galinha era remédio. A mulher despediu-se do médico e abriu a boca a chorar porque não tinha a mínima ideia de como fazer a canja. O marido achou graça, a sogra ensinou a nora com o maior prazer, e todos viveram felizes para sempre. Só que tem uma diferença: a tal mulher tornou-se uma banqueteira famosa, e eu continuo no primeiro estágio. Seu pendor estava apenas adormecido, e eu não fui agraciada com este dom, embora possa cozinhar para não morrer de fome.  
Dizem que o gosto pela cozinha já é algo nato, a pessoa nasce com ele ou não. Não sei. Considerando que sempre detestei ir ao supermercado, concordo com meu marido quando diz que o supermercado e a feira são os irmãos da cozinha. Há pessoas que tentam cursos de culinária, alguns, em vão, pois sem vocação, sem refeição. Comigo não haveria curso de culinária que desse jeito, só perco para uma prima.
O que sei fazer com muito trabalho é tecer as ideias, costurar os parágrafos, fazer bordado com as palavras, e às vezes até remendá-las. Mas que ninguém veja o avesso porque a primeira feitura é uma feiura, tal como meu ponto de cruz. Ainda tento cerzir significantes e significados e tudo sem máquina de costura. Assim posso dizer que tanto sei costurar como sei cozinhar, por exemplo, faço sopa de letras com salada de acentos e cozido de frases. No final, apresento um prato complexo, pois vivo sempre cercada de interrogações, louca à procura da expressão, como dizia Augusto dos Anjos. Quem trabalha com a linguagem, trabalha com a alma. Não vou afirmar que tentar dizer o indizível seja mais fácil pra mim do que cortar uma cebola ou espremer um alho, mas é bem mais gostoso.     

sexta-feira, 17 de março de 2017

DEPRESSÃO SAZONAL



  
Estou feliz, alimentada e amada. Nada me dói no corpo. No entanto, alguma coisa lá bem no fundo da minha alma reclama não sei o quê. Não sei se é o verão que já começa aprontar as malas para ir embora. Na verdade, esta mudança de estações sempre me provoca uma sensação esquisita, ainda que o calor continue insuportável. O outono faz seu prenúncio com um aroma de algo que não se pode explicar por palavras. Sinto no ar seu cheiro bom e triste que vem aos poucos me enredando. Não há como fugir disso. Depois do outono é fácil seguir, o inverno não me causa estranheza, muito menos a primavera, nem o verão. Mas o outono é inexorável demais. É a vida que passa. Não é sem razão que se costuma dizer: no outono de minha vida. A única coisa que permanece é a mudança, leio isto agora numa mensagem de uma prima. Benditas sejam as primas que tanto nos confortam!
Não sei, também pode ser que algum dos fantasmas do passado tenha vindo me assombrar, trazendo um arrepio de saudade ou de inconformidade. Eles sempre vêm, vez por outra. Ou ainda esta hora difícil quando escurece findando mais um dia e dando lugar a um crepúsculo sombrio que precede a noite. Tudo mexe com a gente. A sabedoria da madureza que não garante a felicidade, o silêncio pesaroso do crepúsculo, um arrependimento qualquer, a pilha de roupas para passar. Nesses dias estranhos mal consigo rezar. Tudo o que falo pra Deus soa falso e sem sentido, mas sei que é sincero. Deus também é inexorável demais, assim como o outono. Fez as estações para nos lembrar dos ciclos e das perdas irremediáveis, da vida que passa e da mudança que permanece. A nós só cabe aceitar. Deus é Deus. Bendito seja Ele.
 Penso nas impossibilidades que não consegui tornar possíveis. O real é tão tangível e visível aos olhos, mas teimamos em sonhar e viver de coisas impossíveis e etéreas, tateando o ar, mergulhados no escuro. Penso nos milagres tão sonhados e nunca vistos, nas árvores abatidas impiedosamente, no sol causticante, nas crianças sírias sofrendo tanto. Contudo tenho esperança porque o mundo é muito louco, a vida é imprevisível, triste, porém, bela. Ainda há flores, alguma sombra fresca, águas escorrendo das minas, o mar continua sendo um mistério, a gatinha pretinha ainda brinca de perseguir a bolinha de papel, o que me faz sorrir e quando eu sorrio fico mais bonita! Também enxergo sem óculos! Se puder, não se queixe, dizia Santa Teresa!
Tudo bem, que venha o outono, os fantasmas, o silencioso e triste crepúsculo! Nunca vamos compreender por que essas coisas nos afetam. Nosso lado oculto sempre vai ser mesmo o maior mistério do mundo! O que realmente a gente precisa não é tanto ser feliz, antes amar e armar-se de coragem porque é o que a vida exige de nós a cada dia.  

sexta-feira, 10 de março de 2017

ESCRITORA FANTASMA






             Escrevo, gosto de escrever, é claro, mas nem sempre gosto do que escrevo. Às vezes vibro com uma crônica que acabou de sair do forno quentinha ou com um conto que achei genial. E acontece que outras vezes torço o nariz, acho medíocre, bobinho, tiro isso, ponho aquilo e não fico satisfeita. Não sou agraciada como uma grande Adélia Prado, sei que a poesia não é hóspede assídua em minha alma, só passa de quando em quando para uma visita rápida, mas quando vem, mesmo furtiva, traz presentes tão preciosos que recebo feliz, cheia de gratidão. E vou trabalhando de sol a sol, cultivando histórias, sonhos e colhendo os frutos, os fatos, os feitos, e tentando transpor tudo isso para o papel, ou para a tela em branco que me olha interrogativa como neste momento.
            Já foi o tempo em que eu ia atrás de meu marido e de minha irmã, com uma crônica pronta para que lessem. Era imperioso ouvir sua opinião ou qualquer opinião que fosse, e aí o que vocês acharam? Bem, não foi uma nem duas vezes que percebi que o marido já tinha perdido o fio da meada da minha leitura em voz alta fazia tempo, sabe-se lá por quais paragens sua mente vagava, e minha irmã, depois de dias em que eu esperava ansiosa por seu parecer, era assim: como sempre, gostei! Meio que sem muito entusiasmo. Larguei mão disso. Sem mágoa nenhuma, assumi que não precisava fazer pressão em cima de minhas duas cobaias literárias, os dois, coitados. É assim mesmo, santo de casa não faz milagres e o profeta não é bem recebido em sua própria terra. Minha prima escreveu uma brilhante tese de doutorado que fez tremer os baluartes da enfermagem no Brasil e, no entanto, me segredou que nenhum de seus irmãos leu seu trabalho. É assim mesmo. Agora escrevo e pronto.
            Aconteceu que fiz uma crônica sobre mulheres para não deixar passar em branco o Dia Internacional da Mulher, e pedi para a filha de uma amiga nossa do grupo postar para todas em nosso whatsapp antes que fosse para o Face ou para o Blog. E minha irmã, distraída da vida, leu encantada, pensando, nossa que lindo! De quem será esta crônica? De onde a Giovanna tirou? E foi se encantando, cada vez mais, já pensando em me enviar porque realmente a crônica estava muito boa, palavras dela, genial, isso, a palavra era genial. Até que chegou a certo parágrafo que falava da mãe da autora, e minha irmã foi reconhecendo nossa mãe, e pensou, só pode ser ela, mas como? Então é da Misa esta crônica? E foi até o final quando tudo se confirmou. Rimos pra valer. Talvez se eu tivesse enviado antes, ela diria: está bom, como sempre! Não sabemos, mas achei ótimo ter ficado anônima! Minha irmã encantou-se com a crônica sem saber que era minha! Como uma estranha escritora fantasma, consegui encantar seu coração!
            Adorei! Nada como um depoimento genuíno desprovido de quaisquer laços afetivos influências ou obrigações. E enquanto a poesia se faz de rogada às minhas súplicas, continuo trabalhando de sol a sol. Vou às fontes, consulto os mestres, leio poemas que me inspiram a fazer prosa, como Carlos Drummond de Andrade que me diz hoje para “comer queijo com goiabada, ouvir uma serenata, calçar um velho chinelo, sentar numa velha poltrona e tomar um vinho branco enquanto ouço o Bolero de Ravel.” Acho que hoje estou triste, mas deixo o mundo acontecer. É preciso escrever.

segunda-feira, 6 de março de 2017

NÓS, MULHERES







            Nós, mulheres, somos seres especiais. Se Deus fez a gente da costela do homem não sei, mas certamente nesta estranha operação, ocorreu algo não previsto ou pode ser até que tenha sido previsto, não sei, só sei que muito nos beneficiou. A verdade é que nos saímos muito bem, bem melhor do que a costela e o resto do homem, que me perdoe o suposto, pretenso e fora de moda sexo forte. Somos bonitas, de beleza que não é só de traços físicos, mas de entranhas, de alma, de espírito, de virtudes, de fortaleza, de grandeza. Somos desdobráveis, como diz Adélia Prado. Parimos sem dor ou com ela (bem, eu nunca), mas a maioria absoluta já. Nossa alma é sutil, e não há quem entenda nossas sutilezas se não for mulher. Rimos sozinhas ou acompanhadas e podemos chorar prantos sem fim até dormir. Somos de paz, não fazemos guerra, contudo se for necessário, defendemos os nossos filhos com unhas e dentes, matando vinte leões por dia.
            Já nos enganamos. Era coisa de tempo antigo, a tal da cultura da época. Houve um tempo em que a mulher de valor tinha que aprender a bordar, guardar a virgindade para o futuro marido, saber cozinhar e sair nas fotos em pé, ao lado do marido sentado. Se a mulher solteira ficava grávida, deveria ter um comportamento exemplar para o resto de sua vida, só saindo para ir à igreja. Esperávamos o príncipe que nos salvaria e dançaria conosco aquela valsa magnífica, eterna. Ledo engano, doce ilusão, santa ingenuidade. A vida é dura, mas é bela. Até que enfim chegou um espelho honesto que nos mostrou que éramos especiais, aí as escamas dos olhos caíram, as lágrimas de emoção também saíram porque compreendemos o valor e a alegria de ser mulher, afinal ser mulher é ser desdobrável! Minha mãe era canhota de nascimento, sabia fazer coisas gostosas de comer, fazia camisas de homem com colarinho e tudo, teve seis filhos. Queria ser amada, porém acima de tudo queria ter estudado leis. Era desdobrável ao máximo!
            Dizem os homens que somos complicadas. Não é verdade. Eles não entendem as sutilezas da alma feminina. Feliz o homem que capta esta nuance e feliz a mulher que puder caminhar ao seu lado. Feliz o homem que respeita e perdoa a angústia que amanhece nos olhos da mulher e que dura até de noite. Elas sabem e sentem coisas milenares, inomináveis, que brotam da noite pro dia, é um desejo de alguma coisa, uma fome, uma sede de algo inexplicável. Carregam dores inconsoláveis em silêncio, ou simplesmente têm saudades da mãe que morreu ou que está longe. No entanto, mesmo tristes, varrem a casa, cantam baixinho, dão aula de física, cozinham em restaurantes, escrevem, ninam bebês no colo, e quase sempre, vivem encantadas e emocionadas com histórias de amor. E vão se desdobrando em muitas até que o riso volte, o olhar se acalme, o sorriso perdure, e no calor da cama soltam as amarras da sensualidade, deixam o jeito de menina para as manhãs singelas e para as noites ardentes, transformam-se em mulheres amantes em tórridos jogos de amor.
            Certa vez, conversando com uma amiga sobre temas de crônicas, contei que fiz uma crônica sobre os 100 anos da Primeira Guerra Mundial. Falando sobre os fatos da guerra, ela ficou pensativa e disse: guerra é coisa de homens. Se às mulheres estivesse destinado naquela época conduzir o mundo, essas guerras provavelmente não teriam acontecido. E ocorreu que assistindo a uma entrevista com o jornalista e ambientalista Yann Arthus-Bertrand, ele comentou que tem a esperança de que no futuro o mundo seja conduzido pelas mulheres. Assim como também, Bunker Roy, um indiano rico que abandonou sua vida de facilidades e fundou a Universidade de Pés Descalços contando com o trabalho de pessoas pobres, principalmente de mulheres que, incluídas e valorizadas, revelaram-se verdadeiras engenheiras solares competentes, sem nunca terem frequentado uma universidade tradicional.
            Sim, nós mulheres, somos seres especiais. Somos desdobráveis, como disse Adélia Prado em suas maravilhosas poesias.