sexta-feira, 27 de outubro de 2017

VINHO NOVO EM ODRES NOVOS




            Não é preciso esperar o ano novo para os bons propósitos. Constantemente vamos aprendendo, reaprendendo e recomeçando, sem de fato conhecermos a nós mesmos como deveríamos. Na verdade, eu sempre me estranho e me desconheço. Vou vivendo e me deixando contaminar pela superficialidade do mundo até que de repente se quebra minha redoma de indiferença e sou despertada de meu torpor glacial. Aí me confronto, perplexa, reflito sobre meus pensamentos, sentimentos e atitudes. É horrível constatar minha pequenez e imperfeição, por outro lado, é bom saber que ainda posso melhorar. Então vamos seguindo. O importante é aprender, não perder a leveza, não deixar morrer a ternura indispensável que nos sustenta a cada dia.
            Eu, como sempre perfeitíssima nos meus horários, nas aparências, nos julgamentos e intolerâncias, cheguei pontualmente na hora marcada pela dentista. Imaculadamente no horário. Mas lá estava uma mulher antes de mim. Logo a dentista abriu a porta e pareceu hesitar entre chamar a mim, que sempre fui fidelíssima e impecável no horário, e atender a retardatária. Atendeu a retardatária, com uma discreta e carinhosa reprimenda. E eu fiquei a ver navios. Meia hora fiquei esperando, meeeia hora! Até que enfim a moça saiu. Eu, com a cara enterrada no celular, nem cuidei de cumprimentá-la. Não a conheço, talvez eu nunca vá vê-la novamente.
            Lá dentro a dentista conversou comigo. Pois é, mas sabe o que acontece? Ela é cuidadora, cuida de uma velhinha de 93 anos! E a senhora não deixa que ela saia facilmente, sabe como é, não? Caíram as escamas de meus olhos. Lá fui eu julgar a moça, chamando-a de retardatária, de sem responsabilidade, de invadir o horário dos outros. Quem sou eu? O que sei dela? Por que não posso ceder meia hora do meu tempo para ela? Grandes coisas meia hora! Ora que bobagem, como dizia minha mãe. Percebi que sempre prezo minha nobre aparência de perfeita, minha zona de conforto, expressão dos tempos modernos. Percebi que pouco estou aí para os outros, sempre envolvida com meu próprio umbigo. O justo cai sete vezes ao dia, não menos do que isso, às vezes muito mais, como eu. Ah meu Deus, nunca faço o bem que quero e faço o mal que não quero.  
            Respirei profundamente, envergonhada e desanimada. Quanto mais vivo mais erro, parece que não acerto nunca. Ter caridade com o próximo compreende muito mais do que ir à Vila Vicentina e levar um pouco de leite no momento que me é mais conveniente. Na verdade, a lista enorme de boas intenções e de ações se resume numa única prática: olhar o próximo com humanidade. E o próximo é o próximo que está na nossa frente, no nosso caminho, no elevador, no supermercado, nas clínicas e às vezes invadindo nossa agenda perfeita. Meu próximo hoje foi a moça que não cumprimentei como irmã porque me senti desconsiderada. Entre minhas boas intenções e ações há sempre um abismo descomunal.
            Enfim, gente, vamos começando tudo de novo como uma criança, gosto tanto desta frase de Rilke porque a criança recomeça sem desânimo, sem carregar culpa, sem achar que é indigna. E essas culpas são perigosas, pois que afastam de nós o desejo de sermos melhores, porque sempre desanimamos ao constatarmos que não somos merecedores da graça e aí nos punimos com remendos velhos. Xô desânimo, culpa confessada, culpa perdoada, alma lavada. Vida nova. Não quero vida remendada por Deus, quero que Deus me dê vida nova. Não colocarei vinho novo em odres velhos. Não. Vinho novo em odres novos. Pronto. Estou recomeçando como uma criança.                 

sábado, 14 de outubro de 2017

VESTIDO DE "POIS"




            Hoje fui buscar o vestido que levei para apertar. Um primor de um vestidinho lindinho! Foi só bater os olhos para me encantar e saber que seria meu. Naquele momento todos meus esforços e intenções para não ceder à tentação de comprar sem precisar ficaram a ver navios. E quem falou que não preciso de beleza, de sonhos, de fantasia? Coisa de mulher de qualquer idade que se encanta com tudo. Sinceramente, sinto uma santa inveja, se é que a inveja pode ser santa, das mulheres despojadas e sem vaidade. Sinto sim. É lógico que desejo o desapego, é lógico que não quero ser fútil e superficial, que quero alimentar meu espírito, mas também gosto das coisas materiais, daquelas que não trazem a felicidade, mas enchem os olhos.
            Aí lembrei-me de um filme a que assisti há muito tempo mesmo com a Shirley MacLaine (acho que “Minhas vidas”) em que a personagem está em Machu Picchu para um aprendizado espiritual. E uma camponesa pede humildemente que ela lhe dê seu anel. Era uma aliança de valor afetivo que ela trazia fervorosamente presa ao dedo, e ela hesita, embora estivesse ali justamente para aprender a se desapegar das coisas deste mundo. Lembro-me com exatidão da fisionomia da personagem sofrendo ao tirar a aliança do dedo, constatando a dificuldade de se praticar o desprendimento.
            Enquanto habitarmos este corpo que também nos foi dado por Deus, haveremos de sofrer esses conflitos. Como Adélia Prado eu digo que “nenhum pecado desertou de mim.” Não ainda. Também em outro poema, Adélia fala das viúvas que logo já estavam de fitas vermelhas nos cabelos e batom nos lábios e saíam a varrer as calçadas cantando. Então, é da vida, não é?  Por enquanto vou meditando no que diz a palavra, vou refletindo sobre as vaidades deste mundo, porém não posso deixar de cobiçar um vestido bonito de “pois”, um brinquinho qualquer e um batom cor de rosa. Nada extravagante ou sofisticado, mas simplesmente bonito.
            Mais difícil do que aprender desapegar-se dessas miudezas femininas é não fazer caso de não ser querida. Facilmente entregamos nossa honra a Deus, Santa Teresa dizia, mas ai ai ai ai ai se sofremos alguma injustiça ou uma rejeiçãozinha, lá vamos nós sentidíssimas a reivindicar com Deus nossa prezada honra de volta. Li certa vez num livro sobre almas do purgatório que uma princesa pergunta a uma alma se ela, a princesa, já estaria apta espiritualmente para encontrar-se com Deus, ao que a alma responde: Não, ainda gostas muito de ser querida!
“O que vos parece?”

SONHO PERDIDO



SONHO PERDIDO

Misa Ferreira



Acordei. O que sonhei? Não sei.
Dormi. Sonhos vivi. Já me esqueci.
Mas, e os sonhos reais, aqueles ideais? Onde estão?
Não sei. Dizem que talvez no coração.
Quando menina, meu sonho era ser bailarina,
Já mocinha, queria ser uma rainha.
Jovem, tanto quis ser atriz.
Não fui uma nem outra.
Pela vida segui. Sofri. Vivi.
Não vi passarem noites e dias, apenas tardes baldias.
Passou o tempo, apressado e lento, invisível como o vento.
Restaram-me doces e amargas lembranças,
Sonhos pueris de crianças.
Mas depois de tantas andanças,
Eis-me aqui de novo a sonhar e a me perguntar:
Onde está o seu sonho?
Respondo com um quê de tristonho:
Meu sonho passou e me acenou.
Não o vi. Eu o perdi.
Desde então vivo só,
No coração sem sonhos, apenas um triste nó.
Vou vivendo, sofrendo.
Tão inquieta e tão incompleta.
Mas ...  com alma tão dileta,
Só me restou um sonho: ser poeta.


POEMA DIFÍCIL



POEMA DIFÍCIL
Misa Ferreira

Eu queria um belo poema escrever
Uma simples e triste elegia ou uma ode de ser ou não ser.                                              

Por que é que o poeta na ânsia de poetar
Arranca da alma dileta seu mais profundo pesar?

Meu poema será outro. Decidido.
Não quero uma triste elegia nem ode em tom deprimido.

Preparo meu poema com o lápis imóvel na mão.
Espero pelo difícil tema. Inútil. Não tenho inspiração.

Abro livros, procuro – Drummond, Bandeira – Que canseira!
Baudelaire, Mallarmé, João Cabral – branco geral!

Leio “O Corvo” – será Poe? Não, não quero falar de dor!
Mas é lindo! Supremo! Um primor! E ainda fala de amor!

Eureca! Achei a saída! Poetar é dura lida,
Carece chamar os poéticos a trabalhar.

Vogais espertas despertam
Consoantes preguiçosas espreguiçam
Metros cambaleantes tropeçam
Ritmos bêbados soluçam
Pés perdidos se acham
Filas de ictos flácidos se esforçam
Cesuras se assentam
Palavras prontas se apresentam
Sentidos e emoções suspiram
E versos livres se formam.

Todos a postos dispostos estão.
No entanto, reluto, reflito, relaxo –
Meu poema tem que ser do coração.
Vou compor uma elegia ou uma ode de alegria ou de dor
Mas tem que ter ironia, amor e
Muito, muito senso de humor!                                                                    

O QUE VI EM ANTARES



O QUE VI EM ANTARES
Misa Ferreira

Vi barcos singrando os mares,
Almas sangrando em dores.
Vi asas em pares adejando nos ares.
Um ipê solitário sobejando flores

Vi freiras em filas entoando santos cantares
Vertendo lágrimas em suaves gotejares.
Vi borboletas primores postando suas cores primares.
Vi homens trespassados pelas trevas e horrores
Já outros arrebatados por loucos amores.

Vi até cães falando em línguas espetaculares
Virgens em seus tremores sem pudores
Vi ternos e sombrios olhares
Trovões e relâmpagos assustadores
Vislumbrei sonhos milenares
Enfim
Todos os prodígios eu vi em Antares.