Tive um colega na faculdade que
realmente podia ser chamado de “meu tipo inesquecível”. Era um sujeito mais
velho, assim como eu. Nunca soube ao certo sobre sua vida, apenas que morava em
uma cidadezinha por perto. O cara era uma pessoa diferente, mostrava ter muitos
conhecimentos, dava seus palpites nas aulas, era divertido, um “boa praça” como
se costumava falar. Mas ele dizia certas coisas para mim e para algumas pessoas
que, a princípio, julguei que fosse um lunático ou um simplório. Nunca dei
importância, simplesmente não podia acreditar que ele me julgasse tão boboca
para engolir os papos furados que contava. Ele dizia coisas como ser um contato
do Pentágono aqui na Serra da Mantiqueira para assuntos alienígenas, falava que
tinha um canal particular com o Bush. Bem, não é que lá pelo fim do curso
estava eu conversando com a reitora, e o nome do Gumercindo, vamos chamá-lo
assim, veio à baila. Então eu relatei as coisas incríveis que ele falava. Ela ficou
séria, pensativa, fixando o olhar para fora da janela, de onde se podia avistar
a linda Serra da Mantiqueira. Depois virou-se para mim e disse: Misa, o Gumercindo
é uma incógnita. Jamais saberemos se há um fundo ou um mundo de verdade nas
coisas que ele fala. Mas juro que às vezes eu acredito.
Nos
últimos meses do curso saquei que o meu colega falava inglês e francês com
fluência, e me peguei imaginando o Gumercindo e o Bush em seu canal particular
para assuntos altamente secretos do Pentágono. E depois que a reitora disse
aquilo, sinceramente, a coisa até fazia sentido, ou então os dois estavam
gozando com a minha cara.
Bom, mas o que quero mesmo relatar é
que entre as peças de teatro que montamos e desmontamos nas deliciosas Semanas
de Letras, encaramos “Inês de Castro”, e a cronista que escreve este artigo foi
a famosa rainha póstuma, com direito a todos os aplausos que arranquei da
plateia. Também arranquei lágrimas pela minha poderosa atuação dramática, pois
não foi uma nem duas colegas que se afligiram e choraram quando D.Inês (eu) foi
morta cruelmente em pleno palco bem na frente de seus filhos. Elas me contaram
depois que pensaram em seus próprios filhos e choraram. E eu, bem, me senti a
própria Fernanda Montenegro. Para dizer a verdade, me senti a própria Glenn
Close, o que me deu força para prosseguir em minha carreira teatral nas
próximas Semanas de Letras.
Agora sim, voltemos ao Gumercindo.
Ele foi um ator coadjuvante da peça. Ao contrário de todos os outros que
decoraram fielmente suas falas, ele insistia em improvisar, dizendo que nós não
sabíamos que teatro verdadeiro estava na arte do improviso. Nosso diretor, meu
ex-colega bancário, arrancava os cabelos, e eu pensava, meu Deus, o Gumercindo
vai por tudo a perder. Mas seguimos e chegou o grande dia. Todos providenciaram
fantasias e foi uma graça a gente ver a criatividade de uns e outros nos
figurinos da corte da Espanha e Portugal nos idos de mil trezentos e tanto. Eu,
muito preocupada com Gumercindo. Sinceramente não acreditava que ele fosse
capaz de usar uma fantasia, mas eis que o Gumercindo surge das brumas do tempo
e aparece tão a caráter que nos deixou de queixos caídos. Trazia um impecável
traje e um chapéu com uma pena que balançava elegantemente enquanto andava com
uma espada embainhada à cintura. Era o próprio conselheiro do rei, sem tirar
nem por. Sua fala foi improvisada como em todos os ensaios, e até houve um
momento em que ele gaguejou uma frase e outra, mas deu conta.
Ao final, no ápice do tom dramático
da peça em que eu implorava aos gritos que não me matassem, as luzes foram
apagadas para dar um clima maior de suspense, e eu sem enxergar nada, continuei
gritando, até que ouvi o Gumercindo me sussurrar ao ouvido:
- D.
Inês, pare de gritar que a senhora já está morta!
Que
saudades do Gumercindo! Por onde andará? Aqui perto mesmo no alto da Serra da
Mantiqueira? Ou perdido nas salas do Pentágono? Talvez numa viagem à la
“Highlander” na corte de D.Inês, ou quem sabe até abduzido depois de contatos
imediatos sem fim? De qualquer forma fica aqui registrado meu eterno carinho
por ele. Valeu Gumercindo! Você era
daquelas pessoas que enriquecem a vida da gente!
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