sábado, 30 de setembro de 2017

MICHELANGELO E EU


 
                Entro em minha salinha do computador, dos meus livros e escritos com anotações ininteligíveis jogados displicentemente sobre minha mesa e por todos os lugares. Lembro-me de um amigo que veio nos visitar e me perguntou: aqui que nascem suas crônicas? Não. Na verdade aqui são confeccionadas, elas nascem nas ruas, nos encontros, nas conversas com os outros e comigo mesma. Mas hoje não tem jeito, vai ter que ser fabricada aqui mesmo. Infeliz da vida, eu percebo que é daquelas vezes em que minha fonte de ideias está mais seca do que o Deserto do Atacama. Escrever sobre o quê?
            Sei que a crônica vai acontecer. Ela está prisioneira em algum lugar dentro de mim. Resta saber qual o caminho que terei que trilhar para encontrá-la. Normalmente várias trilhas se abrem, mas hoje nenhuma aparece. Com insano otimismo olho para a tela em branco imaginando que logo meu texto estará inteiraço ali, e concedo-me pretensiosamente fazer a comparação com Michelangelo que ficava à espera de enxergar algo dentro do bloco de mármore. Foi assim que nasceu o famoso Davi e também o assombroso Moisés, para quem Michelangelo disse: “Por que não falas, Moisés?” Então, não foi assim?
            Bem, depois desta desbaratada e desastrosa comparação com Michelangelo, já sei que meu bloco de mármore está mais para pedregulho e não há Davi que hoje saia daqui. Tentemos por outras vias. Corro os olhos pelos livros na estante, procuro por algo que me inspire. Lembro-me de Roger Laporte que dizia que não concebia uma leitura que não suscitasse outra escritura. Então vamos às fontes e àqueles conselhos de grandes mestres, tipo “se você quiser escrever um bom poema, leia uma boa prosa e vice-versa”. Leio Carlos Drummond de Andrade. Nossa! Carlos Drummond em “A procura da poesia” me diz: “penetra surdamente no reino das palavras, lá estão os poemas que esperam ser escritos.” Depois me deparo com outro poema seu em que ele enumera as coisas gostosas da vida: “uma tarde amena, calçar um velho chinelo, ouvir a chuva no telhado (isso tá difícil), vinho branco (hummm)...” Com isso acabo fazendo minha própria lista de coisas gostosas, mas não vou enumerá-las aqui, não ao lado da lista do Carlos Drummond, chega de ofender os grandes mestres. Michelangelo já está de bom tamanho.
            Vou dizer só uma coisinha da minha lista, uma não, duas: 1- parar na calçada para admirar com ternura as patinhas dos cães incrustadas no cimento duro. 2- ter sempre um lugar para voltar. É. Há sempre um momento em que podemos voltar para um lugar onde nos sentimos seguros, felizes. Pode até ser sua própria casa quando você chega de uma   viagem e revê seus queridos (se mora sozinho, vai rever seus livros e flores), vai dormir na sua própria cama, percebe que na sua ausência nasceram flores novas no seu vaso preferido, bebe o café no seu caneco de estimação e brinca com seu cãozinho ou gatinho que está literalmente enlouquecido de saudades de você. É sempre bom sair para ter um lugar para voltar.      
            Escrever é um prazer, mas é difícil pra mim, embora digam que escrevo como se estivesse falando. É um caminho de pedras, onde tudo é construído. Porém, quando entre as pedras colhemos flores raras e belas, o prazer é infinitamente maior, indescritível. Quanto mais difícil maior se torna o prazer de construir. Por hoje é só. Espero que Michelangelo, onde esteja, não se aborreça com minha pretensa comparação e que Carlos Drummond me inspire a contemplar as “palavras mudas em estado de dicionário” me provocando a todo instante, suscitando em mim novas escrituras. 



sábado, 23 de setembro de 2017

DOUTOR GASPAR LISBOA e DOUTOR JOÃO DE AZEVEDO: NOTÁVEIS MÉDICOS SEM FRONTEIRAS (dedicado ao querido Darcy)



            Dona Celina escreve apressadamente uma cartinha relatando ao médico os sintomas das meninas que amanheceram doentes. Com as mãos trêmulas porque as mães sempre serão assaltadas por um fio de medo, ela põe a carta dentro de um envelope e sai em direção à estação ferroviária. A década é de 50 e o século é o XX. Lá ela procura pelo maquinista que já desconfia do que se trata: Pois não Dona Celina!. E ela: Seu Bernardo, faz este favorzinho pra mim, favorzinho não, favorzão, né? Claro, Dona Celina. De tardezinha trago a resposta. Vai ficar tudo bem.
            O trem parte de Delfim Moreira em direção a Itajubá. Lá Seu Bernardo se dirige ao consultório do Dr. João de Azevedo. Entrega a cartinha para a recepcionista que leva até à sala do médico. Seu Bernardo não espera, vai resolver outras encomendas pela cidade e volta mais tarde. A moça sorridente entrega ao bom homem a resposta da cartinha com remédios para as meninas de Dona Celina. Já de volta a Delfim Moreira, o maquinista a encontra aflita na estação esperando ansiosa por ele. Ela sorri cheia de alegria e esperança: Ah Seu Bernardo, o senhor é um santo. Em casa, ela lê as instruções escritas pelo médico e já vai pro quarto medicar as meninas que logo estarão saudáveis. Quando o marido de Dona Celina voltar de viagem, vai procurar pelo Dr. João de Azevedo para acertar os remédios que muitas vezes serão de graça. 
            Em Itajubá, Dona Matilde grita a vizinha: oh Consuelo, faz um favor, fia! Tô atrasada pra entregar duas tortas de frango e pode ser que o Doutor Gaspar passe aqui pra ver as crianças bem na hora que eu estiver fora. Então, fia, dá uma olhadinha nas crianças pra mim. Se brigarem pode chamar a atenção, viu? O Doutor Gaspar ficou de dar um pulinho aqui para ver o Serginho, tô tão preocupada. Acho até que pode ser caxumba. Se o Doutor aparecer, faz um cafezinho pra ele, por favor. De noite a gente vai na novena de Nossa Senhora da Soledade, né? E Dona Consuelo debruçada na janela, canta junto com rádio Itajubá: vai em paz comadre! Deixa que eu olho aqui. Acho até bom que o Doutor venha porque vou mostrar pra ele a ferida do Marquinho que não fecha. Vai com Deus!
            Dona Consuelo adiantou o serviço, sempre cantando, quando de repente lembrou-se do Doutor. Nossa Senhora, esqueci! Pegou a chave da casa de Dona Matilde e saiu ventando para a casa da vizinha. E não é que o Doutor Gaspar estava pulando a janela da casa de Dona Matilde? Só que da sala para a rua da vila. Já tinha entrado pela janela uma vez que ninguém abria a porta. Viu a criançada toda, todo mundo mostrou a garganta, ele abriu o olho de uma, escutou o pulmão de outra. Prestou mais atenção no Serginho conforme a mãe havia descrito os sintomas. Dona Consuelo se desculpou: Perdão, Doutor, distraí com a novela da tarde. Tá tudo bem aí com as crianças? E o médico: estão bem, diz pra Dona Matilde que o Serginho não tem caxumba não. Deixei a receita em cima da mesa. E a boa vizinha: Mas entra aqui pra tomar um cafezinho, aí aproveita e vê a ferida do Marquinho. Fiz bolo de fubá, daquele que o senhor gosta.
            Estes eram os médicos para quem as fronteiras não existiam. Fosse a serra de Delfim Moreira ou a porta fechada da casa de Dona Matilde. Dizem que a vida mudou, que a população aumentou, que a miséria grassou, que médico da família é coisa do passado, quanto mais para pobres, que isso mais aquilo. Tudo bem, é verdade que o mundo é outro, mas a solidariedade é da essência do homem, não há como mudar, não há época, século ou décadas para isso. Ou se tem ou não se tem. E quem a perdeu está perdido e deve ser resgatado. Emocionada, registro aqui minha admiração pelos notáveis médicos Dr. Gaspar e Dr. João de Azevedo que atenderam mães aflitas e viúvas que batalhavam pela vida. Minha admiração não é só por eles, também pelas mães extremosas, pelos maquinistas e vizinhos anônimos para quem as fronteiras da solidariedade jamais existiram.
É, pensando bem, acho que o mundo naquela época era melhor sim.  
(As histórias relatadas aqui são reais, e somente os nomes foram alterados. O floreado ficou por conta de minha alma de poeta e da licença poética a que temos direito).

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

MENTIRINHA CARIOCA



            Todo mundo já mentiu, ou mente ou mentirá. Duvi-de-o-dó que não. Não falo de mentiras pérfidas ditas por línguas malévolas com o intuito de prejudicar alguém, mas de uma “mentirinha carioca”. Achei ótima esta expressão que ouvi de uma conhecida que aprendeu de seu tio, querendo dizer que seria uma mentirinha descontraída, bobinha, que não faria mal a ninguém, mentirinha de amor, uma santa mentira. Existe sim. Então eu não me lembro de minha mãe querendo consolar Dona Ana que estava doente e sentia muito medo de morrer? Ela chorava e dizia que quando chega a hora a gente tem que aceitar. Minha mãe disse: ora gente, isso não quer dizer que a senhora vai morrer, está apenas doente, ainda vai sarar. E eu, ainda bem criança, sem saber que a morte existia, soube captar nos dizeres e tons da mãe que eu bem conhecia, um quê de certa santa mentira. Dona Ana estava mal.
            E muito tempo depois, quando eu já era uma jovem de 20 anos, passeando na casa de parentes, acatei com a maior naturalidade o pedido de minha prima que ia fazer uma visitinha lá na vizinha: Misa, se até às 8horas eu não voltar, chega no muro e me chama, diz que é telefone pra mim, tá? Tá. E a gente faz da mentira uma prática diária. Ela fazia isso para não magoar a vizinha que gostava de um papo, e eu para não magoar a prima que era ocupada e precisava voltar logo para casa. Enfim, de fato a “mentirinha carioca” está presente em nossa vida.
Com as mentiras aprendemos que podemos nos sair bem sem magoar ninguém. Mentimos por amor, por medo, por ansiedade, por covardia, por vaidade. Estávamos eu e uma conhecida numa loja experimentando roupas. Provávamos várias peças e nos olhávamos num grande espelho. De repente ela saiu do provador com uma roupa totalmente inadequada. E me perguntou: está bom em mim? E eu tentando me proteger, fugia pela tangente: nossa, que roupa linda! E ela: mas está bom em mim? Diga sinceramente. Acuada daquela maneira, não tive saída. Ninguém deveria fazer isso com ninguém. A mentirinha carioca não ia rolar e nem colar. Então eu disse: Não está bonito, mas não está feio, acho que outro tipo de roupa cairia melhor em você. Ela entrou no provador e demorou muito pra sair. Às vezes a verdade é dura. Eu voltei para casa sentindo-me péssima.
Há quem saiba ser verdadeiro sem nenhum conflito. Eu não. Conheço pessoas francas, que dizem o que sentem sem o menor pejo. Porém o limite entre ser franco e mal educado é muito tênue. Talvez o meio termo exista. A gente pode começar com coisas mais simples. Se no Facebook você gosta de determinada postagem, curta. Se você ama, ponha lá o coraçãozinho, se acha engraçado, ponha a carinha rindo, mas se não gostar, não ponha nada. Não diga, “linda” quando achar que não é linda. E não se esqueça de que você sempre vai desapontar alguém por mais esforços que empreenda para que isso não aconteça. 
Ser verdadeiro é difícil, mas é ser fiel. A verdade é transparente, clara, única. A coerência nunca vai existir na mentira. O mundo nos encoraja a mentir, porém mentir é perigoso. Uma mentira puxa a outra, e em determinada curva da estrada já não sabemos fazer o caminho de volta. Ainda que seja uma mentirinha carioca, mentira é mentira. Santo Agostinho dizia que quem não é fiel nas pequenas coisas também não será nas grandes. A verdade, mesmo dita de maneira suave pode machucar, contudo não resta a mínima dúvida de que é a verdade que sempre nos libertará.



           
           
           

O OLHAR DE JACQUES



Jacques era um chileno com ascendência francesa que veio para o Brasil na década de 70. Aqui conheceu Bela, uma brasileira do sul. Apaixonaram-se perdidamente e decidiram vir para o sul de Minas e aqui construir uma nova vida. Eram jovens professores, belos, intelectuais e talentosos. Com vasto currículo, logo conseguiram lugar na universidade onde atuaram não só como professores, também como palestrantes, sempre engajados em todos os departamentos e assuntos. Acabaram virando o símbolo do casal cheio de charme e em dois tempos, como dizia minha mãe, Jacques e Bela tornaram-se o assunto do momento.
Sendo assim tão especiais, não era de se espantar que fizessem muitos amigos. E todos que frequentavam seu apartamento não saíam de lá sem um fato ou uma história interessante que podia ir desde seu relacionamento intenso até à decoração sofisticada da sala de jantar. Rapidinho, detalhes da vida de Jackes e Bela eram conhecidos pela sociedade local. Houve até quem dissesse que a sala tinha um tapete persa comprado em Kashan, numa viagem que haviam feito ao Iran. E já corria à boca pequena que o casal tinha sido visto fazendo amor na varanda, algo ousado para uma pacata cidade de Minas nos anos 70. Nada nunca foi comprovado, mas que eram excêntricos, ah isso lá eram.
Bem, entre os amigos de Jackes e Bela estavam três moças que frequentemente eram convidadas para jantares e lanches oferecidos pelo casal. Michele era uma delas. Recém-divorciada, ainda bem jovem, a moça não ficava nada a dever para a ousadia dos Jackes. Ela própria havia sido muito corajosa ao enfrentar a sociedade daquela época que se escandalizou com seu divórcio. Bem, Michele nunca se cansava de admirar o jeito que Jacques olhava para Bela. Era o olhar de um homem definitivamente apaixonado. Irremediavelmente apaixonado. Bastava Bela fazer qualquer gesto, ou contar qualquer coisa, ou simplesmente sorrir e ele se esquecia do mundo à volta e olhava para ela num jeito quase como hipnotizado, devotadamente. Bela era sua rainha.
Uma noite Michele saiu da casa dos Jacques e foi para a casa de sua mãe. Suspirou profundamente e confidenciou: mãe, eu quero outro homem, mas tem que ser especial. Eu quero um homem que olhe para mim exatamente como o Jacques olha para a Bela. E a mãe, boa amiga, apenas disse: você vai encontrar, filha!
E não é que pouco tempo depois, Michele conheceu Guilherme, um homem maduro, mais velho e charmoso? Certo dia Michele levou o namorado para a mãe conhecer. Dona Ema observou bem o casal e assim que Guilherme se despediu, a mãe disse para filha: Vai em frente porque você encontrou o homem especial que procurava! O Guilherme olha para você exatamente como o Jacques olha para a Bela. Tenho certeza!
Quanto a Jacques e Bela, um dia foram embora da cidade e nunca mais se ouviu falar deles. Não se sabe se ainda estão juntos ou se Jacques ainda olha devotadamente para Bela. Michele foi muito feliz com Guilherme. E a partir daí foi instaurado para sempre um código entre amigas e conhecidas, tipo assim um teste para saber se o cara estava perdidamente apaixonado ou não: “ele olha para você do jeito que Jacques olhava para Bela?”
Este olhar de Jacques não pode faltar, a menos que você se contente apenas com um mero casamento.